Observatório constitucional

Por um 'pouco de sossego jurídico': (des)caminhos do STF na ADPF 811

Autor

  • Marcelo Casseb Continentino

    é doutor em Direito pela UnB/Università degli Studi di Firenze professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Ufersa procurador do estado de Pernambuco advogado e sócio efetivo do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

10 de abril de 2021, 8h01

Não é de hoje que as questões condizentes com a salvação da alma (ou sua perdição) e aqueloutras com a legalidade e o Direito apresentam-se ao espaço público numa tensão paradoxal e/ou complementar com largas pretensões normativas, provocando mudanças sensíveis na vida cotidiana das pessoas e nas suas mais íntimas convicções.

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O professor André Rufino já nos brindou, nesta mesma coluna, com belo texto sobre a reforma luterana e o constitucionalismo, dando-nos luzes sobre como a religião há mais de 500 anos vem exercendo significante influência na construção e crítica do Estado moderno.

É bem verdade que, desde os primórdios da faculdade de Direito, somos apresentados às categorias conceituais distintivas do que é o Direito e de como se distingue de outros tipos de normas éticas e morais. As tradicionais lições de Introdução ao Estudo do Direito pareciam sugerir que o bom domínio dos caracteres e atributos da norma jurídica (ou do campo próprio do Direito) dirimiria quaisquer dúvidas acerca da seara própria do jurídico (ou lícito) e do religioso (ou pecaminoso).

O fato é que a realidade é bem mais complexa do que isso e, sendo a Constituição uma norma que sintetiza a complexa miríade de identidades constitutivas de uma sociedade plural (Michel Rosenfeld), fica muito claro que a religião é um aspecto inerente à norma fundamental. É dizer, a religião é direito, e a laicidade é princípio de imparcialidade e neutralidade do Estado democrático de Direito, impondo a todos, religiosos ou não, o tratamento com igual consideração e respeito.

O julgamento da ADPF 811, relatada pelo ministro Gilmar Mendes, em paralelo da (não ratificação) da liminar deferida na ADPF 701, sobre supostas restrições impostas pelo poder público ao livre e pleno exercício da liberdade religiosa, resgata com toda sua força esse debate jurídico-religioso, como fez questão de ressaltar o ministro Alexandre de Moraes, que, desconhecendo qualquer conflito entre a liberdade religiosa e o direito à vida e à saúde no caso sobre a proibição de realização de missas e cultos presenciais, procurou, com certa ironia talvez, demonstrar o desacerto das premissas dos proponentes da ADPF à luz de exemplos seculares de diversos líderes religiosos ao defrontarem sucessivas epidemias que vitimaram milhares de pessoas.

Outras graves dificuldades que vêm marcando a trajetória do STF, a nosso ver, também marcam o processo e julgamento da ADPF 811, sendo a principal aquela de que talvez menos se falou, mas que mais justifica os desencontros aqui identificados.

Antes, contudo, devemos voltar um pouco atrás.

O Plenário do STF, na ADI 6341, decidiu que estados e municípios têm competência para legislarem e adotarem medidas sanitárias voltadas ao enfrentamento da Covid-19, conforme enfaticamente ressaltado no voto do relator ministro Gilmar Mendes. Sob a ótica do federalismo cooperativo, até mesmo a prerrogativa de decretar o lockdown sem prévia autorização do Ministério da Saúde, conforme previsão da Lei nº 13.979/2020 (ADI 6343), reconheceu-se a governadores e prefeitos.

Em seguida, o presidente do STF, na SS 5476 MC/PE, suspendeu os efeitos de liminares do Tribunal de Justiça de Pernambuco, que, sob a alegação da violação ao livre exercício de cultos religiosos (artigo 5º, VI, da Constituição Federal), autorizou a realização de missas e cultos presenciais durante o período de 18 a 28 de março de 2021, o que fora temporariamente proibido pelo Decreto nº 50.433, de 15/3/2021, do estado de Pernambuco [1].

Mais uma vez, com base no precedente da ADI 6341, em que o STF reafirmou a competência de todos os entes federativos para dispor sobre funcionamento de serviços públicos e demais atividades em geral no âmbito da proteção à vida e à saúde pública voltada ao enfrentamento da Covid-19, o ministro Luiz Fux suspendeu os efeitos das decisões do TJPE, ressaltando a proporcionalidade e razoabilidade da proibição temporária da realização de cultos presenciais no momento excepcional em que vivemos.

Segue, em paralelo, a propositura da ADPF 701 pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), em junho de 2020, com o objetivo de suspender os dispositivos do Decreto nº 31/2020, do município de João Monlevade (MG), "bem como dos demais Decretos Estaduais e Municipais que determinam a suspensão/vedação/proibição de atividades religiosas e do funcionamento dos templos religiosos sem qualquer ressalva".

Em ação similar, a Anajure ajuizou a ADPF 703, em que questionou a constitucionalidade do Decreto nº 73/2020, do município de Capim Grosso (BA), requerendo sua declaração de inconstitucionalidade, bem como a "dos demais dispositivos presentes em outros Decretos Estaduais e Municipais que estabeleçam toques de recolher, de modo a se proteger o direito de locomoção e de liberdade religiosa dos brasileiros".

O plenário do STF, na sessão virtual de 5/2/2021 a 12/2/2021, que contou com a participação do ministro Kassio Nunes, à unanimidade e na esteira de sua pacífica jurisprudência, decidiu que a Anajure carecia de legitimidade ativa ad causam para propor ADPF, por não representar categoria profissional ou econômica.

Sendo-lhe redistribuída a ADPF 701 após aposentadoria do decano do STF, ministro Celso de Mello, em 5 de novembro de 2020, a despeito do artigo 5º da Lei nº 9882/1999, o ministro Kassio, no último dia 2, em pleno feriado da Semana Santa e quase um ano após a propositura da ação com pedido de tutela de urgência, deferiu monocraticamente liminar para determinar que todos "os Estados, Distrito Federal e Municípios se abstenham de editar ou de exigir o cumprimento de decretos ou atos administrativos locais que proíbam completamente a realização de celebrações religiosas presenciais, por motivos ligados à prevenção da Covid-19".

A justificar o perigo da demora, o relator limitou-se a indicar dados estatísticos do IBGE: "Estamos em plena Semana Santa, a qual, aos cristãos de um modo geral, representa um momento de singular importância para as celebrações de suas crenças — vale ressaltar que, segundo o IBGE, mais de 80% dos brasileiros declararam-se cristãos no Censo de 2010". Contudo, a Lei nº 9882/1999 somente autoriza o relator a conceder liminar ad referendum nos casos de extrema urgência, de perigo de lesão grave ou de recesso do tribunal, o que não nos parece ser a hipótese (embora da tenha-se receado o perigo da demora reverso).

Em outras palavras, em uma decisão cuja compatibilidade com a Lei nº 9882 seja discutível, não se respeitou o precedente (que é vinculante) da ADI 6341, da ADI 6343 e, sobretudo, o da ADPF 703, de cujo julgamento o referido relator participou e votou favoravelmente à falta de legitimidade processual da Anajure para propositura de ADPF. Em todas essas ações, as decisões são vinculantes, pois, como lembrou a ministra Cármen Lúcia ao final de seu voto na ADPF 811, por força da parte final do §2º do artigo 102 da Constituição Federal, os demais órgãos do Poder Judiciário são a elas vinculados.

Cuida-se, pois, de uma decisão inadmissível, especialmente para um ministro que, dias atrás, quando sabatinado pelo Senado Federal, ressaltou sua preferência por julgamentos colegiados.

E ainda porque, dado o pedido tecnicamente mal formulado, o relator proferiu julgamento extra petita sob o argumento de que a "natureza unitária da tese jurídico-constitucional e da necessidade de uniformidade de tratamento do tema em todo o território nacional", ressuscitando uma tese (teoria da eficácia transcendente dos motivos determinante da decisão em sede de controle abstrato) há muito superada no STF.

Em seguida, noticiou-se em portal da internet [2] que outro ministro, em entrevista a emissora jornalística, teria criticado a decisão do colega: "O novato está assanhado, está se sentindo". Caso a afirmação tenha ocorrido em tais termos, não podemos deixar de questionar-nos, para além das liturgias que hão de ser observadas, a respeito do teor do disposto no inciso III do artigo 36 da Lei Complementar nº 35/1979 (Lei Orgânica da Magistratura), que veda ao magistrado manifestar-se sobre processo pendente de julgamento e, ainda, exercer juízo depreciativo sobre decisões de colegas.

Não obstante, o que nos chamou ainda mais a atenção em todo esse julgamento foi o apelo sincero da ministra Cármen Lúcia, que alertou seus pares sobre o problema do descumprimento das decisões do STF, especialmente em relação às competências reconhecidas aos estados e municípios no campo da proteção à saúde pública e à vida, pelos demais órgãos do Judiciário, nos termos do §2º do artigo 102 da Constituição.

Em sua ponderação, as decisões judiciais que não têm respeitado os precedentes vinculantes do STF, além de favorecerem a judicialização da saúde, têm gerado não apenas a insegurança jurídica, mas também, o que seria muito pior, a incerteza para os cidadãos e gestores e administradores públicos que não saberiam mais como agir. A ministra finaliza seu substancioso voto clamando por um "pouco de sossego jurídico" e pelo fim do "desassossego muito grande nessa matéria".

E, mais uma vez, o STF depara com seu próprio fantasma, o de não garantir a segurança jurídica por meio de sua jurisdição. Ressalvamos que Direito e religião têm uma relação antiga, tão antiga quanto a história é possível rastrear. Não é de se esperar que o STF resolva em definitivo essa questão, expiando todas as dúvidas e firmando o indiscutível consenso no espírito das pessoas em assunto tão delicado e complexo.

Mas é possível reconhecermos que a partir das atitudes judicantes individuais e da forma respeitosa aos procedimentos normativos com que o tribunal e seus ministros integrantes atuem, especialmente em respeito à integridade dos precedentes, o tribunal poderá escrever uma história jurisprudencial diferente nesse e noutros temas, em face da qual o cidadão e qualquer agente público possam assossegar-se.

Não há dúvida de que o STF tem sua imagem, hoje mais do que nunca, refletida nas imagens de cada um de seus ministros. Poderíamos tomar de empréstimo frase lapidar do já saudoso historiador do Direito Público, Michael Stolleis, quando dizia que "a dignidade do tribunal baseia-se na personalidade do juiz", para afirmar que a dignidade e a autoridade das decisões do STF repousam no valor que os próprios ministros atribuem aos respectivos precedentes e na forma como os aplicam em seus casos julgados.

Estamos, portanto, diante de uma questão muito mais concernente ao campo da ética judicial do que propriamente do Direito e da jurisprudência constitucional.

E, como acabamos de aprender com esse julgamento da ADPF 811, as decisões do STF mais do que idôneas a assegurarem a liberdade religiosa, mais do que necessárias a promoverem o direito à saúde pública, mais do que imprescindíveis a garantirem a efetividade da Constituição Federal, têm o condão de salvar vidas em concreto, vidas de pessoas humanas.

 


[1] Contudo, o próprio decreto ressalvou a possibilidade de abertura das igrejas, templos ou outros recintos religiosos para a realização de atividades administrativas e de preparação, gravação e transmissão de missas, cultos e demais celebrações religiosas pela internet ou por outros meios de comunicação.

Autores

  • é procurador do Estado de Pernambuco, doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB)/Università degli Studi di Firenze, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco (FCAP/UPE) e do programa de pós-graduação em Direito (mestrado) da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa) e sócio efetivo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

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