Opinião

Ferrogrão: eficiente, sustentável e constitucional

Autores

  • Rose Mirian Hofmann

    é secretária de Apoio ao Licenciamento Ambiental PPI do governo federal consultora legislativa da Câmara dos Deputados desde 2015 atuando na área de meio ambiente e Direito Ambiental organização territorial desenvolvimento urbano e regional. Já ocupou também o cargo de diretora de Licenciamento Ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) foi especialista em Regulação na Agência Nacional de Transporte Aquaviários (Antaq) e analista ambiental no Ibama e na Companhia Paranaense de Energia (Copel).

  • Natália Resende Andrade

    é procuradora federal consultora jurídica no Ministério da Infraestrutura doutoranda no PTARH/UnB professora em Parcerias Público-Privadas (FESPSP Mackenzie PUC Minas) mestre em Tecnologia Ambiental e Recursos Hídricos (UnB) pós graduação em Direito Constitucional (UGF) e em Direito Tributário (Estácio) especialização em Regulação (LSE e ENAP) graduação em Direito (UniCEUB) Engenharia Civil (UnB) e Ciências Contábeis (FIPECAFI). Cursa Master of Laws (LLM) na University of London.

10 de abril de 2021, 6h04

A relação entre a concessão da Ferrogrão (EF-170) e o Parque Nacional do Jamanxim tem sido pauta de um intenso debate. Alguns pontos, no entanto, às vezes são esquecidos ou não tão comentados, sobretudo, os que concernem às especificidades observadas da Lei nº 13.452, de 19 de junho de 2017. É o que pretende expor o presente artigo.

Sabe-se que cabe ao poder público definir espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, com alteração e supressão somente através de lei, para evitar que haja redução da proteção ambiental sem o devido crivo legislativo (inciso III do §1º do artigo 225 da CF).

O Parque Nacional (Parna) do Jamanxim é uma unidade de conservação (UC) de proteção integral, criada pelo Decreto s/nº de 13 de fevereiro de 2006, dentro da estratégia de "Ordenamento Territorial e Gestão Ambiental", integrante do "Plano de Desenvolvimento Sustentável para a Região de Influência da Rodovia BR-163", Plano BR-163 Sustentável. Localiza-se nos municípios de Itaituba e Trairão, no estado do Pará, com área original total de 862.895,27 hectares [1].

Entre os argumentos presentes na exposição de motivos da Medida Provisória nº 758/2016, que deu origem à Lei nº 13.452/2017, destacam-se: 1) delimitar a poligonal referente ao leito e à respectiva faixa de domínio da BR-163, cuja área já havia sido considerada e excluída no processo de criação do Parna do Jamanxim; e 2) proporcionar soluções a fim de auxiliar na implantação da ferrovia EF-170, de modo a conciliar sua execução com a proteção do meio ambiente.

Nesse sentido, a MP acresceu à faixa de domínio da Rodovia BR-163, que originalmente já contava com cerca de 396 hectares, nova área com aproximadamente 466 hectares para o leito da faixa de domínio da EF-170, resultando em uma faixa de domínio total de 862 hectares.

Para assegurar que a edição da medida provisória não implicasse em prejuízo ambiental à UC, o artigo 4º estabeleceu a ampliação dos limites do Parna do Jamanxim em sua porção sudoeste, com a inclusão de área contígua de aproximadamente 51.135 hectares, que integrava originalmente a Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós, uma UC de uso sustentável de grau de proteção inferior. Tal medida configurou-se em ganho ambiental de extrema relevância.

Ou seja, a proposta prevista na MP nº 758/2016 possui um saldo ambiental substancialmente positivo, caso em que se admite a edição de medida provisória, como bem observado pela ministra Cármen Lúcia em seu voto na ADI 4.717:

"Mais relevante ao caso dos autos, no entanto, são os argumentos utilizados por este Supremo Tribunal para indeferir a medida cautelar na Ação direta de inconstitucionalidade n° 1.516 (relator ministro Sydney Sanches, Tribunal Pleno, DJ 13.8.1999), na qual se impugnava medida provisória que alterou o Código Florestal então vigente, dispondo sobre a vedação do incremento da conversão de áreas florestais em áreas agrícolas na região norte e na parte norte da região centro-oeste.
(…)
Não se pode deixar de observar, contudo, que o precedente acima citado tratava de medida provisória que veiculava norma favorável ao meio ambiente. A mesma orientação não pode ser estendida a normas que importam diminuição da proteção ao meio ambiente equilibrado, especialmente em se tratando de diminuição ou supressão de unidades de conservação, com consequências potencialmente danosas e graves ao ecossistema protegido".

Após o trâmite legislativo, o texto foi aprovado no Congresso Nacional com saldo ambiental negativo. Contudo, veto parcial do presidente da República preservou uma importante área localizada no nordeste do Parna do Jamanxim, mantendo o seu grau de proteção original (unidade de conservação de proteção integral). O resultado líquido, ao fim, a partir das modificações efetuadas no próprio Congresso Nacional e do veto do executivo, foi a desafetação condicionada de 466 hectares, equivalente a 0,054% do limite original do Parna do Jamanxim.

Condicionada, frise-se, uma vez que a Lei nº 13.452/2017 não autorizou qualquer supressão de vegetação ou intervenção que possa causar degradação ambiental, haja vista que a efetiva desafetação do Parna Jamanxim depende necessariamente de prévio licenciamento ambiental, no âmbito do qual é obrigatório, entre outros, a emissão de licença prévia e de instalação, a autorização do órgão gestor do Parna, a emissão de autorização de supressão de vegetação e a autorização de captura, coleta e transporte de material biológico (Abio).

Esta breve explanação já demonstra inequívoca diferença do caso em questão à situação exposta, por exemplo, na ADI 4.717 [2]. Nela, o STF entendeu que "(a)s alterações promovidas pela Lei n° 12.678/2012 importaram diminuição da proteção dos ecossistemas abrangidos pelas unidades de conservação por ela atingidas, acarretando ofensa ao princípio da proibição de retrocesso socioambiental, pois atingiram o núcleo essencial do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado previsto no artigo 225 da Constituição da República".

Como bem destacado pela ministra Cármen Lúcia (então presidente e relatora), em antecipação ao voto que proferiu na ADI 4.717:

"Houve uma medida provisória, em 2012, que alterou os limites dos parques nacionais da Amazônia, dos Campos Amazônicos, Mapinguari, das Florestas Nacionais de Itaituba I, Itaituba II e do Crepori da área de proteção ambiental do Tapajós. Essas áreas foram, portanto, alteradas com o objetivo (…) da construção de cinco hidrelétricas. Isso foi feito por uma medida provisória, a qual foi convertida em lei. (…) Com a identificação dos espaços, houve uma redução bastante extensa do bioma, foram alteradas sete unidades de conservação. Tudo isso por medida provisória".

Em seu voto, a ministra ressalta:

"(…) O que se consumou, na espécie, foi a indevida alteração de reservas florestais à revelia do devido processo legislativo formal, por ato discricionário da presidente da República, em prejuízo da proteção ambiental reservada a Parques Nacionais em área de Amazônia".

Além disso, convém observar que a ADI 4.717 enfrenta o caso de redução de unidades de conservação para viabilizar uso totalmente diverso daquele que justificou sua criação (a inundação para aproveitamentos hidrelétricos e regularização fundiária de posseiros). A MP nº 758/2016 trata do Parque Nacional do Jamanxim, criado justamente para compatibilizar um corredor logístico com a conservação ambiental.

Não se observa, portanto, qualquer inconstitucionalidade no caso Ferrogrão, visto que:

a) A MP nº 758/2016 possui um saldo ambiental substancialmente positivo;

b) A desafetação condicionada de 466 hectares (0,054%) foi definida pela própria manifestação do Poder Legislativo; e

c) Não há dano ambiental iminente, considerando que a autorização constante da lei se refere à realização de estudos ambientais, que dependem de análise e manifestação do órgão ambiental competente, o que levará em consideração as contribuições a serem colhidas em audiências públicas e procedimentos de consulta específicos.

De forma sequencial e para destacar as especificidades do caso:

a) A Lei nº 13.452/2017 promoveu a desafetação condicionada acima mencionada para permitir a realização de estudos necessários à implantação da ferrovia EF-170. Ou seja, há uma finalidade específica, não sendo permitido qualquer outro uso imediato que possa causar degradação na área;

b) A área que não for efetivamente ocupada pela ferrovia ou por sua faixa de domínio volta a ser destinada ao Parque Nacional, dispensados estudos prévios ou consulta pública que seriam exigidos para a criação de uma nova UC (§2º do artigo 2º da Lei nº 13.452/2017);

c) A efetiva implementação da ferrovia depende de prévio licenciamento ambiental, a ser instruído com estudo de impacto ambiental e relatório de impacto ambiental (inciso IV do §1º do artigo 225 da CF);

d) O estudo de impacto ambiental, além de atender à legislação, deverá contemplar todas as alternativas tecnológicas e de localização de projeto, confrontando-as com a hipótese de não execução do projeto (artigo 5º, caput e inciso I, da Resolução Conama nº 1, de 23 de janeiro de 1986);

e) O licenciamento da ferrovia somente poderá ser concedido mediante autorização do órgão gestor do Parna Jamanxim, considerando que, embora seja projetado para fora de seus limites (dada a desafetação), poderá apresentar sobreposição com a zona de amortecimento da UC (§3º do artigo 36 da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000);

f) Nos termos do mesmo dispositivo da Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação de Natureza (SNUC), caso a ferrovia seja considerada viável e sua licença ambiental emitida, o empreendedor precisará apoiar a implantação e manutenção de unidade de conservação do grupo de proteção integral e, se efetivamente afetado, o Parna Jamanxim deverá ser um dos beneficiários da compensação;

g) Caso sejam superadas todas essas exigências, qualquer supressão de vegetação ainda depende da emissão de licença de instalação e de autorização de supressão de vegetação, para a qual se exige, a título de compensação mitigante, plantio compensatório, que em nada se confunde com a compensação ambiental do SNUC, mas a ela se soma no processo de licenciamento ambiental; e

h) Por fim, ainda que o empreendimento conte com licença de instalação e autorização de supressão de vegetação, também dependerá da emissão prévia de autorização para captura, coleta e transporte de material biológico (Abio), conforme prescreve a Instrução Normativa nº 8, de 14 de julho de 2017, de forma que a supressão de vegetação não provoque perturbação desproporcional à fauna associada.

Cabe também ressaltar que o traçado da ferrovia é indicativo. Ele deverá ser necessariamente submetido ao órgão gestor do parque nacional e à autoridade licenciadora. Observa-se que, sempre que possível, o traçado segue paralelo à rodovia, priorizando áreas antropizadas, nas quais se espera um impacto ambiental mais reduzido. A partir do início da elaboração dos estudos ambientais, que só foi possível em função da publicação da medida provisória [3], alternativas de traçado podem ser melhor avaliadas durante o processo de licenciamento.

Não há de se falar, portanto, em retrocesso socioambiental. Dado o grande potencial de geração de efeitos socioambientais positivos que a EF-170 possui, em contraste com a diminuta desafetação de área do parque nacional, entende-se que o retrocesso poderá haver, tanto do ponto de vista ambiental quanto da segurança viária, caso obstada a implantação da ferrovia.

Assim como as unidades de conservação foram criadas no entorno da rodovia para mitigar seus impactos, a Ferrogrão também vem sendo planejada para prover infraestrutura mais sustentável, conferindo maior eficiência na movimentação de cargas, com menor impacto equivalente, seja em matéria de poluição atmosférica ou mesmo em relação ao risco de acidentes (com impactos sobre vidas humanas e na biodiversidade).

A dinamicidade na gestão do território é uma realidade, a qual não segue sem controle, mas balizada nos limites impostos pela Política Nacional do Meio Ambiente, instituída pela Lei nº 6.938/1981, cujo rol de objetivos é inaugurado com a busca pela compatibilização do desenvolvimento econômico e social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico.

Ora, reequilibrar a matriz de transportes em busca de alternativas mais sustentáveis ao país segue justamente essa diretriz.

 


[1] De acordo com informações obtidas no site de seu órgão gestor, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

[2] Impende também pontuar que a medida provisória em tela é anterior ao julgamento da ADI 4.717, que foi ultimado apenas em 2018, não havendo, portanto, sinalização jurisprudencial de qualquer inviabilidade jurídica no uso de medidas provisórias para alterações nos limites de unidades de conservação. Mesmo assim, a MP n° 758/2016 trouxe a legítima preocupação em não incorrer em retrocesso ambiental, com saldo de afetação significativamente positivo.

[3] Corroborando os requisitos de urgência e relevância adequadamente registrados na correlata exposição de motivos, notas técnicas e pareceres jurídicos elaborados à época. Outra diferença, frise-se, em relação à ADI 4.727, em que se discutiu tais requisitos.

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    é secretária de Apoio ao Licenciamento Ambiental, PPI do governo federal, consultora legislativa da Câmara dos Deputados desde 2015, atuando na área de meio ambiente e Direito Ambiental, organização territorial, desenvolvimento urbano e regional. Já ocupou também o cargo de diretora de Licenciamento Ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), foi especialista em Regulação na Agência Nacional de Transporte Aquaviários (Antaq) e analista ambiental no Ibama e na Companhia Paranaense de Energia (Copel).

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