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Natan Zabotto: Manifestação em defesa da advocacia criminal

9 de abril de 2021, 20h25

Por Natan do Prado Zabotto

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"Se um pecado cometi na profissão, foram as poucas vezes em que acusei. Das defesas não me arrependo de nenhuma"
(Evandro Lins e Silva)

Com essa inspiradora frase do saudoso criminalista Evandro Lins e Silva iniciamos esta necessária defesa. Cuida-se de defesa especial: figura como patrocinada, nesta ocasião, a própria advocacia criminal, essa incompreendida e muitas vezes mal vista profissão, já cansada de se sentar injustamente no banco dos réus sob a leviana acusação, sustentada por incautos acusadores, de ser favorável ao crime.

Como manifestação inicial, cabe relembrar que todo advogado, ao receber o documento que lhe autoriza o exercício profissional, presta um juramento perante a Ordem dos Advogados do Brasil consistente na sonora repetição das seguintes palavras: "Prometo exercer a advocacia com dignidade e independência, observar a ética, os deveres e prerrogativas profissionais e defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas".

No mesmo tom, preconiza o artigo 2º do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que "o advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do Estado democrático de Direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce".

O artigo 2º da Lei Federal 8.906/94 é igualmente esclarecedor ao estabelecer que o advogado é indispensável à administração da Justiça; no seu ministério privado, presta serviço público e exerce função social; no processo judicial, contribui, na postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao convencimento do julgador, e seus atos constituem múnus público; e, no exercício da profissão, é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites da lei.

Semelhante conteúdo, dada a sua singular relevância, foi alçado a patamar constitucional. Prescreve, com efeito, o artigo 133 da Constituição Federal que "o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei".

Tais regras, levadas a sério pela classe, a rigor esvaziariam a necessidade de continuação desse texto, na medida em que revelam de maneira muito elucidativa qual é o verdadeiro papel da advocacia criminal em um Estado democrático de Direito.

Não obstante, vivenciamos um momento em que ainda é necessário reafirmar o óbvio, daí a necessidade de prosseguirmos com o trabalho defensivo para desmistificar alguns factoides que, por má-fé ou ignorância, ainda são veiculados na imprensa e nas redes sociais em detrimento da advocacia criminal.

A título de exemplo e ilustração, o próprio defensor subscritor foi atacado recentemente em uma rede social por uma pessoa que vociferou, indignada, que "este é o país das bananas os advogados enriquecem em cima de um supremo totalmente corrompido q v6 só ganham dinheiro e o povo de bem só se fodem com a pilantragem imensa pra soltar bandidos (sic)".

Esse tipo de comentário deselegante, equivocado e ofensivo não ofende somente este subscritor individualmente, mas insulta a dignidade da advocacia criminal como um todo e, pior, tem ganhado corpo e infelizmente representa o pensamento irrefletido e desinformado de grande parcela da sociedade civil.

As pessoas que fazem parte dessa parcela certamente ignoram que o ato de defender um investigado ou acusado da prática de crime sendo ele inocente ou culpado não significa estar de acordo com a conduta criminosa a ele atribuída, muito menos de ser conivente com a impunidade.

Talvez essas pessoas não saibam que é prerrogativa do advogado não um benefício próprio, mas uma garantia do representado , "assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração apresentar razões e quesitos" (artigo 7º, XXI, "a", da Lei Federal 8.906/94).

Eventualmente essas pessoas não conhecem o artigo 21 do Código de Ética e Disciplina da OAB, o qual determina que  direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado", nem o artigo 31, §2º, da Lei federal 8.906/94, que prescreve que "nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão".

Quiçá essas pessoas desconhecem que, sem a presença da advocacia criminal, não é possível sequer a inaugurarão de um processo criminal; não sabem que um culpado de cometimento de crime não pode ser processado e menos ainda condenado criminalmente se não houver ampla e efetiva defesa em seu favor, consoante determina o artigo 261 do Código de Processo Penal: "Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor".

Noutras palavras, essas pessoas ainda não se deram conta de que, na verdade, é na hipótese de ausência de defesa criminal que estaria escancarada a porteira da impunidade e instaurado o caos social e o arbítrio. A advocacia criminal nunca foi cúmplice do delito; ela é, isso sim, fiel aliada do Estado democrático de Direito e da Justiça.

Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, diz o artigo 6º da Lei Federal 8.906/94. Todos devem trabalhar na busca da realização de julgamentos justos.

Exercer a advocacia criminal, longe de defender o crime, é defender o direito de qualquer pessoa de ter acesso aos autos de investigação e conhecimento prévio do teor da acusação e da integralidade dos elementos probatórios que a instrui; direito a um julgamento público, célere e justo; direito ao contraditório e à ampla de defesa; direito de ser presumido inocente até o trânsito em julgado da condenação; direito de não ser processado e julgado com base em leis ex post facto; direito à paridade entre as partes; direito de não ser processado com fundamento em provas ilícitas; direito de não ser julgado por juiz parcial; direito à observância do princípio do juiz natural; direito ao silêncio; direito à produção de prova; direito de presença e de participação ativa nos atos processuais; direito de consignar as razões defensivas em ata; enfim, direito ao justo e devido processo legal assegurado pela Constituição Federal e pelos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil.

Mas, mais do que isso, a advocacia criminal é exercício de compreensão dos dramas humanos; é servir quem sem coloca na condição de necessitado de justiça, seja vítima ou acusado; é ajudar na cura de feridas profundas e dar voz e vez a quem não as possui.

Exercer a advocacia criminal é lutar por justiça social; é defender o funcionamento harmônico e a higidez das instituições democráticas e dos poderes da República; é lutar contra o discurso despótico da punição a qualquer preço e do uso do Direito Penal como panaceia de todos os males; é lutar pela concretização de políticas criminais debatidas com seriedade e profundidade capazes de efetivamente garantir a melhoria da segurança pública e a redução dos altos índices de criminalidade, que não interessam a ninguém.

Em síntese, o papel da advocacia criminal é resistir e conter o abuso de poder, venha ele de onde vier, além de colaborar com a efetivação de direitos e com a melhoria da vida em sociedade. A advocacia criminal é a última barreira entre o Estado autoritário e os direitos individuais.

Por isso, cabe advertir os seus detratores sobre a gravidade que representa ser alcançado pelo tentáculo mais agressivo do Estado, que pode atingir a todos e é capaz de tirar, literalmente, tudo de uma pessoa: liberdade, convívio familiar, patrimônio, dignidade, honra, paz, direitos políticos, saúde e até mesmo a vida.

O velho discurso de que a advocacia criminal é transigente com o crime é falacioso e antidemocrático. Ele nos leva a bradar, enganados, pelo fim de direito próprio e universal que assiste a todos: o sacrossanto direito de defesa, garantido pelos artigos 10 e 11 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, abrindo margem, ainda, para um perigoso exercício de relativização de outras garantias de índole constitucional.

Nesse particular, é relevante a lição de Vitorino Prata Castelo Branco: "Não há nenhuma restrição ao advogado que defende, seja o réu qual for, até mesmo o mais brutal; pelo contrario, é um dever do advogado criminalista, mesmo porque não está ele defendendo o crime em si, está realmente defendendo o direito de todo homem defender-se. Se não fosse respeitado esse direito, não haveria nenhuma segurança para o cidadão honesto, porque cada um de nós estaria sujeito a ser condenado por ação que não cometeu. Quando o advogado está defendendo um acusado, está defendendo, na verdade, todos os brasileiros, todos os cidadãos do mundo, porque está defendendo um principio universal, o direito de cada criatura humana defender-se. O papel do advogado, na vida social e jurídica, é pois nobre e importante" [1].

Por fim, não se pode esquecer que a advocacia criminal esteve presente em todas as conquistas civilizatórias e enfrentou com galhardia e coragem a tirania das ditaduras que assolaram o Brasil, evitando muitas vezes a morte, a tortura e o desparecimento de presos e perseguidos políticos, na busca incessante pela democracia hoje consolidada.

Diante do exposto, fica o apelo para que se compreenda, respeite e absolva a advocacia criminal. Além dos muitos argumentos de caráter jurídico apresentados, não há interesse social algum em condenar uma profissão que tanto lutou e ainda luta em prol da sociedade civil.

 É a defesa.


[1] CASTELO BRANCO, Vitorino Prata, como se faz uma defesa criminal, Saraiva, 1989.