Opinião

Inovação, concorrência e segurança jurídica em risco com a ADI 5529

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7 de abril de 2021, 12h16

Após 20 anos de vigência da Lei nº 9.279/96 (Lei da Propriedade Industrial ou LPI), a Procuradoria-Geral da República ajuizou ação direta de inconstitucionalidade (ADI) contra importante artigo do diploma. Nesta quarta-feira (7/4), a conformidade do parágrafo único do artigo 40 com a Carta Magna, que já vem sendo discutida há cinco anos, será examinada pela Suprema Corte. O dispositivo concede prazos mínimos de proteção patentária, aplicável especialmente nos casos em que houver demasiada demora nos trâmites de licenciamento.

Inicialmente, cabe contextualizar o leitor. O caput do artigo 40 da LPI dispõe a regra geral de que "a patente de invenção vigorará pelo prazo de 20 anos e a de modelo de utilidade pelo prazo 15 anos contados da data de depósito". Efetuado o depósito do pedido de patente, nasce uma expectativa de direito do depositante que apenas se materializa quando e se deferida a concessão pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).

Nesse contexto, o parágrafo único, em disposição pragmática da legislação, reconhece que, por vezes, o andamento do processo no INPI é demasiadamente vagaroso. Assim, deferida a concessão de propriedade industrial, é prevista uma exceção para compensar hipóteses em que mais da metade do prazo da patente for consumido durante o trâmite burocrático anterior à sua vigência. In verbis:

"O prazo de vigência não será inferior a dez anos para a patente de invenção e a sete anos para a patente de modelo de utilidade, a contar da data de concessão, ressalvada a hipótese de o INPI estar impedido de proceder ao exame de mérito do pedido, por pendência judicial comprovada ou por motivo de força maior".

Pois bem. É perante esta norma que se levantam alguns princípios e regras constitucionais. A principal delas é a da temporariedade da proteção patentária, assim disposta:

"Artigo 5º, XXIX — a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país (…)".

Ressalta-se que, no Brasil, a proteção patentária tem prazo determinado e finito estipulado pela LPI. O artigo 40 definiu o prazo de proteção patentária em absoluta observância ao preceito constitucional. Trata-se de privilégio temporário, aprazado, de 20 anos, na esteira da média mundial. Ademais, caso reste provado que a concessão não reuniu os requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial, preconizadas pelo o artigo 8º da LPI, poderá ser declarada a nulidade da patente, em ação judicial que pode ser proposta a qualquer tempo pelo INPI ou por qualquer pessoa com legítimo interesse, conforme artigo 56 do mesmo diploma legal.

Não obstante, argumenta-se que a temporariedade prevista pelo artigo não tem em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país. O dispositivo, em tese, estenderia excessivamente os prazos de vigência de algumas patentes, prolongando um suposto poder monopolista de modo a inibir concorrentes e afrontar o princípio da livre concorrência.

Embora o argumento possa soar tentador, sobretudo no período crítico em que vivemos, em meio à pandemia de Covid-19, compreendemos ser essencial examinar a questão sob outros vieses. Afinal, quando se trata de desenvolvimento econômico, é preciso considerar, nas palavras do renomado economista francês Frédéric Bastiat, o que se vê — os produtos, e o que não se vê — o processo de inovação e seus desafios e riscos.

O processo de desenvolvimento tecnológico tem efeitos cascata sobre uma economia. Quando se descobre um novo tipo de fertilizante, por exemplo, não apenas a instituição responsável pelo achado se beneficia: toda a estrutura agrícola da nação (e até de outros países) pode auferir vantagens daquele novo produto, além da própria sociedade, que expandirá seu campo de conhecimento e eventualmente consumirá alimentos melhores ou mais baratos.

O transbordamento tecnológico é considerado uma externalidade positiva pela ciência econômica, de modo que o processo de invenção gera subprodutos sociais desejáveis que não são apropriados somente pelo inventor. Ilustre-se com dados: no Brasil, estima-se que, em 2018, cada real investido pela sociedade na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) gerou um retorno de R$ 12,16 [1]. Assim, com o intuito de se incentivar a pesquisa e a inovação, criou-se a patente, que, como ensina Gregory Mankiw, internaliza a externalidade.

Quando se fala dos incentivos conferidos pelas patentes, refere-se, sobretudo, a garantir viabilidade financeira a empresas e instituições de pesquisa que, ao mesmo tempo em que não podem se manter deficitárias, precisam mobilizar vastos capitais para pesquisa e desenvolvimento (P&D), muitas vezes a fundo perdido.

Sendo pacífica a necessidade da proteção patentária para o desenvolvimento tecnológico de diversas áreas, cabe ao legislador contemporizá-la com outros objetivos. Reproduzindo o jargão do meio, a propriedade intelectual e a livre concorrência são faces da mesma moeda. Se a proteção patentária pode atenuar a competição, por certo prazo, contra a empresa inventora, também é essa garantia que assegurará à concorrência que seus investimentos serão devidamente recompensados caso encontre uma solução ainda melhor.

Muito se pode discutir sobre o melhor equilíbrio diante deste trade off — não se pode negar, contudo, que os princípios já foram sopesados pelo legislador, o qual considerou, também, a realidade fática brasileira, em que os pedidos de licenciamento muitas vezes demoram mais que a média de outros países. Com a regra do parágrafo único, assegura-se ao detentor da patente que, se o INPI vier a demorar, digamos, 14 anos para analisar um pedido depositado, ele não gozará de apenas seis anos de direito pleno de exclusividade.

Argumenta-se nos autos da ADI, ainda, que o parágrafo único do artigo 40 incentiva a ineficiência estatal, já que o INPI se veria desobrigado de garantir a celeridade processual, de modo a infringir a razoável duração do processo e o princípio da eficiência da administração pública. Os dados recentes do instituto, no entanto, parecem contrariar a tese. Com o esforço do plano de combate ao backlog, o tempo médio total de decisão dos pedidos de patente caiu de 10,6 anos, em 2016, para 7,9 anos, em 2020. É difícil sustentar que há, na norma, uma afronta constitucional ao dever de eficiência da administração quando o principal órgão responsável pela sua aplicação vem demonstrando notáveis ganhos de produtividade.

Ronda o debate também a acusação de que os depositantes dos pedidos se beneficiam com o atraso do órgão e, por isso, adotam práticas processuais que contribuem com a lentidão (estratégia por vezes denominada de evergreening). Não se nega que essa regra, como outras tantas, pode gerar comportamentos oportunistas, os quais podem e devem ser punidos como abuso de direito. Todavia, se a má-fé processual e interesses empresariais escusos fossem a causa da demora do órgão, instituições públicas como USP, Unicamp, Fapesp e UFMG não acumulariam algumas centenas de patentes beneficiadas pela regra combatida.

De igual maneira, se o problema fosse majoritariamente causado pelos depositantes dos pedidos, ou pela LPI, o plano de combate ao backlog do órgão não surtiria os efeitos hoje já sentidos. Conforme o próprio INPI esclareceu nos autos, prestando informações ao ministro-relator da ADI, ministro Dias Toffoli, os efeitos se devem a uma série de ações de gestão e modernização orquestradas nos últimos anos em prol da eficiência.

O que fica evidente, portanto, é que o dispositivo combatido é, por si só, uma regra que estimula e garante a segurança jurídica, visto que o período anterior ao efetivo registro não dá segurança de garantia ao detentor da patente. Não é a vigência do parágrafo único do artigo 40 da LPI que gera insegurança jurídica, mas, sim, uma eventual declaração de inconstitucionalidade do dispositivo que afeta quase 50% das patentes no Brasil depois de mais de duas décadas de vigência.

O Congresso Nacional elaborou um sistema jurídico que funciona há 25 anos e que já foi incorporado ao planejamento de instituições de diversos setores. As contundentes vozes de associações dos mais diversos setores econômicos são um indício forte do dano que a procedência da ADI 5529 pode causar, afetando mais de 35 mil patentes e pondo em risco a segurança jurídica do sistema — isso tudo em um contexto de êxito do INPI em seu plano de combate ao backlog.

Conforme argumentado, trata-se de questão que deve ser vista de maneira mais ampla. Sob a perspectiva do agronegócio, por exemplo, setor responsável por um quinto dos empregos brasileiros, 43% das exportações e aproximadamente 25% do PIB, o investimento em inovação agrícola é fundamental e se reverte em novos insumos, defensivos agrícolas, maquinário, fertilizantes, técnicas de agricultura de precisão, entre outros.

Além da evidente relevância econômica, há de se notar também a importância ambiental da proteção patentária. Com o aumento da produtividade agrícola, é possível produzir mais com menos terras, evitando, assim, possíveis desflorestamentos. Segundo dados da Embrapa, no período entre 1975 e 2015, a produtividade do agronegócio brasileiro passou de 1,2 toneladas de grãos por hectare para quase quatro toneladas por hectare, sendo os avanços tecnológicos responsáveis por 59% do crescimento do valor bruto da produção agrícola.

Nesse contexto, é de se ressaltar ainda a realidade brasileira em que o tempo de desenvolvimento até o registro de novos agroquímicos é de cerca de 17 anos, em parte por conta dos gargalos na tramitação no INPI (os quais, embora estejam diminuindo, impactaram as patentes vigentes). Segundo o INPI, mesmo com os avanços no combate ao backlog, produtos da área de biotecnologia ainda levam em média 9,1 anos para obtenção de uma patente; para agroquímicos, esse período é de 6,8 anos. Em países como Estados Unidos e China, concorrentes comerciais do Brasil no agronegócio, o tempo de análise é inferior a dois anos.

Ademais, é preciso levar em consideração o contexto global, relatado pela consultoria Deloitte [2], de que o tempo médio de desenvolvimento de agroquímicos cresceu de 8,3 anos em 1995 para 11,3 no período entre 2010-2014. Isso ocorre em razão de crescentes regulamentações decorrentes de preocupações ambientais e médicas, as quais acentuam os desafios de encontrar novas substâncias aptas. O exemplo do agronegócio ilustra como é preciso, sobretudo neste momento de crescentes regulamentações e desafios ambientais, remunerar as instituições por suas invenções e descobertas, bem como garantir um ambiente de segurança jurídica para o desenvolvimento de novos produtos, garantindo que o Brasil continue sendo atrativo para desenvolvimento e registro de novas tecnologias.

A discussão sobre proteção patentária abriga nuances da lei que podem ser revistas, no âmbito do Legislativo, com a participação de todos os setores da sociedade. Nesse momento, contudo, a procedência da ADI 5529 pode representar passo temerário, principalmente quando temos a certeza de que só a ciência e a tecnologia podem nos impulsionar rumo à estabilidade em tempos de crise. O risco é de um relevante retrocesso à segurança jurídica nacional e, sobretudo, ao processo de inovação no Brasil — aquilo que não se vê.

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    é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

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    é professor da UNICEUMA e UFMA. Mestre em Direito Constitucional pela UFMG.

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    é advogado, professor, mestre em Direito Econômico pela UnB e doutorando em Direito Comercial pela USP.

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