Opinião

O crime de contratação direta ilegal na nova Lei de Licitações

Autores

  • Guilherme Carvalho

    é doutor em Direito Administrativo mestre em Direito e políticas públicas ex-procurador do estado do Amapá bacharel em administração sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

  • Octavio Orzari

    é sócio do escritório Machado de Almeida Castro & Orzari mestre e doutorando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca.

8 de abril de 2021, 18h12

Na parte criminal da Lei nº 8.666/93, revogada pela Lei nº 14.133, do último dia 1º (nova Lei de Licitações), a dispensa indevida de licitação constituía crime (artigo 89 da Lei nº 8.666/93), remetendo-se ao juízo criminal a interpretação de atos administrativos quanto à urgência e à correta fundamentação da conveniência e oportunidade do administrador em ter dispensado a licitação para contratar.

Como se percebe, trata-se de tipo penal que é integrado por normas de Direito Administrativo atinentes às exceções à regra de contratação mediante licitação (artigo 37, XXI, da CF). É da essência do tipo penal, portanto, ser "assessorado" por normas e atos de outro ramo jurídico (atos administrativos verificados no caso concreto), o que acarreta maior complexidade para a verificação da culpabilidade do investigado ou acusado.

Tal sistemática remanesce com a edição da Lei nº 14.133/2021, que acrescentou o artigo 337-E ao Código Penal, agora não mais com as condutas ativas de "dispensar" e "inexigir", mas, sim, com as condutas de "admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei".

Com isso, o legislador pretendeu ampliar o alcance do tipo penal para todo agente que intervier no procedimento de contratação direta com a intenção de burlar a lei e causar prejuízo ao poder público. Em um primeiro e rápido olhar sobre a redação do tipo penal, observe-se, poder-se-ia questionar o uso da expressão verbal "dar causa" com o objetivo de abarcar a maior amplitude de condutas, pois a teoria da equivalência dos antecedentes (conditio sine qua non) do artigo 13 do CP e a regra da responsabilização conforme a culpabilidade dos coautores e partícipes do artigo 29 do CP já cumprem o objetivo dogmático de não deixar espaços descobertos quanto à possibilidade de responsabilização penal.

Outro ponto de reforço punitivo é o aumento da pena, agora entre quatro e oito anos de reclusão, e multa, o que obsta a celebração de acordo de não persecução penal previsto no artigo 28-A do CPP, ficando os investigados vedados de confessar para se verem livres da ação penal, com a imposição de reparação do dano e prestação pecuniária, entre outras sanções que em muito contribuiriam para uma resposta ao ilícito criminal. Quanto à multa, o novo artigo 337-P do Código Penal estabelece que o valor não poderá ser inferior a 2% do valor contratado diretamente.

Existem hipóteses claras para que se configure o crime previsto no novo artigo 337-E do CP, sobretudo quando a contratação direta, que compreende casos de inexigibilidade e dispensa de licitação, ocorre ao arrepio manifesto da lei e há burla de seu procedimento, que se compõe de pareceres técnicos e jurídicos, justificativa da demanda e do preço ("valores praticados pelo mercado", artigos 23 e 75, §6º, da nova Lei de Licitações), razões da escolha do contratado, entre outras formalidades essenciais (artigo 72 da nova lei).

Todavia, há, para além das zonas de certeza, faixas de penumbra, zonas cinzentas, nas quais a incidência do tipo penal não é facilmente verificável.

Cite-se, por exemplo, o caso de uma contratação pública direta em face de emergência (talvez um dos exemplos mais notórios). Nesse caso, a prática ou não do crime dependerá, entre outros fatores, da demonstração da situação emergencial, critério que não é estritamente jurídico e que, mais gravemente, pode ser modificado a depender da interpretação do controlador externo. Observe-se que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), em seu artigo 20, prevê que os órgãos administrativos, de controle e judiciais, não decidirão "com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão".

Nesse contexto, verifica-se que há elementos integrantes do tipo penal do artigo 337-E que são suscetíveis a divergências e a aplicações não isonômicas. Em um cenário maleável a interpretações, a segurança jurídica pretendida pela legalidade estrita penal para a aplicação das severas sanções decorrentes de um crime fica, assim, ameaçada.

Vejamos um singelo caso fictício. Uma ponte em um município de pequeno porte, que liga uma comunidade à cidade, foi rompida por força de eventos naturais. Em tal situação, haveria emergência a ponto de contratar diretamente ou seria necessário proceder à contratação por meio de licitação? Para alguns, a situação clama a contratação direta, porque haveria notória emergência; para outros, o normal seria privilegiar a competitividade e se instaurar o procedimento licitatório cabível, com seus prazos e rito, sem que haja escolha direta de contratados.

Importante consignar que a nova Lei de Licitações, apesar da abrangência e da pena maiores quanto ao crime em tela, intencionou, em um ponto, ser mais benevolente com o gestor público: segundo o artigo 75, VIII, a dispensa de licitação por emergência ou calamidade pública pode se dar para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo de um ano, prazo que era de 180 dias na lei revogada (artigo 24, IV, da Lei nº 8.666/93). Com relação à avaliação desse prazo, quem, como e quando a fará, pode haver insegurança jurídica, que é mais ainda nefasta quando se trata do cerceamento da liberdade do indivíduo.

Para agravar essas iniquidades, o artigo 193 da nova Lei de Licitações revoga a parte criminal da Lei nº 8.666/93, mas o artigo 191 estipula que a Administração poderá optar pelo regime jurídico da nova lei, ou da Lei nº 8.666/93, para licitar ou contratar diretamente, indicando a opção escolhida no edital ou no instrumento de contratação direta, vedando-se a combinação de regimes jurídicos.

Todavia, o que faz esse novo dispositivo legal é conferir uma opção por elementos que integram os delitos licitatórios — como, por exemplo, o crime do artigo 337-E do CP em tela — e, inexoravelmente, a interpretação deverá ser a mais favorável para o investigado ou acusado. Afinal, o complemento das normas penais em branco — tipos penais que dependem de integração por outras normas — faz parte da descrição típica da conduta delituosa. Em suma, a questão é se a vedação de combinação de regimes jurídicos se aplica à seara do Direito Penal, pois pode ser que haja elementos que integram o tipo penal, segundo nova lei, que levam a uma interpretação menos gravosa para o investigado ou acusado, ainda que o regime de contratação escolhido seja o da Lei nº 8.666/93.

Como se vê, o legislador criou uma norma de transição (muitas vezes necessária) para normas aplicáveis às novas contratações por um período de dois anos, com a finalidade de habituar a Administração às novas regras licitatórias, o que pode causar dúvidas na seara criminal. Tais incertezas, contudo, não podem subverter as garantias penais e processuais penais constitucionais.

Voltando-se ao caso fictício, vê-se que a sorte do gestor dependerá da coincidência de sua decisão aos critérios adotados pelo controlador externo, que poderá, ao final (no caso de ter havido contratação direta), entender pela ocorrência ou pela inexistência de situação emergencial. Na seara criminal, a decisão do gestor, seus critérios e fundamentos deverão estar em conformidade com o que entende o órgão acusatório, sob pena de se abrir a ampla válvula de incidência do delito do artigo 337-E do CP. Em outras palavras, se os órgãos de persecução penal não tiverem a mesma interpretação (sobre cada elemento que integra o tipo penal) que levou o gestor a contratar diretamente, pode haver a deflagração de investigação ou ação penal que podem ser tidas como infundadas pelo órgão de controle externo, caso este concorde com os fundamentos utilizados pelo gestor.

Note-se que a nova Lei de Licitações perdeu a oportunidade de prever o dolo específico atribuído pelo Supremo Tribunal Federal ao tipo penal do artigo 89 da Lei nº 8.666/93, consistente na intenção de "obter vantagem indevida", "enriquecer ilicitamente" ou de "causar prejuízo ao erário", verificável desde a fase de análise da justa causa da ação penal, na qual a denúncia deve ser rejeitada por ausência de tipicidade subjetiva (Inq 3.674, relator ministro Luiz Fux, pub. 15/9/2017; 3.962, relatora minista Rosa Weber, pub. 12/9/2018; Inq 3.965, relator ministro Teori Zavascki, pub. 6/12/2016).

Como se vê, houve manutenção da previsão de um tipo penal com possibilidade de interpretação aberta e sem especificação da finalidade de agir do investigado ou acusado, o que pode acarretar, para situações absolutamente iguais, uma punição indevida ou exagerada em alguns casos e, em outros, uma absolvição insatisfatória aos olhos de alguns, tudo a depender da aplicação subjetiva sobre cada um dos complexos elementos do tipo penal.

Na prática, cria-se um círculo vicioso porque, a despeito de existirem hipóteses em que se faz possível a contratação direta (artigos 72 e seguintes da nova Lei de Licitações), e de os órgãos de controle terem de considerar "as consequências práticas da decisão", o medo do gestor de ser mal interpretado pode gerar inércia administrativa, cujas consequências práticas são igualmente nefastas. Na dúvida, melhor não agir para não incorrer no crime de contratação direta ilegal. Ao final, fica a pergunta se o Direito Penal, em alguns casos, realmente assessora o bom funcionamento da Administração Pública.

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    é advogado do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados, doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas e ex-procurador do Estado do Amapá.

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    é mestre e doutorando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e sócio do escritório Machado de Almeida Castro & Orzari Advogados.

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