Paraná exige taxa inconstitucional para registro de gravames no Detran
7 de abril de 2021, 9h04
A Resolução 689/2017 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) disciplinou a matéria, criando o Registro Nacional de Gravames (Renagrav) como subsistema do Registro Nacional de Veículos Automotores (Renavam) e definindo o papel de cada interveniente nesse processo de registro. A teor do diploma, o apontamento (anotação prévia e provisória do gravame no Renagrav) era feito pela instituição credora, necessariamente por meio de Empresa Credenciada no Denatran (ECD). E o registro do contrato era feito pela instituição credora junto ao Detran estadual, por meio de Empresa Registradora de Contratos (ERC) por este credenciada ou contratada.
A remuneração desses agentes era definida pelo Detran de cada Estado, na forma do artigo 33 da resolução. Nesse contexto, em 2018 o Detran do Paraná publicou edital de credenciamento de ERCs, fixando o preço de R$ 350,00 por registro, dos quais 25% (R$ 87,50) deveriam ser-lhe repassados. Face à abusividade desse valor, o Ministério Público paranaense instaurou a “Operação Taxa Alta”, apontando diversas fraudes no edital, que teria mesmo sido elaborado por uma das empresas interessadas. A excessividade do preço público foi também atestada pelo Tribunal de Contas Estadual, que ordenou a criação de comissão para elaborar novo edital prevendo preço compatível com a modicidade tarifária.
Referida comissão realizou estudos e pesquisas econômicas, concluindo que o custo do Detran/PR é de R$ 34,50 por registro e que o valor médio cobrado pelas ERCs no mercado é de R$ 109,13. Diante disso, fixou o teto R$ 146,63, autorizando as empresas a praticarem preço menor, desde que garantida a integralidade da parcela devida ao Detran.
A Resolução Contran 807/2020, que substituiu a Resolução Contran 689/2017, manteve no geral a sistemática anterior, com a diferença de que tornou facultativa, e não mais obrigatória, a intermediação das ECDs e das ERCs (artigos 5º, parágrafo 1º, e 8º). Essa foi a opção do Estado do Paraná, que atribuiu o registro dos gravames diretamente ao Detran e, por meio da Lei estadual 20.437/2020, instituiu em favor deste uma taxa de R$ 173,37 – nada menos do que 5 vezes o custo da sua atuação!
A inconstitucionalidade do tributo é nítida, tendo sido denunciada sem sucesso pela Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa estadual. Ofendida está a necessária correspondência entre a taxa e o custo da atuação estatal que lhe serve de fato gerador, seja no nível de cada contribuinte, seja no cotejo do dispêndio público total com a arrecadação proporcionada pelo tributo (princípio da retributividade; CF, artigo 145, inciso II). Violado está também o não confisco (CF, artigo 150, IV), valendo acrescentar que quem compra veículos com alienação fiduciária em garantia não é a parcela mais rica da população, e que não-raro aqueles são destinados ao exercício de atividades econômicas pelas empresas ou pelas pessoas físicas, sobretudo no contexto de economia de compartilhamento hoje vigente (aplicativos de transporte, de entregas, etc.). A jurisprudência do Pleno do STF na matéria é torrencial, valendo citar, entre outros: Rp. 1.077/RJ, Relator Ministro Moreira Alves, DJ 28.09.84; ADI 1.772 MC/MG, Relator Ministro Carlos Velloso, DJ 08.09.2000; ADI 2.551 MC-QO/MG, Relator Ministro Celso de Mello, DJ 20.04.2006; ADI 6.211/AP, Relator Ministro Marco Aurélio, DJe 05.05.2020; ADI 5.374 MC-AgR/PA, Relator Ministro Roberto Barroso, DJe 08.07.2020; ADI 5.512/RJ, Relator Ministro Alexandre de Moraes, DJe 04.09.2020.
No caso em estudo sequer se apresenta a rica e tormentosa discussão sobre a dificuldade de quantificarem-se os custos das atividades estatais, a ser superada com recurso ao princípio da praticabilidade, limitado pela razoabilidade. É que, como visto, existe estudo realizado pelo próprio Estado avaliando em R$ 34,50 o dispêndio do Detran/PR com cada registro. Vale notar que o Paraná faz mais de 400 mil registros por ano, o que aponta para uma arrecadação anual de R$ 70 milhões com a nova taxa, muito superior a qualquer estimativa de despesa com a atividade em tela.
E nem se diga que a taxa seria válida por ter valor próximo ao teto anteriormente fixado pelo Estado, de R$ 146,63. Antes de tudo porque a experiência demonstra que muitas empresas não o atingiam, cobrando preços menores, como lhes era facultado. E depois porque tal teto, aplicando-se a empresas privadas, embutia carga tributária e margem de lucro — fatores naturalmente inaplicáveis ao Detran.
Essa última constatação desautoriza ainda o argumento de que a taxa não destoa dos preços vigentes em outras unidades federadas. Isso sem contar que é impróprio comparar, sem os necessários ajustes, os custos experimentados por Estados tão díspares quanto o Paraná e o Acre, que faz muito menos registros por ano e talvez não conte com os mesmos recursos tecnológicos daquele. Apenas para dar dois exemplos, São Paulo e Santa Catarina cobram meros R$ 74,81 e R$ 74,89 pelo serviço, respectivamente — preços que ademais contemplam a remuneração do Detran e das empresas privadas, que continuam a atuar nesses Estados.
Tampouco cabe afirmar que a Lei estadual 20.437/2020, ao dispensar as ERCs, teria incrementado os atos a cargo do Detran, o que justificaria o aumento de sua remuneração (de R$ 34,50 para R$ 173,37, repita-se). De fato, o Decreto estadual 7.121/2021, que a regulamentou, prevê uma postura eminentemente passiva do órgão, atribuindo às instituições financeiras a responsabilidade por inserir no sistema eletrônico deste todos os dados do contrato, “inexistindo para o Detran/PR obrigações sobre a imposição de quaisquer exigências legais aos usuários referente aos contratos de financiamento de veículos com cláusula de garantia real”, como determina o seu artigo 11.
E, para que não haja dúvidas, o dispositivo acrescenta que (i) quaisquer ônus e responsabilidades quanto aos dados dos contratos devem ser resolvidos exclusivamente pelas partes; (ii) o Detran não será responsável pela regularidade das informações originalmente enviadas; e (iii) em caso de erro, caberá ao credor refazer o procedimento de registro, devendo arcar com os valores relativos à correção do cadastro (parágrafos 1º a 3º).
Nem calha objetar, por fim, que o artigo 76-A do ADCT desvincula “de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2023, 30% das receitas dos Estados e do Distrito Federal relativas a impostos, taxas e multas”, pois tal desvinculação diz respeito a uma relação de Direito Financeiro que se instaura ex post e não afasta a necessária correspondência entre o valor da taxa e o custo do serviço, aplicável à relação tributária, que lhe é lógica e cronologicamente anterior. Do contrário, as taxas seriam utilizadas como instrumento arrecadatório, voltado a custear as despesas gerais do Estado, o que não se admite. Ademais, ainda que o valor da taxa devesse sofrer o impacto financeiro da desvinculação, o caso seria de aumentá-lo em 42,85% (30% com gross up), com o que se chegaria a R$ 54,41, valor ainda muito distante dos R$ 173,37 arbitrariamente fixados pelo legislador estadual.
A matéria é objeto da ADI 6.737/PR (relatora ministra Cármen Lúcia), que ora aguarda decisão sobre o pedido de liminar.
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