Opinião

Os cinco equívocos da decisão que permitiu cultos presenciais na Páscoa

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7 de abril de 2021, 19h22

"(O homem) desejará conservar justamente os seus sonhos fantásticos, a sua mais vulgar estupidez, só para confirmar a si mesmo (como se isto fosse absolutamente indispensável) que os homens são sempre homens e não teclas de piano, que as próprias leis da natureza ameaçam tocar de tal modo que atinjam um ponto em que não se possa desejar nada fora do calendário" (Fiódor Dostoiévski, "Memórias do subsolo") [1].

No último sábado (3/4), por meio de decisão liminar monocrática requerida pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) no bojo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 701 [2], impediu-se que Estados e municípios proibissem cultos presenciais na Páscoa — mesmo diante do alarmante estado de calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19 —, com fundamento na falta de razoabilidade e desproporcionalidade em tais proibições que, na visão do ministro relator, atentam contra a liberdade religiosa (CF 5º. VI).

O artigo estrutura, em cinco passos, críticas à decisão monocrática. Trata-se de uma análise de quem acredita na democracia e na jurisdição constitucional. Compartilhamos da visão de que as instituições fundamentais para a democracia, como o STF, devem ser criticadas para seu aperfeiçoamento e emparedadas, tanto assim é que na semana passada escrevemos sobre o risco de banalização dos pedidos de impeachment feitos contra ministros do STF.

A decisão, como se sabe, encontra-se em frontal desacordo com o que foi decidido pelo Plenário do STF na ADIn 6341 MC, na qual se reforçou a competência legislativa e administrativa concorrente dos entes federativos na adoção de medidas sanitárias de enfrentamento da pandemia. Demais disso, violou-se a decisão unânime proferida na ADPF 703, em que se declarou a ilegitimidade ativa da Anajure para a propositura de ações de controle abstrato de constitucionalidade, apenas reiterando mais de 30 anos de jurisprudência pacífica do STF acerca do alcance da legitimidade conferida às entidades de classe de âmbito nacional (CF 103 IX).

As decisões liminares representam um grande desafio para a jurisdição constitucional justamente pela possibilidade de produção ampla de efeitos por ato de um único agente público não eleito [3]. Já escrevemos, em diversas ocasiões, a respeito do desafio constante da jurisdição constitucional em legitimar-se numa democracia. Com efeito, a suposta incompatibilidade entre constitucionalismo e democracia ocupou grande parte do debate jurídico do século 20 [4].

Não por outra razão, desde a 3ª edição de nosso "Processo Constitucional Brasileiro" e, mais recentemente, em artigo em coautoria com o ministro Gilmar Mendes [5], propusemos que a legitimação da concessão de medidas liminares depende da observância de, ao menos, seis requisitos fundamentais: 1) conter exaustiva fundamentação quanto à necessidade da medida liminar; 2) ser uma forma efetiva de tutela de direitos fundamentais; 3) dever deferência ao plenário, ou seja, estar em consonância com o posicionamento do Pleno sobre a matéria, se houver; 4) encerrar possibilidade de ampla revisão; 5) via de regra, submeter a ADIn imediatamente ao rito abreviado; e 6) inexistência de indícios pela necessidade de modulação dos efeitos da decisão de mérito.

Assim, observamos que a liminar concedida na ADPF 701 deixou de cumprir praticamente todos os requisitos que consideramos mínimos em uma liminar monocrática. Além de incorrer em uma tripla ofensa ao Plenário (como veremos abaixo), a decisão lançou mão ainda de uma fundamentação bastante deficiente, inclusive mediante uso, sem precisão metodológica, de precedente da Scotus, sem qualquer juízo crítico de recepção e adaptabilidade à realidade brasileira. Outrossim, não encerrou ampla possibilidade de revisão pela postura imediata de evitar levar a matéria ao Plenário. Era, conforme aplicação analógica do nosso requisito 5 supracitado, situação típica na qual a ADPF, se superada a falta de legitimidade ativa, poderia ter sido submetida a exame de mérito mediante rito abreviado, dado que a matéria já se encontrava pacificada no Supremo Tribunal Federal.

A sensibilidade da questão das liminares numa democracia constitucional e a plêiade de equívocos que se assomaram numa mesma decisão motivaram nosso artigo. Reiteramos, nossas críticas, sempre respeitosas e cientes da essencialidade de uma Corte Suprema para a manutenção de uma democracia constitucional, podem ser resumidas em cinco etapas.

1° etapa: a tripla ofensa ao Plenário
Conforme já expusemos, a liminar proferida no bojo da ADPF 701 contrariou o decidido pelo Plenário do STF na ADIn 6341 MC, na qual foi reforçada competência legislativa e administrativa concorrente dos entes federativos na adoção de medidas sanitárias de enfrentamento da pandemia. Está aí a primeira ofensa.

Quem acompanha nosso trabalho sabe de nossa adesão à analogia da resposta constitucionalmente adequada, entre nós amplamente difundida pelo querido e sagaz Lenio Luiz Streck, bem como o constante enfrentamento epistemológico ao voluntarismo e à discricionariedade judicial. Não se trata, portanto, de um congelamento das posições do Plenário, mas, sim, reconhecimento de que um tribunal, em especial a Suprema Corte, deve manter posturas institucionais, e apenas o seu Plenário é juiz natural da superação ou manutenção de seus próprios posicionamentos.

Desse modo, os ministros possuem dever de integridade (CPC 926) em face das posições institucionais adotadas pela corte. É ínsito aos tribunais o dever de observância da colegialidade para se assegurar coerência e integridade na jurisprudência.

A segunda ofensa ao Plenário ocorreu porquanto a decisão liminar ignorou a decisão unânime proferida na ADPF 703 que reconheceu a ausência de legitimidade da Anajure para a propositura de ações de controle concentrado de constitucionalidade. Obviamente que fatos supervenientes podem tornar legítimo ente previamente considerado ilegítimo. Entretanto, no caso examinado sequer é possível vislumbrar qualquer mudança apta a justificar a legitimidade da Anajure.

Por fim, a terceira ofensa reside no fato de que se noticiou prontamente que o gabinete informou que não havia previsão para levar a matéria ao Plenário [6], impedindo não só a reforma do decisum, como também a manifestação do Plenário sobre o assunto.

Aqui, podemos destacar a relevância de um dos temais sensíveis da jurisdição constitucional contemporânea: a progressiva deliberação acerca da regulação de determinados temas. Atualmente, a jurisdição constitucional possui como primeira grande tarefa a proteção da autonomia do Direito, mediante correção e controle dos desvios do poder público. Consequentemente, a jurisdição constitucional tem se transformado em controladora temática, ou seja, mais do que uma atividade judicial-repressiva tem incorporado uma função regulamentadora, forçando assim, o desenvolvimento de novos pressupostos para sua ação [7].

Por essa razão, o STF, apesar de não estar na pauta a ADPF 701, pode determinar a regulação do tema e a proteção dos direitos fundamentais da sociedade brasileira julgando a matéria por meio da ADPF 810. Mais do que examinar a especificidade do ato normativo, a função contemporânea da jurisdição constitucional é assegurar a proteção de direitos fundamentais.

2ª etapa: a ilegitimidade ativa da Anajure
A  Anajure não se enquadra no entendimento do STF acerca das entidades de classe de âmbito nacional (CF 103 IX) para a propositura de ações de controle concentrado de constitucionalidade; daí o reconhecimento da sua ilegitimidade ativa na ADPF 703.

Trata-se, a bem da verdade, de mais de 30 anos de jurisprudência sólida a respeito do conceito de entidade de classe [8]. Novamente, volta à baila a mesma questão da responsabilidade institucional do Plenário de, orientado pela busca da resposta constitucionalmente mais adequada, legitimar a jurisdição constitucional do STF em uma democracia constitucional.

A circunstância de que a ilegitimidade ativa da Anajure já houvera sido reconhecida anteriormente pelo Plenário foi "enfrentada" pelo relator no bojo da ADPF 701 [9]. Contudo, entendeu-se pela necessidade de um distinguishing fundado: 1) na instrumentalidade do processo diante da relevante liberdade religiosa; 2) no princípio da primazia da resolução de mérito; e 3) "aparente" divergência jurisprudência, em vista da decisão na ADPF 696 AgRg no qual o tribunal teria aceitado implicitamente a legitimidade da Associação Brasileira de Juristas Pela Democracia (ABJD). Em caso de divergência, ter-se-ia que privilegiar o acesso à justiça.

Vale o registro de que as justificativas para o distinguishing serviriam para superar quaisquer óbices processuais, em essencialmente qualquer processo, o que encontra óbice no CPC 489, §1º, III, e, consequentemente, a CF 93 IX. Outrossim, a se aplicar a primazia do mérito como praticado na referida decisão, o STF seria obrigado a examinar praticamente todas as ADIns ou ADPFs propostas inclusive por particulares. Afinal, a necessidade de se examinar o mérito seria condição suficiente para se superar óbices concernentes à legitimidade.

3ª etapa: incorreto diálogo com a Suprema Corte americana
A decisão liminar também utilizou precedente estrangeiro (Decisão 592 U.S. 2021 da Scotus) de forma equivocada em sua fundamentação. Aliás, o precedente sequer foi contextualizado, mas tão somente mencionado e aplicado sem recepção crítica, o que sequer satisfaz critérios simples de fundamentação, a exemplo do CPC 489, §1º, V. Dito de outra forma, se o CPC proíbe a mera menção a "precedente" brasileiro sem o devido cotejo, o que falar da utilização não fundamentada de decisão estrangeira?

Por óbvio, não somos contrários à utilização de precedentes estrangeiros. Trata-se de verdadeira tendência mundial o diálogo entre jurisdições constitucionais [10]. Todavia, não se pode acriticamente simplesmente aplicar no Brasil a mesma conclusão a que chegou determinado tribunal estrangeiro sem se atentar, minimamente: 1) à constitucionalidade da decisão tomando como paradigma a CF-88; 2) à situação fática brasileira; e 3) à relevância e necessidade de utilização do precedente estrangeiro.

É preciso haver uma antropofagia hermenêutica do precedente estrangeiro. Em geral, precedentes estrangeiros são utilizados em grandes temas constitucionais nos quais um diálogo no âmbito mundial se impõe como forma de reduzir a complexidade da questão e auxiliar a evitar juízos discricionários sobre temas ainda não decididos no Direito nacional. Aqui, nos parece, tratou-se de mero recurso argumentativo para se chegar à decisão que se queria de antemão. Ou seja, o uso cosmético e não metodológico do precedente estrangeiro.

4ª etapa: incorreto equacionamento das consequências da decisão
Já anotamos em diversas ocasiões que um consequencialismo — nos moldes da LINDB 20 c/c CPC 489 §1º — integra uma contemporânea teoria da decisão porquanto elimina qualquer margem de discricionariedade judicial ao aproximar o juiz às especificidades do caso concreto, contribuindo para a decisão constitucionalmente mais adequada.

A decisão ora examinada deixou de considerar que em um país que ultrapassou os 13 milhões de casos de Covid-19, com mais de 333 mil mortes [11], qualquer medida sanitária que possa contribuir minimamente para conter a disseminação do vírus é salutar. Não se está a falar de desrespeito à liberdade religiosa, mas, antes, de medida desproporcional, por proteção deficiente (üntermassverbot), à saúde pública. A impossibilidade de realização de cultos presenciais de Páscoa, ocasião central na vida religiosa de judeus e cristãos, não impede que estes comunguem de qualquer religião ou expressem, dentro das difíceis circunstâncias em que vivemos, suas convicções religiosas.

Aliás, o uso equivocado da decisão da Scotus demonstra precisamente isso: é absolutamente impossível equiparar a situação fática do Brasil à dos EUA, que já logrou êxito em reduzir os índices de morte e contaminação pelo coronavírus mediante programas de vacinação que caminha em velocidade muito superior à nossa [12].

5ª etapa: decisão ativista
Por fim, e não menos importante, a decisão foi patentemente ativista porquanto substituiu o direito aplicável por uma convicção pessoal do julgador de que a impossibilidade de cultos de Páscoa presenciais feririam a liberdade religiosa constitucionalmente assegurada. Na expressão de Lenio Streck, julgou-se pela consciência e não a partir da autonomia do Direito [13].

Não há, em nossa visão, qualquer justificativa plausível para o mérito da liminar concedida. Lembra-nos, de certa forma, do paradoxalista subterrâneo de Dostoiévski, que, revoltado com tudo e todos, pode ir até mesmo contra a mais cabal das obviedades matemáticas para provar a si mesmo que ainda é dono de uma vontade independente: "O homem precisa unicamente de uma vontade independente, custe o que custar essa independência e leve aonde levar. Bem, o diabo sabe o que é essa a vontade…" [14].

O direito não é, nem pode ser, puro ato de poder, sob pena de degenerar o Estado democrático desde dentro. Sobre isso discorremos longamente em nosso "Direito Constitucional Pós-Moderno" [15].

Numa palavra, a lógica da prestação jurisdicional, em uma democracia constitucional, não é evangélica: "Peçam, e lhes será dado. Procurem, e encontrarão. Batam, e lhes será aberto. Pois todo aquele que pede, recebe, quem procura encontra, e a quem bate se abrirá" (Mt 7:7-8).

 


[1] Fiódor Dostoiévski. Memórias do subsolo, trad. Boris Schnaiderman, 6ª Ed., São Paulo: Editora 34, 2009, p. 44.

[2] STF, decisão monocrática, ADPF 701, rel. ministr Nunes Marques, j. 3.4.2021

[3] Ver Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro, 4ª Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, n. 3.7, p. 522 e ss.

[4] Ibidem, n. 9.1, p. 1307-1308.

[5] Georges Abboud e Gilmar Ferreira Mendes. Da monocratização à deferência ao plenário: um ensaio sobre os critérios para a concessão de medidas liminares no controle abstrato de constitucionalidade, In: Revista de Processo, vol. 312/2021, fev/2021.

[6] A expectativa é a de que, em 7.4.2021, o tema efetivamente chegue ao Plenário; contudo, o feito em julgamento não será a ADPF 701, mas sim a ADPF 810 – proposta contra o Decreto n. 65.563/2021 2º II do Estado de São Paulo – no bojo do qual se discute a exata mesma questão e no qual o ministr Gilmar Mendes rejeitou a concessão de liminar para a realização de "cultos, missas e demais atividades religiosas de caráter coletivo." C.f. por todas https://epoca.globo.com/guilherme-amado/980080-nunes-marques-afirma-que-nao-tem-previsao-de-levar-plenario-do-stf-autorizacao-para-cultos-24955208.

[7] Georges Abboud. Direito Constitucional Pós-Moderno, 1ª Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 450.

[8] Tradicionalmente, a jurisprudência do Supremo tem entendido como entidade representativa de classe aquela que tem por membros os integrantes de uma determinada categoria profissional ou econômica, afastando a legitimidade de entidades de fins puramente sociais. V.g. ADIn 271-DF, ADIn 894-DF, ADIn 335-DF; ADIn 1442-DF; ADIn 4224 AgR-DF, ADI 5048-DF, ADIn 5061 AgR-DF, AgR na ADIn 5071-RJ, ADPF 406 AgR-RJ e ADIn 4660 AgR-DF.

[9] "Não se ignora que, no julgamento do Agravo Regimental na ADPF 703/BA, Rel. ministr Alexandre de Moraes, julgado em 17/02/2021, este Tribunal considerou que a ora autora não seria parte legítima." STF, decisão monocrática, ADPF 701, rel. ministr Nunes Marques, j. 3.4.2021, p. 6/16 da decisão.

[10] Ver Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro, 4ª Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, n. 6.11, p. 1193 e ss.

[11] Covid-19 Data Repository by the Center for Systems Science and Engineering (CSSE) at Johns Hopkins University. Disponível em: https://github.com/CSSEGISandData/Covid-19.

[12] C.f. https://veja.abril.com.br/saude/Covid-19-ritmo-de-vacinacao-nos-eua-ainda-e-4-vezes-superior-ao-do-brasil/

[13] A decisão pode ser enquadrada naquilo que denominamos ativismo populista, elaborada para produzir determinado sentimento social num momento em que o anticientificismo e ceticismos de toda ordem alcançam espaços praticamente inimagináveis. Ver Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro, 4ª Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, n. 10.2.5, p. 1426 e ss.

[14] Fiódor Dostoiévski. Memórias do subsolo, cit., p. 39.

[15] Georges Abboud. Direito Constitucional Pós-Moderno, 1ª Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, passim.

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