Opinião

Uma análise histórica do diálogo competitivo

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8 de abril de 2021, 12h08

No dia 1º de abril, foi sancionada e publicada a Lei nº 14.133/2021, conhecida como a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. A normativa introduz novidades no ordenamento jurídico pátrio que, indubitavelmente, precisam ser melhor compreendidas.

Entre elas, o presente texto tem o objetivo de colaborar com considerações históricas acerca do diálogo competitivo, a nova modalidade licitatória, perfazendo uma análise desde a sua previsão no cenário europeu até a sua inserção no Projeto de Lei nº 559/2013, o qual futuramente se tornou a lei ora vigente. Com efeito, o conceito da inédita ferramenta em nosso ordenamento vem previsto no inciso XLII do artigo 6º da Lei nº 14.133/2021 [1]. Por sua vez, a previsão dos casos de utilização, bem como o rito procedimental específico a ser seguido estão previstos nos incisos do artigo 32 da lei [2].

Digno de nota esclarecer, a princípio, que o nomem juris da nova modalidade seguiu a tradução literal de países de idioma inglês (competitive dialougue). De outro modo, os "irmãos" portugueses denominam a modalidade licitatória como diálogo concorrencial, tratando-se, todavia, de uma distinção terminológica apenas.

Ao falar do princípio do diálogo competitivo no cenário europeu, é necessário averiguar a regulação feita na Diretiva de 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do conselho. No entanto, é importante compreender que a necessidade de alterações no âmbito da contratação pública europeia era postulada anteriormente da normativa citada.

No Livro Verde (COM 583 Final), em 1996, já era retratada a necessidade de flexibilização e admissão de maior diálogo entre a Administração Pública e a iniciativa privada. É crível ilustrar tal entendimento a partir da análise do tópico que discutia a fase antecedente ao lançamento do concurso e a complexidade dos projetos envolvidos nas redes transeuropeias. Nesse ponto específico, é de se destacar o reconhecimento por parte da comissão de que a inovação das soluções para determinados casos complexos podia necessitar um maior diálogo técnico em fase antecedente à publicação do processo licitatório entre os adjudicantes e os adjudicados [3].

Em seguida, no ano de 1998, a Comissão das Comunidades Europeias anunciou que proporia alteração nas diretivas europeias vigentes à época, a fim de incluir uma nova modalidade, a qual, contemporaneamente, chama-se de diálogo competitivo ou diálogo concorrencial, que destinar-se-ia aos casos em que os adjudicantes conhecem o setor, porém, desconhecem a melhor forma de satisfazer as suas necessidades [4]. Ocorre que o diálogo competitivo e outras modificações tidas como relevantes no cenário dos contratos públicos europeus, tendo em vista o caráter meramente reflexivo do Livro Verde e a natureza apenas propositiva da comissão [5] [6], foram regulamentadas, de fato, na Diretiva de 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do conselho.

Do estudo das intenções do legislador europeu ressaltadas nos "considerandos", à época da realização da normativa de 2004, verifica-se muitos dos anseios da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Isto é, o fomento a utilização de meios eletrônicos busca por maior transparência, concorrência, celeridade, publicização, eficiência, formação de uma central de compras para as entidades adjudicantes, assim como maior simplificação e modernização das práticas adjudicatórias e flexibilização especialmente para determinados casos [7].

Nesse contexto, surge o diálogo competitivo, previsto, inicialmente, no artigo 29 da Diretiva de 2004/18/CE [8] como uma forma de flexibilização do processo licitatório para casos que envolvam contratos "particularmente complexos". A sua previsão de utilização, porém, dar-se-ia tão somente se o concurso, público ou limitado, não permitisse a adjudicação do contrato.

Conforme se exame do artigo 1º, item 11, alínea "c", da referida diretiva [9], depreende-se que contratos "particularmente complexos" seriam aqueles contratos públicos nos quais a entidade adjudicante não está objetivamente em condições de definir os meios técnicos mais adequados, em razão de exigências funcionais, específicas ou de desempenho; ou não está em condições de realizar a montagem jurídica ou financeira do projeto.

Após a previsão nas Diretivas de 2004, o diálogo competitivo passou a ser adotado nas legislações internas dos principais países da União Europeia. A título exemplificativo, citam-se os casos da França, por meio do Código de 2006 (Code des Marchés Publics); do Reino Unido, por meio do Regulamento de Contratos Públicos de 2006 (The Public Contracts Regulation); da Itália, pelo Código de Contratos Públicos de 2006 (Codice dei Contratti Pubblici — Decreto Legislativo 163); da Espanha, através da Lei 30/2007 (Ley de Contratos del Sector Público); da Alemanha, através do Ato Contra as Restrições da Concorrência (Gesetz gegen Wettbewerbsbeschränkugen) [10]; e de Portugal, por meio do Código dos Contratos Públicos de 2008 (Decreto-Lei nº 18/2008).

Em que pese a previsão legal em diversos países, importante destacar que a utilização de tal modalidade licitatória não foi paritária entre os Estados-membros da União Europeia, tendo em vista suas peculiaridades culturais, sociais e jurídicas. De janeiro de 2010 até dezembro de 2013, cerca de 79% dos casos concluídos de diálogo competitivo no continente europeu se deram por autoridades na França e no Reino Unido [11], o que, de fato, não pode ser desconsiderado. Destaca-se, nesse sentido, que "os dois países que mais se valem desse instituto têm histórico de aceitação de procedimentos mais flexíveis para a adjudicação de contratos" [12].

Em 26 de fevereiro de 2014, adveio a Diretiva 2014/24/EU do Parlamento Europeu e do conselho, que acarretou a revogação da diretiva anterior (2004/18/CE). Muito embora seja possível assinalar que os novos "considerandos" são muito mais explicativos e menos principiológicos, é nítido que as intenções do legislador comunitário continuam muito similares às apontadas anteriormente, a destacar, modernização, flexibilização, celeridade, maior concorrência e estímulo ao uso de uma central de compras [13].

Nesse cenário, percebe-se que o diálogo competitivo não apenas foi mantido como também incentivado, haja vista seu sucesso em casos específicos de dificuldade da Administração Pública, vide o considerando 42 da diretiva de 2014 [14]. A estruturação da referida modalidade licitatória, assim como suas premissas basilares foram mantidas, como já defendido outrora [15].

Salienta-se, porém, que o item quatro do artigo 26 da nova diretiva assevera que a adoção do diálogo competitivo em legislação interna dos Estados-membros passa a ser obrigatória para determinados casos [16]. Quanto à utilização do diálogo competitivo, ressalta-se que inexiste a previsão de aplicação nos casos de contratos públicos "particularmente complexos" como outrora. Tal alteração se justifica pelo fato de que, em que pese a ideia fulcral persista, o legislador europeu optou por descrever as hipóteses de utilização do diálogo competitivo juntamente com as possibilidades de uso do procedimento concorrencial com negociação, nas alíneas do suprarreferido item.

Quanto à origem do diálogo competitivo na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, ou seja, em nosso ordenamento jurídico, cabe esclarecer, sem adentrar no mérito histórico de todos os projetos de lei, que a nova modalidade licitatória não veio prevista no princípio do Projeto de Lei nº 559/2013 tampouco foi incluída por emenda ao projeto ou discutida nos três anos antecedentes à inclusão [17]. A nova modalidade licitatória, na verdade, tem sua origem no âmbito interno brasileiro em uma das últimas versões do substitutivo de relatoria do senador Fernando Bezerra do Projeto de Lei nº 559/2013, em 2 de agosto de 2016, após sugestões do governo federal durante o recesso parlamentar [18], destacando a forte inspiração na legislação europeia.

Impende registrar que as únicas alterações feitas no novo instrumento licitatório, desde a sua primeira previsão legislativa por aqui, foram realizadas no "exame final" do Poder Executivo federal, que vetou o inciso III do artigo 32 da Lei nº 14.133/2021 e o inciso XII do §1º do mesmo dispositivo. Tais mudanças, destaca-se, são bem-vistas e já eram postuladas pela doutrina [19].

Com a introdução do diálogo competitivo, registra-se que a Lei nº 14.133/2021 conta com cinco modalidades licitatórias [20]. A possibilidade de utilização do diálogo competitivo é prevista também para contratação da parceria público-privada, prevista na Lei nº 11.079/2004, conforme a disposição do artigo 180 [21].

É importante verificar que pelo prazo de dois anos poderá a Administração optar se pretende realizar o certame guiado pela antiga ou pela nova lei, nos termos dos artigos 191 e 193 [22], o que é imprescindível analisar para a utilização da nova modalidade.

Em síntese, com a incursão histórica proposta no presente estudo acerca do diálogo competitivo, desde a legislação europeia até o nosso ordenamento, pretende-se suscitar o debate desse instrumento inédito na legislação nacional. Certamente, o diálogo competitivo será objeto de muito estudo e análise pela doutrina e jurisprudência brasileira, a fim de melhor compreender a inovação trazida da legislação europeia, a qual esperamos que seja profícua para a Administração Pública.

 


[2] Ibid.

[3] COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS. Livro Verde. Os contratos públicos na União Europeia: pistas de reflexão para o futuro. Bruxelas: [s.n.], 27 de novembro de 1996, p. 36. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:51996DC0583&from=EN. Acesso em: 27 mar. 2021.

[4] COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS. Os contratos públicos na União Europeia. Bruxelas: [s.n.], 11 de março de 1998, p. 08. Disponível em: http://www.contratacaopublica.com.pt/xms/files/Documentacao/Comunicacao_CE_COM-1998-_143_final.PDF. Acesso em: 27 mar. 2021.

[5] EUR-LEX. Glossário das sínteses: Livro Verde. [s.l.; s.n.]. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/summary/glossary/green_paper.html?locale=pt. Acesso em: 27 mar. 2021.

[6] PARLAMENTO EUROPEU. Fichas temáticas sobre a União Europeia: A Comissão Europeia. [s.l.; s.n.]. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/factsheets/pt/sheet/25/the-european-commission. Acesso em: 27 mar. 2021.

[7] PARLAMENTO E CONSELHO EUROPEU. Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho. Estrasburgo: [s.n.], 31 de março de 2004, p. 03-06. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:02004L0018-20160101&from=IT. Acesso em: 27 mar. 2021.

[8] PARLAMENTO E CONSELHO EUROPEU. Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho. Estrasburgo: [s.n.], 31 de março de 2004, p. 34. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:02004L0018-20160101&from=IT. Acesso em: 28 mar. 2021.

[9] Ibid., p. 34.

[10] BOGOSSIAN, Andre Martins. O diálogo concorrencial. Revista Âmbito Jurídico, v. 73, [s.l.], 2010. Disponível: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/o-dialogo-concorrencial/. Acesso em: 28 mar. 2021.

[11] HAUGBØLLE, Kim; PIHL, Daniel; GOTTLIEB, Stefan Christoffer. Competitive dialogue: driving innovation through procurement?. Journal Procedia Economics and Finance, v. 21, p. 556-562, 2015. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2212567115002129?via%3Dihub. Acesso 28 mar. 2021.

[12] OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de. As Diretivas Europeias da Contratação Pública no Cenário Internacional: o caso do Diálogo Concorrencial. In: GONÇALVES, Rubén Miranda; PORTELA, Irene Maria; VEIGA, Fábio da Silva. Paradigmas do Direito Constitucional Atual. Barcelos: IPCA, 2017, p. 647. PDF.

[13] PARLAMENTO E CONSELHO EUROPEU. Diretiva 2014/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho. Estrasburgo: [s.n.] 26 de fevereiro de 2014, p. 65-75. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014L0024&from=PT. Acesso em: 28 mar. 2021.

[14] Ibid, p. 71.

[15] HAAB, Augusto Schreiner. O diálogo competitivo previsto no Projeto de Lei nº 4.253/2020. Trabalho de conclusão de curso (Graduação), p. 16. Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público, Curso de Direito. Porto Alegre, RS, 2020. Disponível em: http://biblioteca.fmp.edu.br/pergamum/vinculos/000001/0000010f.pdf. Acesso em: 30 mar. 2021.

[16] PARLAMENTO E CONSELHO EUROPEU. Diretiva 2014/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho. Estrasburgo: [s.n.] 26 de fevereiro de 2014, p. 109. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014L0024&from=PT.

[17] CONSELHO DE ARQUITETURA E URBANISMO DO PARÁ. Lei de Licitações: relator apresenta novo substitutivo em comissão do Senado. 2016. [s.l.; s.n.]. Disponível em: https://www.caupa.gov.br/lei-de-licitacoes-relator-apresenta-novo-substitutivo-em-comissao-do-senado/. Acesso em: 26 mar. 2021.

[19] AMORIM, Victor Aguiar Jardim de; OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de; PEDRA, Anderson. A hora e a vez da redação final do PL 4.253/2020 e a espada de Dâmocles: sanção versus veto. ONLL, [s.l.], 2021. Disponível em: http://www.novaleilicitacao.com.br/2021/03/16/a-hora-e-a-vez-da-redacao-final-do-pl-no-4-253-2020-e-a-espada-de-damocles-sancao-versus-veto/. Acesso em: 31 mar. 2021.

[22] Ibid.

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