Sobre o trancamento judicial de inquérito civil público
6 de abril de 2021, 17h06
Recentes inovações normativas, dogmáticas e jurisprudenciais — tais como reforma da LINDB (Lei federal nº 13.655/18), Lei de Abuso de Autoridade (Lei federal nº 13.869/19), possibilidade do acordo de não persecução cível (ANPC) (Lei federal nº 13.964/19, artigo 6º) e o Enunciado nº 64/2020 do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP [1]) — reforçam sobremaneira a possibilidade jurídica de trancamento judicial de inquéritos civis públicos (ICPs), promovidos pelo Ministério Público e demais órgãos da Administração Pública.
Embora até aqui não muito corrente, insta assinalar que a possibilidade de trancamento judicial de ICP não encontra resistência na jurisprudência do STJ. Bem ao contrário, a corte superior admite-o em tese "em situações excepcionais, quando comprovadas, de plano, a atipicidade da conduta, causa extintiva da punibilidade ou ausência de indícios de autoria" [2].
O Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJ-MT), inclusive, determinou o trancamento de um inquérito civil aberto em desfavor de um juiz de Direito, sob o argumento de ausência de justa causa e de existência de abuso de poder. Na oportunidade, o TJ-MT afirmou ser abusiva e ilegal a instauração de investigação contra magistrado se estiver desde logo evidenciado que as circunstâncias apontadas como razões da abertura do inquérito representam, na verdade, exercício puro da atividade jurisdicional [3].
Todavia, compreendemos que, atualmente, a interrupção de uma investigação administrativa ou ministerial não deve se limitar aos motivos referidos acima. A apreciação de um pedido de trancamento judicial de ICP precisa levar em consideração a observância de outras hipóteses tão importantes quanto a existência de tipicidade da conduta e de indícios de autoria e materialidade.
O debate sobre o tema há de evoluir a partir de nova premissa, qual seja, a de uma profunda e necessária reflexão acerca do papel contemporâneo do ICP no sistema de Justiça multiportas brasileiro. Tal sistema cada vez mais desenvolve-se em torno de mecanismos judiciais e extrajudiciais de solução negociada de conflitos, privilegiando-se a existência de uma autêntica Justiça negociada. Assim, não se pode mais sustentar que o ICP é um mero instrumento de investigação, preparatório de uma tomada de decisão do órgão ministerial, no sentido de justificada e posteriormente processar-se ou não o investigado na Justiça. Esse posicionamento é decididamente míope, pois leva à falsa percepção de que a competência pela resolução de todos os fatos que em tese ensejariam alguma responsabilização dos investigados em supostos ilícitos seria única e exclusiva do Poder Judiciário, quando na verdade atual legislação confere essa atribuição aos próprios órgãos com capacidade investigatória.
É que, para além do já consagrado termo de ajustamento de conduta (TAC) previsto na Lei de Ação Civil Pública, existem recentes alterações legislativas que reforçaram a natureza negocial-colaborativa — e não exclusivamente inquisitorial-investigativa — do ICP quando, por exemplo, autorizaram expressamente a assinatura dos novíssimos acordos de não persecução cível (ANPCs) no âmbito da improbidade administrativa, a partir da edição da Lei federal n° 13.964/2019 [4].
O ordenamento jurídico, com isso, passa a determinar o seguinte: todo e qualquer órgão ministerial ou ente público, antes de partir para o litígio judicial, deverá aprofundar as investigações para identificar e reforçar ao máximo os contornos da justa causa. Na sequência, haverá de buscar resolver o conflito na origem, direta e extrajudicialmente com a parte investigada, atendendo ao devido processo legal adequado e desafogando o Poder Judiciário.
Portanto, resta claro que o inquérito civil público se consolida como um relevante procedimento que deverá prestigiar, sempre que possível, acordos autocompositivos vocacionados à resolução extrajudicial de conflitos no sistema de justiça multiportas brasileiro.
E qual é a consequência direta dessa nova identidade normativa e funcional do ICP? É a de refundar e reconfigurar o próprio sentido de "justa causa" aplicável aos ICPs, originando novas hipóteses de avaliação administrativa e judicial da legalidade e da legitimidade da instauração dos ICPs.
Antes vista como elemento exclusivo de validação ou não de um ICP, estruturada a partir da prevalência de requisitos rígidos e reforçadores do caráter mais autoritário e impositivo do ICP, a justa causa passa agora a ocupar um papel muito mais decisivo na pavimentação da efetiva solução dos fatos apurados. É como dizer: a demonstração cabal da justa causa é o meio pelo qual se permitirá que, antes da propositura de uma demanda judicial, o órgão ministerial diretamente possa, com a parte investigada, intentar promover a solução negociada para a controvérsia, retirando-se do Poder Judiciário a responsabilidade exclusiva de julgar a demanda naquele caso concreto.
Entretanto, importa ressaltar que tal avanço não será possível sem a adoção de um "devido processo legal adequado" aos ICPs. É fundamental que o desenho da justa causa seja acompanhado da colaboração ativa do sujeito investigado. Nenhuma conclusão poderá ser considerada fundamentada se não tiver, antes, permitido a participação do investigado na elucidação dos fatos, por meio da cogente observância do contraditório e da ampla defesa [5].
Apesar de carente de um debate aprofundado, existem previsões infralegais da cúpula do Ministério Público admitindo a necessidade de maior atenção à posição do investigado e concedendo, com isso, maior destaque à configuração da justa causa no caso concreto. Referimo-nos à Resolução 181/2017 e à Recomendação Conjunta Presi-CN 02/2020 [6] [7], ambas do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
A primeira inseriu na atuação ministerial o que podemos chamar de embriões do devido processo legal adequado. Consta nos considerandos da resolução que o "diploma legal não tem o condão de afastar a natureza inquisitorial das investigações preliminares, mas sim de outorgar um viés mais garantista à investigação, buscando assegurar os direitos fundamentais do investigado". Há aqui um claro discurso de moderação do Ministério Público para que durante a busca pela justa causa, tanto o interesse público, quanto a atenção e proteção da posição do investigado sejam adequadamente considerados e respeitados.
A segunda previsão infralegal, publicada em tom recomendatório, sugere aos integrantes do Ministério Público maiores racionalidade e eficiência em seus atos e medidas [8]. Sem desconhecer a essencialidade do órgão para o Estado democrático de Direito, o CNMP passou a "recomendar aos membros do Ministério Público brasileiro que atentem para os limites de suas funções institucionais, evitando-se a invasão indevida das atribuições alheias e a multiplicação dos conflitos daí resultantes". Também que "na fiscalização de atos de execução de políticas públicas seja respeitada a autonomia administrativa do gestor e observado o limite de análise objetiva de sua legalidade formal e material".
O impacto desse novo espírito eficiente e racional recomendado pelo CNMP, embora não dito expressamente, certamente afetará o modus operandi dos ICPs. Hoje, a justa causa não se resume mais à mera demonstração de um fato típico, ilícito e culpável, com indícios de autoria e materialidade. O agente ministerial deve otimizar os instrumentos de que dispõe para fiscalizar o interesse público, enxergando na justa causa um meio fundamental para se inserir no inquérito mecanismos de consensualidade com vistas à resolução colaborativa do conflito, sempre respeitando o devido processo legal adequado.
Portanto, faz-se necessário acrescentarmos como hipóteses legítimas de trancamento judicial de ICPs, além da falta de justa causa, também a ausência de respeito ao devido processo legal adequado e a inexistência de abertura de um canal de negociação pelo Ministério Público com o investigado, ainda que o consenso se revele infrutífero posteriormente.
Assim, considera-se passível de trancamento judicial o ICP que, apesar da comprovação de justa causa e observância do devido processo legal adequado, tenha deixado de oportunizar um canal de diálogo cooperativo com o sujeito investigado rumo a uma possível solução negociada. A intenção é atentar-se com mais vigor aos tipos de abuso de autoridade previstos na Lei federal nº 13.869/19 — principalmente o contido no artigo 27 [9] —, evitando-se, assim, a consagração e perpetuação de investigações eminentemente persecutórias, ilegítimas e instauradas com desvio de finalidade, que tantos constrangimentos têm gerado a inúmeros investigados em todo o território nacional.
[1] "PROMOÇÃO DE ARQUIVAMENTO POR FALTA DE JUSTA CAUSA. CABIMENTO DA HOMOLOGAÇÃO DO ARQUIVAMENTO. A inexistência de prova idônea, produzida no curso da investigação, a ratificar a notícia que ensejou a instauração de inquérito civil público ou procedimento preparatório, traduz hipótese de falta de justa causa e o arquivamento deve ser homologado. Referência legislativa: Constituição Federal de 1988, artigo 37, ‘caput’; Lei Federal n°º 7.437/1985, artigo 9º; Resolução CNMP n°º 23/2007, artigo 10 e Resolução GPGJ n°º 2.227/2018, artigo 27. Data da aprovação: 13 de fevereiro de 2020, com vigência após decorridos 60 (sessenta) dias da publicação. Objeto: Unificação dos Enunciados CSMP n°º 05 e 11. Fonte de publicação: Diário Oficial Eletrônico do MPRJ de 13.02.2020"(http://www.mprj.mp.br/documents/20184/1128257/enunciados_comvigenciaapartirde14042020.pdf).
[2] STJ. Recurso em Mandado de Segurança n° 30.510/RJ, 2ª T., Rel. Min. Eliana Calmon, j. 17.12.09.
[3] TJ-MT. Mandado de Segurança n° 1004572-72.2018.8.11.0000. Relator Des. Marcio Vidal, j. 07.11.19.
[4] "Artigo 17, §1º, da Lei 8.429/1992 – As ações de que trata este artigo admitem a celebração de acordo de não persecução cível, nos termos desta Lei"; artigo 17, §10-A, da Lei 8.429/1992: "Havendo a possibilidade de solução consensual, poderão as partes requerer ao juiz a interrupção do prazo para a contestação, por prazo não superior a 90 (noventa) dias".
[5] Sobre o tema, infelizmente ainda pouco tratado na doutrina pátria, cf. OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de; BARROS FILHO, Wilson Accioli de. Inquérito Civil Público e acordo administrativo: apontamentos sobre devido processo legal adequado, contraditório, ampla defesa e previsão de cláusula de segurança nos Termos de Ajustamento de Conduta (TACS). In: OLIVEIRA, Gustavo Justino de (coord.); BARROS FILHO, Wilson Accioli de (org.). Acordos Administrativos no Brasil: teoria e prática. São Paulo: Almedina, 2020, p 111.
[6] https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resoluo-181-1.pdf.
[7] https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Recomendacoes/RECOMENDAO-CONJUNTA-PRESI-CN-N-2-DE-19-DE-JUNHO-DE-2020-1.pdf.
[8] Cf.: OLIVEIRA, Gustavo Justino de; O hiperativismo do controle externo da gestão pública pós-lei federal nº 13.655/18: panorama das adaptações comportamentais e normativas do TCU e do Conselho Nacional do Ministério Público-CNMP frente aos novos parâmetros pragmatistas e consequencialistas de Direito Público fixados pela LINDB. In: MAFFINI, Rafael (coord.); RAMOS, Rafael (coord.). Nova LINDB. Consequencialismo, deferência judicial, motivação e responsabilidade do gestor público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p 261.
[9] "Artigo 27 – Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa".
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!