Constituição e Poder

Contra a Covid, nem sempre a medida mais restritiva é proporcional e constitucional

Autor

  • Marco Aurélio Marrafon

    é advogado professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

5 de abril de 2021, 8h07

Spacca
O acertado reconhecimento de que estados e municípios podem adotar medidas restritivas no combate à pandemia, assentado no julgamento da ADI 6.341 pelo STF, não significa, necessariamente, que medidas mais restritivas devem sempre prevalecer perante outras.

Com efeito, ante a dimensão da crise de saúde pública e em face da complexidade das questões constitucionais envolvidas, tem se tornado muito comum a utilização do argumento de que deve ser aplicada a medida mais restritiva e, logo, mais intervencionista, como uma diretriz meta-normativa para as decisões judiciais em matérias relacionadas à determinação de políticas públicas e às competências dos entes federativos.

Parte-se da premissa de que as medidas mais restritivas são mais eficazes para conter o coronavírus, em uma espécie de senso comum teórico jurídico-pandêmico, no sentido waratiano, enquanto uma voz incógnita da interpretação[1] na defesa de um ponto de vista utilitarista.

Assim, se há divergência entre um ato normativo federal, estadual ou municipal por exemplo, acerca da definição de serviço essencial ou mesmo da imposição ou não de “toque de recolher”, a tendência jurisprudencial parece ser a de referendar e adotar a medida que for mais restritiva.

No entanto, é preciso uma reflexão mais aprofundada sobre o tema, não apenas porque tem sido muito difícil mensurar a efetividade de medidas mais restritivas, isto é, se elas são realmente as melhores ações na garantia do direito à saúde, mas especialmente porque o tema é sensível, com interpretações limítrofes e nem sempre constitucionalmente adequadas.

Tomando por premissa que os atos normativos editados na esfera governamental são aptos a impor restrições a direitos fundamentais (questão polêmica que não será abordada aqui), a solução em caso de eventual conflito normativo deve considerar a competência de cada unidade federativa e a os consagrados princípios constitucionais da vedação à proteção insuficiente e da proibição de excesso. Por certo, deve ser preferida a medida restritiva emanada pelo órgão competente e que não viole os mencionados princípios.

Em relação à competência dos entes da Federação, já registrei em coluna anterior que a competência para o estabelecimento das políticas públicas de combate à pandemia é de índole comum (artigo 23, II) ou mesmo concorrente (artigo 24, XII), cabendo à União Federal coordenar os demais entes subnacionais, em uma grande concertação nacional. Essa perspectiva foi sacramentada no julgamento das ADI 6.341 e 6.343 pelo STF.

Todavia, essa concertação não ocorreu no Brasil. Interesses políticos e disputas pessoais reduziram as relações federativas a triste emaranhando de decisões subjetivas, isoladas, contraditórias e predatórias, impossibilitando o devido planejamento e o combate sério à Covid 19.

Não havendo a necessária atuação política conjunta, coube/cabe ao Poder Judiciário resolver as demandas que lhe são propostas. Nesse quesito, na ausência de regra constitucional explícita, deve prevalecer o interesse predominante a ser verificado em cada caso concreto. Não me parece, por exemplo, que um município sem capacidade de suportar sozinho o custo das UTIs e do atendimento médico adequado aos seus cidadãos possa desobedecer ato normativo estadual, uma vez que não se trata de único, exclusivo ou mesmo predominante interesse local.

Superada a análise da competência, é preciso relembrar que toda intervenção jurídica é, essencialmente, uma forma de violência na vida dos cidadãos. Não à toa, desde a antiguidade clássica o direito é relacionado à ideia de pharmakon que deve ser aplicado na justa medida. O direito, tal qual um fármaco, pode se transformar em veneno quando em excesso e pode ser inútil quando não protege suficientemente o bem jurídico que visa tutelar. Eis a ambivalência bem diagnosticada por Eligio Resta:

O pharmakon era exatamente este jogo de oscilação que indicava no mesmo tempo veneno e seu antídoto, a cura e a doença, mas também a vítima e seu carrasco. O veneno tomado em dose justa se transformava em antídoto, mas ao mesmo tempo continuava a pertencer à natureza de veneno: aquilo que era a doença se tornava a cura, se invertesse um momento depois na cura que se transformava em doença. Uma não era dissociada da outra. A violência é a cura da violência. Assim, a lei deveria ameaçar e usar a violência para combater a violência; quem usava a violência era passível de uma outra violência, então o algoz se transforma em vítima[2].

Constata-se, outrossim, que a intervenção excessiva do direito pode se tornar veneno e causar mais injustiças e prejuízos à ordem constitucional, à legitimidade do Poder Judiciário e à própria sociedade, caso essas determinações violem direitos fundamentais sem que realmente tenha sido comprovada a sua necessidade.

Nesse contexto, toda intervenção judicial, por mais imperativa que seja, deve passar pelo crivo do princípio da proibição de excesso e princípio da vedação de proteção insuficiente, entendidos como uma dupla face do princípio reitor da proporcionalidade. Na didática explicação de Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer:

…o ente estatal não pode atuar de modo excessivo, intervindo na esfera de proteção de direitos fundamentais a ponto de desatender aos critérios da proporcionalidade ou mesmo a ponto de violar o núcleo essencial do direito fundamental em questão, também é certo que o Estado, por força dos deveres de proteção aos quais está vinculado, não pode omitir-se ou atuar de forma insuficiente na promoção e proteção de tal direito, pena de incorrer em violação à ordem jurídico-constitucional.[3]

Há muito nossa doutrina e jurisprudência tem reconhecido que o princípio da proporcionalidade em sua dupla dimensão é estruturante na ordem constitucional e possui força normativa vinculante na decisão judicial, cabendo o ônus argumentativo ao órgão judicante.

Nessa perspectiva, a motivação que embasa a decisão deve explicitar o cumprimento dos requisitos fundamentais na aplicação do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, preservando a consistência lógica e a coerência material na realização do direito.

Desta feita, uma vez estabelecido que o direito à saúde em caso de pandemia deve ser concretizado no maior alcance possível, cabe ao órgão judicante determinar que seja obedecida uma medida mais restritiva em detrimento de outra mais branda apenas quando se conseguir demonstrar o integral cumprimento dos seguintes requisitos: i) adequação (a medida é adequada ao fim almejado e também é compatível com a Constituição); ii) necessidade (a medida é necessária porque sem ela não se alcança os objetivos perquiridos, não havendo outra alternativa que produza menor ingerência na esfera dos direitos dos cidadãos) e iii) proporcionalidade em sentido estrito (no cotejamento entre direitos, deve-se priorizar a medida restritiva que cause menor dano à ordem constitucional, em uma relação de custo-benefício, conforme tem ensinado abalizada doutrina constitucionalista[4]).

Em outras palavras: ainda que em um primeiro olhar a medida mais restritiva possa parecer mais eficaz na concretização do direito à saúde, não é constitucionalmente correto adotar sem criticidade o argumento meta-normativo de que a medida mais restritiva é a melhor e deve ser sempre aplicada. Cada caso merece a devida análise e, não raro, uma medida mais restritiva pode não apresentar melhor resultado ao fim de garantir o direito à saúde dos cidadãos, ainda que promova contundentes limitações ao gozo dos demais direitos fundamentais pelos cidadãos.

No atual estado da arte do constitucionalismo brasileiro, são admitidas soluções materiais e substanciais na aplicação da Constituição. No entanto, elas devem observar a devida parcimônia em face do fato de que o Judiciário exerce funções contramajoritárias em uma democracia constitucional onde as questões políticas devem ser resolvidas pelos poderes políticos (Executivo e Legislativo).

Na inoperância ou inércia dos poderes políticos o protagonismo judicial deve ser exercido de maneira contida (self-restraint) e em caráter excepcional, uma vez que não cabe ao Poder Judiciário a gestão de políticas públicas. Ademais, deve observar o rigor técnico e analítico aliado a fundamentação robusta com base normativa e constitucional, evitando-se argumentos de índole político-literária, sob pena de recair em ativismo desmedido e antidemocrático que certamente solapará a própria legitimidade do Judiciário e das instituições democráticas em geral.

Ao final, conclui-se que uma medida mais restritiva apenas pode ser preferida/priorizada caso seja emanada pelo ente federativo competente e passe pelo crivo dos princípios da vedação de proteção insuficiente e da proibição de excesso, com a devida demonstração de sua efetividade na concretização do direito fundamental à saúde. Toda arbitrariedade deve ser rechaçada, pois nunca é demais lembrar que o constitucionalismo moderno não admite concentração de poder, nem soberanos, pois nenhum poder da República está acima da Constituição.

[1] WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao direito. vol. I, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris editor, 1994.

[2] RESTA, Eligio. Il diritto fraterno. Roma-Bari: Laterza, 2006, p. 100.

[3] SARLET, Ingo Wolfgang. FENSTERSEIFER, Tiago. Proibição de proteção insuficiente e direito a um meio ambiente equilibrado. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 14/08/2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-ago-14/direitos-fundamentais-proibicao-protecao-insuficiente-meio-ambiente-equilibrado. Acesso: 02/04/2021.

[4] Por todos: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003.

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    é advogado, professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre e doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estudos doutorais na Università degli studi Roma Tre. É ex-presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

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