Opinião

Tribunal do Júri: a decisão de impronúncia é compatível com o Estado de Direito?

Autores

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

8 de abril de 2021, 9h02

Como se sabe, o procedimento do Tribunal do Júri é bifásico. Na primeira fase, após regular instrução e debates perante o juiz togado, deve este decidir se irá enviar o acusado a julgamento pelo júri (decisão chamada de pronúncia). As outras três decisões possíveis são a impronúncia (CPP, artigo 414), a absolvição sumária (CPP, artigo 415) e a desclassificação (quando o magistrado entende que se trata de caso que não seja doloso contra a vida — CPP, artigo 419).

A impronúncia é uma decisão de natureza declaratória e terminativa [1], apta a gerar coisa julgada formal naqueles casos em que a acusação não tenha conseguido cumprir seu ônus de comprovar (sequer) indícios suficientes de autoria ou de materialidade. Considerando que o seu oposto, a pronúncia, expõe o acusado ao risco de ser condenado perante o júri, é uma decisão normalmente comemorada pela defesa e acusado. Uma vitória.

Nesse diapasão, apenas se surgirem fatos novos (provas novas [2]) e não ocorrendo a extinção da punibilidade (CP, artigo 107, IV), que poderá ser oferecida nova denúncia ou queixa-crime, dando início a um novo processo.

Contudo, em um Estado democrático de Direito, se a acusação não cumprir com a sua carga probatória, não tendo êxito em comprovar indícios suficientes de autoria/participação ou de materialidade — circunstâncias descritas na denúncia —, o caminho constitucional necessariamente deve ser o reconhecimento de sua absolvição!

Justificar a decisão de impronúncia asseverando que uma absolvição nessa fase mitigaria o princípio do juiz natural (pois adentraria na competência do Tribunal do Júri) é uma falácia, pois os jurados somente são competentes após uma decisão de pronúncia — jamais antes dela. Dito de outro modo, o juiz togado da primeira fase é o juiz natural e competente da causa — tanto que o artigo 415 do CPP prevê a possibilidade de absolvição sumária e o artigo 419 do CPP, a desclassificação.

A impronúncia não sobrevive a um confronto com os direitos e garantias constitucionais, eis que infringe os princípios da presunção de inocência (e seus derivados como ônus da prova e in dubio pro reo), do devido processo legal, da duração razoável do processo, da isonomia e da segurança jurídica.

Se para admissão e encaminhamento do acusado a júri não há necessidade de comprovação de standard elevado de provas, pois o artigo 413 do CPP exige apenas indícios suficientes de autoria e prova da materialidade, se o magistrado reconhecer que nem isso foi alcançado a absolvição do acusado deve ser mandatória. Ainda mais considerando que a jurisprudência e parte da doutrina insistem que a dúvida deve ser interpretada a favor da sociedade, abaixando ainda mais o "sarrafo" da admissibilidade.

E aqui há a primeira violação, ao princípio da presunção de inocência, eis que o princípio exige que a acusação, a partir do momento que decide iniciar a persecução penal, precisa comprovar para além da dúvida razoável de que o crime aconteceu, que o acusado é o autor, bem como as circunstâncias descritas na denúncia. O não cumprimento de sua carga probatória significa que a acusação não conseguiu retirar o sujeito do rol de inocentes. Isto é, continua inocente.

A impronúncia tem raízes históricas em instrumentos amplamente utilizados pelos tribunais da inquisição durante a Idade Média, em que se tinha cautela em jamais absolver os acusados, fundamentando as decisões de não condenação em elementos provisórios e passíveis de mudanças no futuro, esquivando produzir coisa julgada material e autorizando uma eventual futura imputação.

Uma segunda violação estaria atrelada ao princípio do devido processo legal, vez que, na prática, a impronúncia viabiliza que um acusado responda duas vezes pelo mesmo fato, sem contar que não resolve em caráter definitivo a pendência submetida ao Judiciário [3]. Aliás, pense-se em uma acusação contra um inocente, em que o MP, obviamente, não tenha conseguido reunir elementos suficientes de autoria. Mesmo nesse caso, o inocente jamais poderá ostentar uma certidão absolutória que ateste que ele foi injustamente processado. Isso porque na certidão de antecedentes constará que ele foi "impronunciado". E, após o transcurso do prazo de prescrição, também não será reconhecida a inocência do réu, mas, sim, que ocorreu a extinção de punibilidade pela prescrição.

A terceira violação é em face do princípio da isonomia, igualdade e proporcionalidade, pois se o sujeito estivesse respondendo a um crime de latrocínio ou genocídio (com maior desvalor de resultado e maior gravidade), em não se comprovando a autoria ou a materialidade, ele seria absolvido (CPP, artigo 386, VII).

O princípio da duração razoável do processo (artigo 5º, LXXVIII) também é desrespeitado. Mesmo considerando que a impronúncia proporciona a extinção do processo, ela não fará coisa julgada material, possibilitando que o mesmo acusado seja denunciado pelo mesmo fato. Isto é, caso surjam provas novas, uma nova ação penal será proposta. Na prática, a situação se perpetua com o tempo, não havendo solução da causa enquanto não estiver extinta a punibilidade pela prescrição pela pena máxima em abstrato, ou seja, normalmente, em 20 anos (CP, artigo 109, I).

O fato de a acusação não conseguir comprovar minimamente seu ônus jamais pode gerar ao acusado uma consequência deletéria, fazendo com que ele fique aguardando por anos a propositura, ou não, de nova ação. Serão anos de angústia e expectativa.

Para Aury Lopes Jr. [4], a impronúncia "gera um angustiante e ilegal estado de 'pendência', pois o réu não está nem condenado, nem absolvido", o que não se pode compactuar a partir das normas constitucionais vigentes no Brasil.

Como já nos manifestamos anteriormente, "não se pode admitir que após a devida instrução processual o acusado seja deixado indefinidamente em um estado de incerteza. Para mais quando a acusação não cumpriu nem com o ônus de provar indícios suficientes de autoria e materialidade. Repisa-se: se não há provas suficientes da autoria, certeza da materialidade ou mesmo se os demais elementos da teoria analítica não estão fundamentados a partir de provas legítimas, a única consequência processual e constitucional é a absolvição" [5].

Nesse mesmo sentido, importante ressaltar o magistério de Paulo Rangel, que pontua que "no Estado Democrático de Direito não se pode admitir que se coloque o indivíduo no banco dos réus, não se encontre o menor indício de que ele praticou o fato e mesmo assim fique sentado, agora, no banco do reserva, aguardando ou novas provas ou a extinção da punibilidade, como se ele é quem tivesse de provar sua inocência, ou melhor, como se o tempo é que fosse lhe dar a paz e a tranquilidade necessárias" [6].

O Projeto de Lei de Reforma do Código de Processo Penal (atualmente tramitando na Câmara dos Deputados sob o número PL 8045/2010, que deriva do PLS 156/2009), sensível com esta questão, excluiu a decisão de impronúncia do código. Pela redação — que esperamos que prevaleça e seja aprovada —, se o juiz entender que não há indícios suficientes de autoria ou materialidade delitiva, a absolvição sumária deve ser proferida.

Mas, hoje, qual a solução? Aceitar que a Constituição veda a decisão de impronúncia! Dessa forma, o juiz togado deveria aplicar de maneira análoga o artigo 386 do CPP, absolvendo o acusado se reconhecer "não haver prova da existência do fato" (CPP, artigo 386, II), "não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal" (CPP, artigo 386, V) e/ou "não existir prova suficiente para a condenação" (CPP, artigo 386, VII).

Considerando as já conhecidas dificuldades e provações de um acusado em responder a um processo penal, bem como os direitos e garantias constitucionais, trata-se, apenas, do preço de viver em um Estado democrático de Direito. Se a acusação não conseguiu provar, o acusado deve ser absolvido. Simples. Não é nenhum favor.

Este artigo faz parte da série "Tribunal do Júri", produzida pelos professores de Processo Penal Rodrigo Faucz Pereira e Silva e Daniel Ribeiro Surdi de Avelar, autores das obras "Plenário do Tribunal do Júri" e "Manual do Tribunal do Júri", da Editora RT.

 


[1] Conforme lição de Gustavo Badaró. (BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal. Rio de Janeiro: Campus: Elsevier, 2012, p. 478).

[2] "Entende-se por prova nova uma prova substancialmente nova, ou seja, algo que não existia no caderno processual e que possa, agora, ser elemento suficiente para o oferecimento de nova acusação e posterior pronúncia do acusado. Por exemplo, o surgimento do cadáver da vítima ou a localização de testemunhas relevantes não ouvidas no processo original". Pereira e Silva, Rodrigo Faucz; Avelar, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 266.

[3] De acordo com Paulo Rangel, a impronúncia transgride aquilo que "se quer dentro de um Estado Democrático de Direito, ou seja, que as decisões judiciais ponham um fim aos litígios, decidindo-os de forma meritória, dando, aos acusados e à sociedade, segurança jurídica". Rangel, Paulo. Direito Processual Penal. 23 ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 661.

[4] Lopes JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal — Fundamentos da instrumentalidade constitucional. 4. ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 154.

[5] Pereira e Silva, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 272

[6] Rangel, Paulo. Tribunal do Júri. Visão linguística, histórica, social e jurídica, 4ª ed., São Paulo: Atlas, 2012. p. 162.

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    é advogado criminalista, pós-doutorando em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE) e de Tribunal do Júri em pós-graduações (AbdConst, Curso Jurídico, UniCuritiba, FAE) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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    é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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