Opinião

Presos cobaias ou cobaias presas? A infeliz manifestação de Xuxa Meneghel

Autores

  • Luiz Flávio Borges D'Urso

    é advogado criminalista mestre e doutor em Direito Penal pela USP presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção de São Paulo por três gestões (2004/2012) presidente de honra da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim) e presidente da Academia Brasileira de Direito Criminal (ABDCrim).

  • Flávio Filizzola D'Urso

    é advogado criminalista mestrando em Direito Penal pela USP pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade de Coimbra (Portugal) especialista pela Universidade de Castilla-La Mancha (Espanha) ex-membro dp Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (2018) e ex-conselheiro Estadual da OAB-SP (gestão 2016-2018).

6 de abril de 2021, 13h39

A apresentadora Xuxa Meneghel provocou muita polêmica com sua manifestação na qual defendeu, para poupar os animais, a utilização de presos como "cobaias" para experimentos de remédios e vacinas.

Há muito tempo que os presos no Brasil são colocados à margem da sociedade e, neste período de pandemia, essa situação se agravou, pois quase nada foi feito com relação a isso.

Não se pode esquecer que a lei que autoriza a supressão da liberdade para punir alguém também estabelece os limites dessa punição estatal, que não pode ir além desse cerceamento de liberdade, de modo que o ser humano custodiado pelo Estado deve ter sua integridade física e sua saúde preservadas pelo próprio Estado que lhe privou a liberdade.

Parte da sociedade é extremamente hipócrita quando sustenta punições cada vez mais severas, cruéis e violentas, algumas até ilegais, nos casos em que tais punições se destinam aos outros, todavia, quando essas punições são dirigidas a um familiar ou a alguém próximo aflora nessa mesma sociedade uma gigantesca piedade e imensa benevolência jamais vistas.

Assim sempre foi em toda história da humanidade. Não é preciso ser culto para conhecer como a sociedade pediu o perdão e a libertação do popular Barrabás enquanto bradava ensandecida pela pena de morte por crucificação para aquele preso chamado Jesus.

Esta reflexão não se trata somente do pouco caso com que os presos são tratados em nosso país, das míseras condições a que são regularmente submetidos, das poucas condições sanitárias que lhes são disponibilizadas, da falta de importância que se dá à sua saúde, mas, na verdade, trata-se da revelação do lado mais desumano do próprio ser humano, que não dá valor à vida daquele que teve a infelicidade de cometer um crime e está cumprindo pena, encarcerado.

Não surpreende que radicais preguem a vingança estatal e a violência contra os apenados, festejando linchamentos e até punições capitais, mas, quando essa infeliz manifestação, dotada de absoluta desumanidade, é proferida por quem tem influência social, isso causa preocupação.

Foi exatamente isso a que assistimos recentemente, o ápice da demonstração de total desprezo pela saúde e pela vida de seres humanos que cumprem pena criminal, na manifestação da famosa apresentadora de televisão Xuxa Meneghel.

Em uma live, Xuxa condenou os testes de remédios e vacinas que são realizados em animais e, surpreendentemente, sugeriu que esses mesmos experimentos fossem realizados em seres humanos que estão presos, utilizando-os como "cobaias". A crueldade dessa manifestação é coroada pela justificativa de que assim "pelo menos eles (os presos) serviriam para alguma coisa antes de morrer". Revela-se, assim, que a apresentadora não tem a menor ideia do sistema de penas de seu país e admite que todo aquele que cumpre pena irá morrer no cárcere

É importante destacar que, após a repercussão negativa de sua fala, Xuxa pediu desculpas, reconhecendo que cometeu um erro e considerou justas todas as críticas recebidas.

O recuo da Xuxa era necessário, principalmente no momento em que o país se vê mergulhado em manifestações racistas, preconceituosas, contaminadas pelo ódio que permeia as redes sociais, sufocando a verdadeira vocação do ser humano, de solidariedade ao semelhante.

Esse infeliz episódio serve para lembrar o descaso com a saúde da massa carcerária, recolhida nas piores condições do sistema prisional brasileiro, exatamente neste período crítico de colapso do sistema de saúde, no qual o povo, desorientado, morre nas filas à espera de uma vaga nos hospitais do país.

Nesse contexto lembra-se que no Brasil não existe prisão perpétua ou ad eternum (para se usar o termo da manifestação da apresentadora), uma vez que o artigo 75 do Código Penal, alterado pela recente Lei 13.964/19 (lei "anticrime"), somente aumentou o prazo máximo de cumprimento das penas privativas de liberdade, de 30 para 40 anos, como regra.

É a Constituição Federal que veda expressamente a pena de prisão perpétua, em seu artigo 5º, XLVII, "b", que estabelece que "não haverá pena de caráter perpétuo", assim, inexiste essa possibilidade no Direito brasileiro, sugerida, erroneamente, pela apresentadora.

Importante ressaltar que o Código Penal apresenta apenas três espécies de penas, quais sejam, privativas de liberdade, restritivas de direitos e de multa, conforme disposto no artigo 32 e estabelece que deverão ser preservados todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, sendo imposto, expressamente, a todas as autoridades, o respeito à integridade física e moral do preso, de acordo com o artigo 38 do Código Penal e artigo 5º, XLIX, da Constituição Federal.

Como se verifica pela lei brasileira, a privação da liberdade é a pena imposta ao preso, não havendo a possibilidade de nenhum acréscimo de punição, especialmente alguma que submeta este preso à condição de "cobaia". Isso se mostraria ilegal, desumano e irracional, não só pela falta de previsão legal, mas, principalmente, pela afronta à vida e à dignidade humanas.

Essa ideia absurda, caso materializada em conduta, com a utilização de presos como "cobaias", em tese estaria tipificada no artigo 132 do Código Penal, que estabelece como crime "expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente".

As afirmações da Xuxa revelam uma deformação de conceitos, pois disse ela que os presos "não serviriam para nada". Sem entrar no mérito de que cada preso é sempre pai, mãe, filho ou filha, irmão, tio ou tia, marido ou esposa de alguém, trata-se de uma vida humana que enseja respeito e sacralização, pois a vida é sagrada. Assim não fosse, seria absolutamente desnecessário punir o homicídio (matar alguém).

Aquele que está cumprindo sua pena possui obrigações e também direitos que devem ser respeitados, visando tanto ao interesse coletivo de punir para que sirva de exemplo a todos como ao interesse pessoal, que é o retorno daquele preso ao convívio social após o cumprimento de sua pena, ressocializado.

Sabe-se que essa ressocialização no Brasil é uma utopia, e isso por culpa exclusiva do Estado, uma vez que o sistema prisional brasileiro está absolutamente falido e tem sido palco de desrespeitos e violações aos mais elementares direitos humanos.

Entre os principais direitos do preso, cotidianamente desrespeitado, está o de trabalhar, que é um direito/dever, pois ele poderá obter benefícios com seu trabalho que impactam na execução de sua pena pela remição dos dias trabalhados (artigo 126 da Lei de Execução Penal).

A ausência de oportunidade de trabalho para o preso no sistema prisional brasileiro foi novamente escancarada no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen).

De acordo com o Infopen, atualizado até dezembro de 2019 (ou seja, antes da pandemia), dos mais de 748 mil presos brasileiros, apenas cerca de 145 mil, isto é, menos de 20%, trabalhavam.

Não se pode esquecer que aquele que está preso é um ser humano cuja existência tem o mesmo valor de qualquer outro ser humano. Aliás, isso fica visível na atividade médica, quando o profissional de saúde não diferencia a vida das diversas pessoas que trata, valorando-as igualmente.

Dado o exposto, as declarações da apresentadora Xuxa Meneghel servem para uma reflexão de alerta sobre o sistema prisional brasileiro, sobre as pessoas esquecidas que ali se encontram cumprindo pena, especialmente durante esta pandemia, e sobre a crueza do pensamento, fruto da desinformação e da falta de empatia, que chega ao absurdo de colocar a vida humana em patamar inferior à vida dos animais.

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    é advogado criminalista, presidente da Academia Brasileira de Direito Criminal (ABDCRIM), presidente de honra da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim), presidente do Lide Justiça, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, ex-presidente da OAB-SP e ex-conselheiro federal da OAB.

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    é advogado criminalista, mestrando em Direito Penal na USP, pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade de Coimbra (Portugal), com especialização pela Universidade de Castilla-La Mancha (ESP), integrou o Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (2018), foi conselheiro estadual da OAB/SP (2016-2018) e é coautor da obra "Advocacia 5.0".

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