O artigo 212 do CPP e o presidencialismo tirânico
7 de abril de 2021, 18h11
"A forma é inimiga jurada do arbítrio e irmã gêmea da liberdade"
(Rosa Weber lembrando Rudolf von Jhering no julgamento do HC 187035-SP)
A despeito do protesto "a tempo e modo", a audiência seguiu e o TJ-SP, questionado pela via de Habeas Corpus, denegou a ordem. O STJ, em decisão monocrática, à mingua da demonstração do prejuízo, idem. O tema, então, foi levado ao STF, mas por se tratar de Habeas contra decisão monocrática, a despeito de haver o conhecido precedente da lavra do ministro Luiz Fux (HC nº 111.815, DJe 14/2/2018), a 1ª Turma não conheceu a ordem por três votos a dois, vencidos os ministros Marco Aurélio e Rosa Weber, que a concediam (HC nº 175.048, DJe 18/8/2020). O relator para o acórdão, ministro Alexandre de Moraes, embora tivesse oposto o óbice da impossibilidade de se conhecer de Habeas contra decisão monocrática de ministro do STJ, ingressou fundo no mérito para fazer uma espécie de "denegação de ofício" e, novamente, invocou o ensinamento de Guilherme Nucci, para quem:
"(…) Há de se ressaltar o seguinte: foi alterado, apenas, o sistema de inquirição feito pelas partes. Nada mais. O juiz, como presidente da instrução e destinatário da prova, continua a abrir o depoimento, formulando, como sempre fez, as suas perguntas às testemunhas de acusação, de defesa ou do juízo. Somente após esgotar o seu esclarecimento passa a palavra às partes para que, diretamente, reperguntem. Primeiramente, a acusação repergunta às suas testemunhas, para, na sequência fazer o mesmo a defesa. Em segunda fase, a defesa repergunta diretamente às suas testemunhas para, depois, fazer o mesmo a acusação" ("Manual de processo penal e execução penal", 6ª ed., Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 473).
Depois, sustentou que a nulidade, se houvesse, seria relativa e não ficou demonstrada.
A doutrina amplamente majoritária vai no sentido oposto ao do fixado no acórdão em exame. Para não nos alongarmos, basta a esclarecedora lição de Antonio Magalhães Gomes Filho:
"(…) O legislador não adotou um procedimento uniforme para a inquirição de testemunhas na instrução criminal comum, regulada pela Lei 11.690/2008, e na instrução no plenário do Júri, com as alterações da Lei 11.689/2008. Neste manteve-se o sistema anterior do Código, em que o juiz-presidente formula as perguntas iniciais, após o que as partes podem fazer a inquirição direta e cruzada (artigo 473, CPP, com nova redação).
De modo diverso, no artigo 212 é estabelecida outra ordem, em que as perguntas são desde logo formuladas diretamente pelas partes. A intervenção do juiz vem prevista a seguir, no parágrafo único do mencionado artigo 212: 'Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição'" ("Código de Processo Penal comentado". Coord., Antonio Magalhães Gomes Filho, Alberto Zacharias Toron, Gustavo Henrique Badaró. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 547).
Na mesmíssima linha vão as lições doutrinárias de Aury Lopes Jr. ("Direito Processual Penal", 18ª edição São Paulo: Saraiva, 2018, p. 458. Gustavo Badaró, "Processo Penal". 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 470 e, entre outros, de Eugenio Pacelli e Douglas Fischer, "Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência". 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 417).
Não conhecida a ordem no STF, pois o voto do ministro Luiz Fux, sem entrar no mérito, fora nesse sentido, não restou alternativa à defesa se não a de impetrar novo writ no STJ (HC 578.934) e aguardar sua denegação colegiada para aí, então, voltar ao STF.
No Supremo Tribunal, o parecer da Procuradoria-Geral da República no novo Habeas foi pelo não conhecimento da ordem (HC nº 187.035, j. em 6/4/2021). Dizia-se que o novo writ seria "mera reiteração" do anterior e teria sobrevindo sentença na ação penal, tudo a impedir, outra vez, o conhecimento do Habeas. De resto, sendo a nulidade relativa e inexistindo "efetivo prejuízo", o caso seria de denegação da ordem.
Todavia, ao julgar a ordem, a 1ª Turma rejeitou a proposta de não conhecimento da impetração por entender que a nova impetração, além de trazer elementos relativos à demonstração do prejuízo, voltava-se contra um novo título judicial e, de outro lado, a anterior denegação da ordem não faz coisa julgada de modo a impedir a nova impetração e o seu conhecimento; esse, aliás, o incisivo pronunciamento de Guilherme Nucci no seu Habeas Corpus (Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 166). De outro lado, o fato de haver sido prolatada a sentença não pode impedir o conhecimento da nulidade, desde que esta tenha sido arguida antes da sua prolação. A demora nos julgamentos dos Habeas Corpus não pode ser debitada à defesa e nem impedir o conhecimento de eventual nulidade, que, ademais, não se convalida com a prolação da sentença.
Superada a questão do conhecimento, a 1ª Turma, por três votos a dois, concedeu a ordem firmando o entendimento de que o novo regramento instituído pela reforma de 2008 não deixa dúvida no sentido de que o juiz apenas perguntará supletivamente e após as partes.
Por fim, não pode ficar sem registro a dificuldade em se demonstrar o "efetivo prejuízo" quando se trata de clara afronta ao comando legal e, consequentemente, ofensa ao devido processo legal. É uma "prova diabólica" como lembrou a ministra Carmén Lúcia ao votar no HC nº 157.627, em que se discutia a nulidade da ação penal por ofensa ao contraditório decorrente da impossibilidade de a defesa do delatado se manifestar em memoriais após os delatores, ou, como preferiu a ministra Rosa Weber no HC nº 144.887/MT, o prejuízo é presumido:
"(…) A complexidade da teoria das nulidades no processo em geral e, em particular, no processo penal, relativamente à qual não há consenso na doutrina e na jurisprudência, compreendo que, na hipótese de afronta a princípios de extração constitucional — caso dos autos em que em jogo as garantias do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal —, a nulidade é absoluta, o que significa dizer que não há preclusão, o vício pode ser suscitado de ofício e, embora não prescinda da ocorrência de prejuízo para sua decretação, o prejuízo é presumido. A presunção não é juris et de jure, e sim juris tantum, produzindo a inversão do encargo probatório".
O tema do prejuízo é um tipo de válvula de escape para se evitar o reconhecimento de nulidades. Como diz Luciano Feldens, é uma espécie de "prova impossível" ("O direito de defesa". Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021, p. 186). Ao julgar o HC nº 73.338 no acórdão lavrado pelo ministro Celso de Mello, o STF registrou que a "persecução penal rege-se, enquanto atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões normativos, que, consagrados pela Constituição e pelas leis, traduzem limitações significativas ao poder do Estado. Por isso mesmo, o processo penal só pode ser concebido ___ e assim deve ser visto ___ como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu. O processo penal não é um instrumento de arbítrio do Estado" [2].
Vale dizer, o respeito às formas do processo representa uma exigência indeclinável para o cumprimento do devido processo legal, extirpando-se o arbítrio. No dizer de Cezar Peluso, a tradução perfeita da expressão due process of law é "o justo processo da lei", tal como preceitua a Constituição italiana no artigo 111, primeira parte, "la giuridizione si attua mediante il giusto processo regolato dalla legge" [3].
[1] Código de Processo Penal Comentado. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 523, item 69-A.
[2] 1ª T., DJ 19/12/1996.
[3] Constituição brasileira revela amplitude da presunção de inocência, in: www.conjur.com.br, visto em 27/9/2016. Este trabalho é a segunda parte da Conferência proferida no VI Encontro da Associação dos Advogados de São Paulo.
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