Opinião

Ementismo tecnológico, o problema da construção do dataset

Autor

  • Luís Manoel Borges do Vale

    é procurador do estado de Alagoas nomeado procurador federal ex-advogado da Petrobras doutorando pela Universidade de Brasília (UnB) mestre em Direito Processual pela Universidade Federal de Alagoas especialista pela Ohio University professor de Direito Processual Civil na Pós-Graduação da Uerj na Escola Superior da Magistratura de Alagoas (Esmal) na Escola da Advocacia-Geral da União e nos cursos ATC e Forum e membro da Internacional Association of Privacy Professionals (IAPP) do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (Annep).

10 de abril de 2021, 11h21

A cultura do ementismo está enraizada há tempos no Brasil. Nos mais variados quadrantes de aplicação do Direito, costuma-se tomar ementa por precedente, como se a falta de apuro conceitual não tivesse reverberações de ordem prática. Basta compulsar algumas petições e decisões para verificar que a busca pela aplicação de um padrão decisório vinculante se traduz na evocação de resumos dos julgados, os quais, na maioria dos casos, não refletem os fundamentos determinantes.

Com a edição do Código de Processo Civil de 2015, houve um aprofundamento teórico e prático da temática dos precedentes judiciais, chegando-se a propalar a ideia da existência de um verdadeiro sistema precedental. Afinal de contas, o legislador não só ampliou o espectro de padrões decisórios cogentes (artigo 927, do CPC), mas também se preocupou em delimitar os parâmetros construtivos (exemplo: determina-se, no âmbito do incidente de resolução de demandas repetitivas, que sejam levados em consideração todos os argumentos favoráveis e contrários à tese jurídica discutida — artigo 984, §2º, do CPC) e aplicativos das decisões paradigmas (exemplo: não se considera fundamentada a decisão que deixa de seguir precedente, sem demonstrar a existência de distinção ou superação do entendimento).

Ressalte-se a peculiaridade no trato dos precedentes judiciais, in terrae brasilis, na medida em que as decisões são consideradas padrões decisórios vinculantes, a priori, pelo legislador, diferentemente do que ocorre em países outros como Estados Unidos e Inglaterra, nos quais um pronunciamento jurisdicional torna-se paradigmático, quando o juiz do caso futuro vislumbra em manifestação passada um verdadeiro arquétipo decisório hábil a orientar o julgamento de situação análoga.

Malgrado o burilamento sistêmico empreendido na análise dos precedentes judiciais, ainda subsiste a clássica confusão entre ementa e precedente, demonstrando que continuamos a enxergar o novo com a lente embaçada da antiga práxis reducionista.

Portanto, é importante destacar que o precedente judicial é a decisão proferida em determinado caso, que ganha foro paradigmático, na medida em que pode se tornar elemento de referência para decisões futuras, haja vista que nela se encontra inserida uma tese jurídica passível de ser universalizável, no bojo de circunstâncias fáticas que embasam a controvérsia [1].

Assim, o precedente judicial é composto pela ratio decidendi/holding (fundamentos determinantes), pelo substrato fático e pelos argumentos obiter dictum (ditos de passagem ou de forma lateral). Convém destacar, por oportuno, que a parte vinculante do precedente é a que se denomina ratio decidendi/holding.

Lado outro, a ementa constitui apenas um resumo do julgado e, diante de sua concisão, nem sempre traduz a ratio decidendi, de tal sorte que tomar ementa por precedente é correr o risco de aplicar entendimento completamente avesso ao que foi pronunciado pela corte (nos termos do que dispõe o artigo 943, §1º, do CPC, todo acórdão conterá ementa).

Resta evidente, em uníssono com as considerações pretéritas, que a aplicação escorreita do precedente obrigatório depende da leitura adequada dos seus fundamentos determinantes, ou seja, é necessário depurar, nos contornos da motivação, aquilo pode ser considerado holding.

Ocorre que, como se disse, há uma tendência simplificadora, no Direito brasileiro, de tal sorte que é imprescindível uma mudança de cultura jurídica, com o escopo de tornar efetivo o sistema de precedentes judiciais.

Não bastasse a extrema dificuldade relatada, tem-se implementado, no âmbito dos tribunais, uma teoria tecnológica dos precedentes judiciais.

É certo que vivenciamos um movimento de franca expansão do uso de novas tecnologias, principalmente a inteligência artificial, a fim de promover, em certa medida, uma otimização do trabalho dos profissionais da área jurídica. De acordo com pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), no Brasil, já existem 64 projetos de inteligência artificial espalhados por 47 tribunais [2].

Ocorre que a maioria desses projetos é voltada à aplicação de precedentes judiciais, tais como os sistemas Victor, do Supremo Tribunal Federal, Athos e Sócrates, do Superior Tribunal de Justiça.

No entanto, deve-se ficar claro que a aplicação do padrão decisório vinculante não se faz de forma automática ou mecanicista, na medida em que se destaca como um ato hermenêutico que envolve a compreensão, como se disse, dos lineamentos da holding e de sua possível incidência em determinado caso, consideradas as circunstâncias fáticas que o envolvem.

Fica evidente, portanto, que as reduções aplicativas dos precedentes judiciais, através de ferramentas de inteligência artificial, ignoram, por vezes, o natural caminho discursivo para a constitucional incidência da decisão-quadro.

Um dos principais problemas relacionados à aplicação tecnológica dos precedentes judiciais e que tem passado despercebido de boa parte das análises doutrinárias, diz respeito à construção do dataset (dataset é a base de dados utilizada para o adequado treinamento da ferramenta de inteligência artificial). Afinal de contas, se o referencial adotado para o uso do sistema computacional são as ementas, corre-se o risco da implementação de um verdadeiro ementismo tecnológico.

Nesse sentido, veja-se a transcrição das funcionalidades do sistema Athos do STJ [3]: "Atualmente, o STJ conta com uma plataforma de inteligência artificial, Athos, que foi treinada com a leitura de aproximadamente 329 mil ementas de acórdãos do STJ entre 2015 e 2017 e indexou mais de 2 milhões de processos com 8 milhões de peças, possibilitando o agrupamento automático por similares, a busca por similares, o monitoramento de grupos e a pesquisa textual".

Com efeito, fica claro que a busca desenfreada pela eficiência jurisdicional tem desembocado em reducionismos que podem vir a malferir direitos e garantias processuais fundamentais. Tomar ementa por precedente, em escala tecnológica, pode implicar na incidência de padrões decisórios a casos díspares e no seu afastamento em situações que exigiriam a sua aplicação.

Desse modo, é fundamental que possamos implementar uma curadoria do dataset atenta às exigências do sistema de precedentes, principalmente no que tange à definição dos exatos limites dos fundamentos determinantes.

 


[1] VALE, Luís Manoel Borges do. Precedentes vinculantes no processo civil e a razoável duração do processo. Rio de Janeiro: GZ, 2019, p. 13.

Autores

  • é procurador do Alagoas, nomeado procurador federal, ex-advogado da Petrobras, presidente da Comissão de Inteligência Artificial aplicada à Advocacia Pública, mestre em Direito Processual pela Universidade Federal de Alagoas, especialista pela Ohio University, professor de Direito Processual Civil na Escola Superior da Magistratura de Alagoas (Esmal), membro da Internacional Association of Privacy Professionals (Iapp), do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (Annep).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!