Opinião

É inconstitucional exigir que empresas doem totalidade das vacinas ao SUS

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6 de abril de 2021, 19h20

Com a aprovação de algumas vacinas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a constatação de que o Estado é incapaz de imunizar o povo com a velocidade que a atual crise requer, instaurou-se debate sobre a participação das empresas nesse processo. A ideia, no entanto, passou a sofrer resistência, em grande parte com base num discurso moralista.

Nesse contexto, editou-se a Lei n° 14.125/21, cujo artigo 2º estabelece que: a) durante a vacinação dos grupos prioritários (alterados diversas vezes), as empresas podem comprar vacinas com recursos próprios, mas devem destiná-las integralmente ao Sistema Único de Saúde (SUS); e b) após os grupos prioritários, elas podem adquiri-las e aplicá-las de forma gratuita nos seus grupos de interesse, desde que metade das doses seja doada ao SUS.

Ocorre que, a pretexto de "permitir" o concurso das empresas, a lei criou um sistema em que não há qualquer incentivo à sua imediata participação no programa de vacinação, pois nenhuma das doses adquiridas pode ser revertida aos seus colaboradores. Na prática, isso faz com que elas simplesmente não participem do programa, sendo mais conveniente aguardar a segunda etapa de imunização, para só então aderir ao programa, movidas pela possibilidade de aplicar metade das doses adquiridas em seu grupo de interesse direto.

Recentemente, a Justiça Federal de Brasília houve por bem "declarar a inconstitucionalidade" das exigências de doação integral de vacinas na primeira etapa de imunização e de 50% das doses na segunda etapa, por entender que "não há impedimento legal de a sociedade civil participar imediatamente do processo de imunização" dos brasileiros. Além disso, permitiu-se que as entidades autoras importem vacinas "sem a necessidade de realizar" quaisquer das "doações coativas impostas no artigo 2º da Lei n° 14.125/21", aplicando-as em seus associados de forma gratuita.

Neste artigo, comentam-se alguns pontos de acerto e desacerto da referida decisão, bem como explicam-se as razões pelas quais o concurso da iniciativa privada na imunização gratuita contra a Covid-19 não só é constitucionalmente legítimo, mas também desejável neste momento de crise. Vejamos.

1) O debate deve nortear-se pela ideologia da Constituição de 1988
O debate sobre a participação ou não da iniciativa privada na imunização contra a Covid-19 tem tido conotação ideológica, girando em torno do lugar-comum da suposta oposição entre "ricos" e "pobres" e entre interesses "públicos" e "privados". Contudo, longe de uma vacinação onerosa e a preços extorsivos, ou, ainda, de "clubes vacinais" exclusivos para super-ricos, o que as empresas pretendem é vacinar gratuitamente ou a preço de custo seus funcionários e respectivos familiares, para tentar acelerar a volta às atividades normais.

Num Estado democrático de Direito, questões de interesse público decidem-se pela ideologia do texto constitucional, e não pela ideologia deste ou daquele segmento. No caso do Brasil, optou-se por "instituir um Estado" em que liberdade e justiça são "valores supremos" (CF/88, Preâmbulo) e cujas estruturas servem à construção de "uma sociedade livre, justa e solidária" (artigo 1º, II e III, e artigo 3º, I). Assim, estão lado a lado a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1º), todos voltados à promoção do bem de todos (artigo 3º). Por isso, se a Constituição não comunga com um capitalismo hardcore, ela também está longe de ser comunista, estatista ou autoritária. O que ela preconiza é uma forma de liberalismo humanista, no qual a livre iniciativa é temperada pela função social do capital e do trabalho [1].

Um dos méritos da decisão aqui comentada é o de distanciar-se dos lugares-comuns mencionados e examinar o tema sob o enfoque fático e constitucional, decidindo o caso de acordo com a excepcionalidade do momento.

2A Constituição permite o concurso das empresas em matéria de saúde: restrições devem ser razoáveis
Segundo a Constituição, a ordem social "tem como base" (isto é, fundamento) "o primado do trabalho" e "como objetivo o bem-estar e a justiça social". Compete ao Estado a "função de planejamento das políticas sociais, assegurada, na forma da lei, a participação da sociedade" na sua formulação, promoção e controle. Além disso, "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença… e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação" (artigo 196).

Ora, se saúde é direito de todos e dever do Estado, mas este é incapaz de prestá-la com a qualidade e agilidade esperadas, tanto por ineficiência quanto por motivos de força maior, é razoável que a qualquer cidadão se permita buscar o necessário fora do sistema público. Do contrário, negar-se-ia eficácia à garantia fundamental, por apego a um "estatismo" avesso à liberdade privada, sem haver razões que o justifiquem.

Apenas isso já seria suficiente para legitimar o concurso das empresas em matéria de saúde pública, inclusive no contexto da atual crise pandêmica. Porém, a Constituição é clara ao reconhecer a "relevância pública" das "ações e serviços de saúde", cabendo "regulamentação, fiscalização e controle" estatais, garantida sua execução, "também, por pessoa física ou jurídica de direito privado" (artigo 197). E, para eliminar quaisquer dúvidas, previu-se, de maneira categórica, que "a assistência à saúde é livre à iniciativa privada", ressalvado o controle estatal sobre essa atuação (artigo 200, I). Inclusive, há disposição expressa no sentido de que "as instituições privadas poderão participar de forma complementar" na promoção da saúde.

A propósito, a mais alta corte do país sempre considerou válido o concurso da iniciativa privada em matéria de saúde, pois, além de amparado "no direito constitucional de acesso à saúde, também atende aos ditames da livre iniciativa" (STF, Pleno, RE 948.634/RS, 20/10/2020). Tratando-se de atividade de relevância pública, a atuação das empresas é livre, porém sujeita a regulamentação, fiscalização e controle do Estado, até para que se proteja a população (STF, Pleno, ADI 4512, 07/02/20158). Ademais, a atuação das empresas deve compatibilizar-se com a universalização do acesso, bem como com eventuais restrições que sejam de interesse público. E, havendo conflitos, aplicam-se a razoabilidade e a proporcionalidade como critérios de controle [2] [3] [4].  

Portanto, segundo entendimento consolidado do STF, o acesso da iniciativa privada às atividades de saúde é garantido, desde que afinado com o atendimento universal, a proteção à vida e o respeito ao interesse público. A regra de ouro é a prevalência da vida e dos interesses da coletividade, sendo a atuação das empresas possível aos olhos da Constituição sempre que contribua ao alcance desses objetivos. Restrições estatais são cabíveis se e na medida em que necessárias, adequadas e proporcionais, além de voltadas a fins legítimos [5].

3Ausência de motivos razoáveis para vedar a imediata participação das empresas na imunização em massa
Diante do acima exposto, questão que se põe é saber em que casos a participação da iniciativa privada na imunização em massa poderia contrariar direito à vida e o interesse coletivo. Obviamente, sob o primeiro ângulo (vida), a participação gratuita
 na forma da Lei n° 14.125/21  só seria indevida se se utilizassem vacinas perigosas, ou, ainda, se as empresas e entidades atuantes acarretassem insuficiência de doses para o SUS ou interferissem de qualquer outra forma prejudicial ao plano nacional de imunização. Já no que tange à segurança, não haveria com que se preocupar, pois o pressuposto da lei é que se usem imunizantes aprovados pela Anvisa, que gozam de presunção de segurança em seu favor.

Por outro lado, em termos de universalidade, a participação da iniciativa privada numa imunização conjunta com o poder público e gratuita aos destinatários seria inválida apenas se, de algum modo, elas competissem com o SUS pelos mesmos itens ou se suas compras prejudicassem as condições de negociação do poder público. Porém, no caso, não há indícios de que as empresas possam acarretar desabastecimento ou aumentar o preço das doses. Ao contrário, as vacinas do SUS já se encontram reservadas por força de contratos bilionários firmados entre o governo e as farmacêuticas. Ademais, segundo a sentença examinada, as empresas adquiririam vacinas da "cota privada" da produção, isto é, das doses reservadas para contratações privadas.

Se tanto não bastasse, a atuação das empresas é desejável à luz de outros imperativos constitucionais. Sob a eficiência e economicidade públicas, ela auxiliaria a imunizar um maior número de pessoas em menor prazo, sem que os custos daí decorrentes fossem suportados apenas pelo Estado. Sob o desenvolvimento social e econômico, ela contribuiria para uma retomada mais célere da atividade produtiva, gerando novos postos de trabalho, elevação da renda em circulação e até mesmo aumento da arrecadação estatal.

Em suma, como a imunização no país tem se mostrado mais lenta do que ele pode suportar, proibir que iniciativa privada vacine gratuitamente seus grupos de interesse equivale a expor a vida de milhões a risco desnecessário.

4) Inconstitucionalidade parcial das restrições examinadas: violação à proporcionalidade e à razoabilidade
Além de não haver óbice constitucional à participação das empresas na imunização gratuita dos brasileiros, há motivos de interesse público que acentuam a legitimidade dessa atuação. De fato, ao tentar viabilizar o concurso da iniciativa privada nesse processo, o próprio Congresso Nacional admitiu haver razões suficientes para tanto. É dizer: a situação já foi valorada pelos representantes do povo, inserindo-se a Lei 14.125/21 numa estrutura meio/fim, cujo fim é vacinar o maior número de brasileiros no menor prazo possível.

Entretanto, essa estrutura meio/fim encontra-se parcialmente viciada. De fato, a exigência de que todas as doses adquiridas pelas empresas na primeira etapa de vacinação sejam doadas ao SUS acaba por eliminar o interesse direto que elas poderiam ter nessa atuação conjunta. E, assim, ao invés de "permitir" que a iniciativa privada atue, na prática, o que se fez foi levá-la a não aderir ao programa de imunização público-privada previsto na lei, mediante a inserção de condição absurda, porque proibitiva. Com isso, a lei frustrou seus próprios fins, numa contradição interna da estrutura meio/fim. Em suma, a Lei n° 14.125/21 excedeu o que se poderia razoavelmente exigir das empresas no programa de vacinação, contrariando as razões que justificaram sua própria edição. 

Por isso, andou bem a sentença examinada, ao afirmar que, se o intuito era permitir que a vacinação atingisse níveis satisfatórios o mais rápido possível, não faria sentido criar condições impeditivas à adesão das empresas. De fato, é inconstitucional a exigência de doação total das vacinas na primeira etapa do programa, por ser ela inadequada à obtenção do fim desejado. Também acertou a sentença ao proibir a comercialização das vacinas, pois, no momento, nada aconselha a abertura para a exploração econômica das mesmas dentro do país.

Entretanto, quanto à doação de 50% das doses, nesse momento de total excepcionalidade, não parece ser ilegítimo que o poder público exija que os particulares colaborem para a vacinação da coletividade como condição para autorizar que eles imunizem com recursos próprios os seus grupos de interesse. Nesse sentido, ao contrário do que afirma a decisão, não se trata de confisco, nem de tributo sem previsão constitucional, nem de expropriação ou requisição sem justa indenização. Tampouco se cuida de doação mediante coação, pois não se está a "explorar o medo da doença, o medo da morte, o medo da paralisação econômica etc.". O mecanismo da Lei n° 14.125/21 já é algo conhecido em nossa tradição jurídica: uma autorização pública (para vacinar certas pessoas) concedida mediante encargo (a condição de contribuir para a vacinação da coletividade). Encargo, aliás, amparado pelo interesse público e preceitos constitucionais antes referidos. 

Nesse sentido, embora bem fundamentada e proferida no momento em que a participação de todos na imunização se tornou imprescindível "de fato" e "de direito", pode-se dizer que a decisão em comento ultrapassou os limites do controle de constitucionalidade que poderia ser corretamente realizado sobre a norma examinada.

5) Conclusão
Portanto, é inconstitucional a exigência de doação total das vacinas adquiridas pelas empresas como condição de adesão à primeira etapa do programa público-privado de imunização contra a Covid-19, pois, por ser desproporcional, a restrição aniquila a vontade dos particulares de contribuir com o poder público, frustrando a finalidade da Lei n° 14.125/21 e colocando em desnecessário risco a vida de milhões de pessoas. Entretanto, não parece inconstitucional, na atual crise, que o poder público exija 50% das doses adquiridas pela iniciativa privada como condição para autorizar que ela imunize os grupos de seu interesse direto.

Nesse sentido, deve-se reconhecer que a sentença recém-proferida descortina um dos grandes impeditivos hoje existentes para a vacinação em massa. Ela andou bem ao afastar as restrições que inviabilizam a imediata participação da iniciativa privada no processo de imunização contra a Covid-19, mas excedeu-se no que respeita à eliminação de encargo legal que seria legítimo diante das circunstâncias em que vivemos.

 


[1] Cf. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito Constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Barueri, SP: Manole, 2007. P. 447-449.

[2] Cf. STF, Pleno, ADI 4306, 19/02/2020.

[3] Cf. STF, 2ª Turma, RE 1249715, DJ 04/11/2020.

[4] Cf. STF, Pleno, ADI 3512, 23/06/2006.

[5] Cf. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2010. P. 414).

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