Embargos culturais

O escritor José de Alencar e o Tribunal do Júri

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

11 de abril de 2021, 8h01

José Martiniano de Alencar (1829-1877) é nome central da literatura ficcional brasileira do século 19. Trata-se de nosso maior prosador romântico e, provavelmente, o mais lido romancista brasileiro. Alencar também se destacou como eminente jurista. Foi parlamentar, ministro da Justiça e também advogado junto ao Conselho de Estado. Militou na política, polemizou, principalmente com Dom Pedro II. Ingressou na Faculdade de Direito em São Paulo em 1846. Em 1848, transferiu-se para Olinda. Retornou para São Paulo, onde graduou-se na turma de 1850. Em São Paulo, Alencar registrou, em relato autobiográfico publicado por seu filho, Mário de Alencar, que estudos de Filosofia e de História preenchiam a maior parte de seu tempo [1].

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A estatura de Alencar como romancista ofuscou sua trajetória como jurista. Advogou no Rio de Janeiro, no movimentado escritório de Caetano Alberto Soares. Como jornalista, coordenou a parte forense do Correio Mercantil. Lecionou Direito Comercial. Deixou-nos textos densos em matéria cível, penal e constitucional. Entre os vários assuntos que tratou, a discussão em torno do artigo 144 da Constituição de 1824, relativo ao Conselho de Estado e à participação dos filhos do Imperador naquele colegiado. Destacou-se, nesse caso, como fino intérprete da Constituição, aferrando-se à letra do texto outorgado por Dom Pedro I. Do ponto de vista ideológico, era um conservador na política. Entre outros pontos, defendeu a escravidão.

Em "Esboços Jurídicos", o escritor cearense reuniu estudos sobre o Tribunal do Júri, sobre o processo criminal e sobre a codificação civil. Em "A Propriedade", dissertou sobre tema de Direito Privado, com várias referências ao assunto, sob uma ótica constitucional. Quanto a tema de Direito Constitucional propriamente dito, Alencar explorou discussão em torno da presença da Princesa Isabel e de seu esposo no Conselho de Estado. Há também um volume de resgate histórico, relativo a seus pareceres, quando atuou como consultor no Ministério da Justiça, editado com primorosa introdução do jurista cearense Fran Martins, que insistia na necessidade de que se estudasse a obra jurídica de José de Alencar.

Alencar radicava na Constituição a organização e o funcionamento do Tribunal do Júri. Copiado do modelo inglês, o júri representava fórmula democrática de julgamento. Segundo Alencar, o júri estaria para a democracia do mesmo modo que o sufrágio. A relação seria de muita similaridade. Alencar defendeu o Tribunal do Júri com veemência e forte argumentação. O artigo 151 da Constituição de 1824 dispunha que o Poder Judicial (à época, a expressão utilizada era Judicial, não Judiciário) era independente, composto de juízes e jurados, que teriam lugar no cível e no crime, nos casos, e pelo modo, que os códigos determinarem. O artigo 152 dispunha que os jurados se pronunciariam sobre o fato e os juízes aplicariam a lei. A partir desses artigos da Constituição, argumentava em favor das prerrogativas desse tribunal que reputava democrático.

Alencar observou, inicialmente, que havia duas maneiras de se violar a lei. Não se cumpre a lei quando uma ação contraria um postulado legal geral. E também não se cumpre a lei quando se omite em relação a seu efetivo cumprimento. Para Alencar, a Constituição de 1824 era recorrentemente violada e ofendida. Vários de seus princípios de grande alcance eram esquecidos ou desprezados. A indiferença para com o Tribunal do Júri era um exemplo desse desrespeito.

Escrevendo quase meio século da outorga de Constituição de 1824, queixava-se de que pouco fora até então realizado para que se organizasse, efetivamente, o Tribunal do Júri. Ao dissertar sobre a natureza do Tribunal do Júri argumentava que se tratava de um tribunal de forte representatividade, que prestigiava e realizava o modelo democrático. Argumentou no sentido de identificar no júri, e na soberania de seus vereditos, um importante instrumento de realização do ideal democrático.

Insistia no Tribunal do Júri como esperança para julgamentos democráticos. Observava que passados 43 anos depois da outorga (Alencar denominava promulgação) da Carta de 25 de março, estava-se muito longe da realidade da doutrina constitucional, que encerrava em matérias judiciais a mais bela expressão das democracias. As reformas do processo, ocorridas a partir da década de 1830, não conseguiram realizar a determinação constitucional para que contássemos com um Tribunal do Júri que funcionasse — inclusive — para questões cíveis. Denunciava que havia no silêncio e na oposição do legislador uma grave lacuna. Não teria havido, até então, uma tentativa seria de se realizar, como determinado, o mandamento constitucional.

Argumentava que se o preceito constitucional do Tribunal do Júri fosse inexequível ou nocivo, deveria ter sido revogado pelos meios competentes, isto é, por alteração legislativa. A alteração da Constituição deveria ter sido efetivada. A mera omissão comprovava, na denúncia de Alencar, forte desrespeito para com a Constituição então vigente. Essa violação era confirmada, e assim a situação se manteria, até que se organizasse o júri para o julgamento de matérias não necessariamente criminais.

Desafiava os argumentos que sustentavam que o Tribunal do Júri para causas do cível era de pouca eficiência, o que não justificaria sua implantação. Para Alencar, essa linha de raciocínio tornava inexequível a regra constitucional. Se houvesse defeitos na fórmula então vigente, argumentava, soluções deveriam ser buscadas para a correção. O júri teria atingido um ponto de muito descrédito no Brasil. No entender de Alencar, pretendia-se restringir o alcance de um instituto verdadeiramente democrático.

Alencar fixou o que denominou de princípios cardeais do júri. Seus membros deveriam ser designados por sorteio. Esse método alcançaria o maior conjunto de possibilidades de uma representação ideal do meio social. Haveria, assim, o rompimento de todas as formas de solidariedade de interesses e de afinidades em uma determinada localidade. O conselho do júri formado por sorteio atuaria como uma fórmula de pretensão a qualquer perigo de suspeição ou impedimento, ainda que, naturalmente, sujeito ao resultado do próprio sorteio. Nesse último caso, tinha-se o risco de uma situação que não se poderia de antemão controlar.

O sorteio alcançaria uma base larga de representação. Refletiria uma consciência geral, afastando prejuízos e malefícios de uma consciência única de classe ou de situação, o que recorrente na magistratura de toga, egressa da classe dominante. No século 19 não se conhecia a organização da magistratura como se conhece contemporaneamente. Os juízes eram todos indicados pelas forças políticas.

Chamava a atenção para o fato de que um processo do júri já fora anulado porque se indicou como falta insanável o fato de que as campainhas não foram tocadas nas horas prescritas. O excesso de formalidades retirava a naturalidade do tribunal. No limite, para Alencar, todo cidadão votante seria implicitamente um cidadão jurado. No seu entender, votante e jurado significavam uma cidadania ativa e livre para o exercício da soberania.

Sufrágio universal e júri universal seriam situações semelhantes, que aproximavam o cidadão votante do cidadão jurado. O voto e a participação no júri, segundo Alencar, eram direitos políticos inalienáveis, indicativos de manifestações da soberania nacional. O júri qualificava-se por ser um tribunal de fato. A parte técnica era de competência exclusiva da magistratura, a quem incumbia a dosimetria da pena. O jurado decidia de acordo com a consciência. Não dependia da lei, dos documentos, das testemunhas e dos peritos.

Na medida em que Alencar aproximou o direito ao voto ao direito de ser julgado por um conselho de pares, esforçou-se, nos limites de seu tempo, para fortalecer a relação do cidadão com a soberania política. Não desconheço que defendeu a escravidão, o que condeno. Evito, no entanto, cair no grande pecado do historiador, ou do pretenso historiador: o anacronismo. Os tempos eram outros, ainda que eu entenda que há ações e omissões indesculpáveis.

 


[1] Recomendo a leitura da biografia de José de Alencar, de autoria de Lira Neto, O Inimigo do Rei, São Paulo: Globo, 2006. Imperdível

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