Opinião

A ADPF 701 e a proibição ao funcionamento dos templos religiosos

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8 de abril de 2021, 19h29

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 701, promovida pela Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure) diante do Supremo Tribunal Federal, questiona, em resumo, diversos atos normativos promovidos nas três esferas da federação quanto à proibição ao funcionamento dos templos religiosos.

Segundo a Anajure, não poderia o poder público, de maneira geral, limitar o funcionamento dos templos sem, contudo, deixar de negar vigência tanto à liberdade religiosa quanto à laicidade do Estado brasileiro, previstos no artigo 5º, inciso VI, e artigo 19, inciso I, da Constituição Federal.

Na ação, distribuída ao ministro Nunes Marques, diversos municípios prestaram informações, assim como a Advocacia-Geral da União (AGU) que, além de questionar a legitimidade da Anajure, destacou que o critério de subsidiariedade da ADPF foi ignorado, bem como, em síntese, que as ofensas sobre o texto da Constituição, indicadas pela demanda, seriam meramente reflexas.

O ministro Nunes Marques, por sua vez, e nada obstante aos apontamentos de forma e mérito indicados, entendeu por bem acolher o pedido em sede monocrática, sob o argumento de que a liberdade de culto, no ambiente pandêmico da Covid-19, estaria recebendo um tratamento "desuniforme" nos mais diversos entes da federação brasileira, o que atrairia a necessidade do controle de constitucionalidade.

No ponto, com todo o respeito à instituição e a legitimidade que o ministro tem para tanto, alguns elementos precisam ser mais bem alinhados, até mesmo para dar coerência à decisão, na medida em que o sistema de controle de constitucionalidade oferecido pela ADPF não teria o condão de desenhar um critério de uniformização — ou padronização — das atividades do poder público no ambiente federativo.

Além disso, o próprio STF já havia definido os limites da jurisdição quando do enfrentamento das questões relacionadas às medidas restritivas decorrentes da pandemia de Covid-19, ressaltando, ainda em abril de 2020, que a competência para imposição de limites de locomoção e regras sanitárias haveria de ser concorrente entre a União, Estados e municípios, de acordo com a autonomia federativa de cada ente, nos exatos termos da ADI n° 6341/DF.

Assim, ao que tudo indica, a decisão monocrática parece atentar diretamente contra a posição tomada pelo colegiado da corte. Fato que, além de promover grave insegurança jurídica, subverte a lógica de competências do próprio Supremo Tribunal Federal, uma vez que é do colegiado a jurisdição sobre suas próprias decisões, e não de um ou outro ministro de maneira individual.

De toda sorte, embora a decisão monocrática indique como sendo esse o ponto central da demanda, em seguida passa a sustentar que a "proibição total da realização de cultos religiosos presenciais representa uma extrapolação de poderes, pois trata o serviço religioso como algo supérfluo, que pode ser suspenso pelo Estado, sem maiores problemas para os fiéis" [1]. Como que se estivesse migrando de um argumento a outro, o ministro Nunes Marques deixa de lado a questão da competência para aí, sim, trabalhar a ideia de violência à liberdade religiosa e à laicidade do Estado brasileiro diante da proibição total dos cultos no Brasil.

E, para sustentar seus fundamentos, a decisão monocrática vem carregada de um precedente estadunidense (South Bay United Pentecostal Church v. Newson, 592 U.S. — 2021), como se o referencial fosse, por si, suficiente para justificar que a proibição de funcionamento dos templos seria inconstitucional, na medida em que, ainda que as questões sanitárias fossem relevantes, não seriam suficientes para "fazer tábula rasa da Constituição" [2].

O primeiro ponto de contato que se tem de levar em consideração para o enfrentamento da matéria, que parece estar sendo marginalizado pelo ministro, é saber se fechar a igreja, ou melhor, o templo é ou não uma medida de limites do exercício da religião. Isso porque só se pode falar em violência à liberdade religiosa se, e somente se, o indivíduo estiver sendo privado de exercer essa garantia fundamental, até mesmo porque a garantia ilustrada é do indivíduo, e não da organização religiosa.

É absolutamente necessário distinguir o que é uma organização religiosa do exercício da religiosidade, ou ainda da própria religião, pois que enquanto uma refere-se à estrutura hierárquica e organizacional, ou outro trata da relação do indivíduo com sua fé e cosmovisão do mundo. Por outras palavras, enquanto a organização religiosa trabalha com a lógica da materialidade e do plano secular, a religião e o exercício da religiosidade destacam um critério metafísico e personalíssimo do indivíduo.

Lembrando da lição da Immanuel Kant, portanto, a igreja é uma criação humana em cumprimento a uma "providência" divina, como uma "comunidade ética sob a legislação moral divina" [3]. Ou seja, diferentemente da religião, que está enclausurada na relação que cada um tem com seu referencial de divindade e fé, a igreja é um instrumento a serviço do homem e há de estar sob as leis humanas.

Ao que parece, entretanto, há certa dificuldade no enfrentamento da questão à luz das diretrizes da Constituição, na medida em que o enunciado normativo concernente à liberdade religiosa se estabelece de forma ampla na sociedade brasileira, não só impedindo que o poder público se imponha sobre o indivíduo na relação de fé que guarda na sua intimidade, como exigindo que esse mesmo poder público proteja o pleno exercício dessa fé que se encontra na intimidade de cada um. O que poderia sugerir que em nome da fé tudo pode o indivíduo e, mais, o Estado haveria de viabilizar todo o tipo de ação promovida em nome da fé, o que de fato não é o caso.

A bem da verdade, é justamente a partir da dificuldade de enfrentamento da matéria é que se torna perigosa a clausura conceitual do quem vem a ser a religião. Em primeiro lugar porque, como em toda a estrutura de direitos e garantias fundamentais, a realidade humana e a própria dinâmica social impõem os limites ao exercício da fé, uma vez que é da própria lógica desse tipo de garantia a existência de limites ao seu exercício, que são encontrados, diga-se de passagem, justamente no exercício da própria liberdade, só que de outro indivíduo.

Aliás, foi o que disse o ministro Gilmar Mendes na decisão que encartou nos autos da ADPF n° 811/SP, que trata da mesmíssima matéria (proibição de funcionamento de templos religiosos), mas restrita ao estado de São Paulo. No caso, o ministro bem lembra na decisão que a liberdade religiosa, além de estar limitada à conformidade da lei, há de se submeter à estrutura de garantias fundamentais, na medida em que haveria de se conformar à valores constitucionais concorrentes "de maior peso na hipótese considerada" [4].

Em segundo lugar, para além da própria dinâmica da relação entre os direitos e garantias fundamentais, no caso da ADPF 701, há ainda que se considerar que a igreja não se confunde, como se disse aqui, com a religião, e a liberdade indicada no texto da Constituição é direcionada à religião, e não à organização religiosa, enquanto estrutura secular hierarquizada para gerência dessa relação metafísica de fé dos indivíduos.

E ainda que o templo possa ser representativo de um ou outro segmento religioso e venha a dirigir o comportamento religioso do indivíduo, não se pode materializar a religião nessa estrutura secular, pois que assim estaria sendo limitado o próprio conceito de religião à uma criação humana. O que não faz qualquer sentido, já que a religião, enquanto fenômeno de fé, está além de qualquer mecanismo imanente.

Com efeito, em consideração ao fato de que a Constituição cuida da secularidade, e não do eterno, tem-se que a proibição de funcionamento dos templos, enquanto organização da sociedade civil temporal, encontra pleno amparo na disciplina contida no artigo 5º, inciso VI, que, inclusive, ressalta que é "livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei".

Assim, ao apontar a liberdade religiosa como fundamento para o funcionamento dos templos, tem-se que o ministro Nunes Marques ofereceu como conceito da religião, ou elemento central do exercício da religiosidade, a figura do templo, ou seja, uma criação humana. O que não parece ser o melhor caminho, pois, ainda que seja o templo um elemento importante à prática da religião, não seria ele elementar a esse exercício.

Mais do que isso, a retomando a lembrança doutrinária que o ministro Gilmar Mendes ofereceu na decisão constante da ADPF n° 811/SP, ainda que o templo viesse (ou mesmo que seja) um instrumento elementar ao exercício da religiosidade do indivíduo, fato é que haveria um choque de direitos e garantias fundamentais no caso concreto, especialmente na percepção dos valores constitucionais da religião e da saúde pública. O que, de toda sorte, não se refere à uma questão constitucional de grande complexidade, uma vez que, empregado o exercício de ponderação e hierarquia, e não havendo limites além da estrutura física do templo, seria fácil concluir pelo privilégio à saúde pública.

Não bastasse esse exercício teórico, é interessante ter em perspectiva alguns outros elementos da decisão oferecida pelo ministro Nunes Marques e que causam alguma estranheza.

Uma das curiosidades é que a decisão, embora tome por ponto de partida uma ideia de uniformidade constitucional nos entes federativos no tratamento da questão do funcionamento dos templos religiosos, migra seus argumentos para a aplicação da liberdade religiosa, na medida do artigo 5º, inciso VI, e da laicidade do Estado brasileiro, disposta no artigo 19, inciso I, ambos da Constituição.

Nesse caso, se a premissa for de liberdade religiosa, não há empregar um limite de funcionamento, como imposto na decisão (ocupação de 25% dos templos). Pois a liberdade religiosa é uma garantia individual e, enquanto tal, se levada em consideração a premissa adotada pelo ministro Nunes Marques de que esse direito não poderia encontrar barreiras nas limitações sanitárias determinadas pelos Estados e municípios, não faz qualquer sentido trabalhar com a ideia de restrição parcial. Nesse caso, por óbvio, o resultado há de ser binário (ou há violação e o templos não podem fechar, em favor da liberdade religiosa do indivíduo, e não da organização religiosa, ou não há violação, por hermenêutica, ponderação, ou aplicação da literalidade da parte final do artigo 5º, inciso VI, e os templos podem ter seu funcionamento proibido na totalidade ou parcialmente, mas nos termos da lei).

Por fim, não se pode negar outro aspecto elementar da ADPF n° 701, que é o fato de a Anajure ser ilegítima para a propositura da demanda.

Sem adentrar nos aspectos da Lei n° 9.882/99, o rol de legitimados do artigo 103 da Constituição tem uma razão de existir. Trata-se, sob qualquer ângulo, de uma limitação a bem do princípio republicano, que não pode ser superada pela matéria sob análise ou mesmo pela realidade social apresentada nas palavras colhidas da petição. Aqueles indicados no artigo 103 ali estão referidos para efeito de proteção da sociedade, da coletividade.

Mas em consideração ao fato de ser a ADPF um hiato entre os mundos do controle de constitucionalidade, temos de lembrar que o artigo 5º, inciso XXXIV, diz que o direito de petição é uma máxima que merece ser sempre privilegiada.

 


[1] Pg. 9.

[2] Pg. 11.

[3] KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão. Tradução de Artur Morão. Lisboa, Portugal: Edições 70, p. 107.

[4] Pg. 7 (ADPF 811).

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