Embargos Culturais

São Bernardo, de Graciliano Ramos: a solidão do poder e o fantasma das memórias

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

4 de abril de 2021, 8h02

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Em carta endereçada à esposa, Heloísa, Graciliano Ramos, a propósito do livro São Bernardo, perguntava, ironicamente, se em trezentos anos não seria considerado um clássico. Errou. O livro é um clássico desde que saiu pela Ariel, Rio de Janeiro. Publicado em 1934, São Bernardo, é romance datado que transcende sua época. Coloca-nos problemas atuais, que de algum modo também são anteriores à concepção da obra. É um livro atemporal.

Há interesse para o leitor contemporâneo, que vai para além do apelo estético. É um romance que dá voz a um derrotado em 1930. O personagem principal, Paulo Honório, é um carcomido. Isto é, apoiou Washington Luís, Júlio Prestes e as oligarquias que foram derrotadas por Getúlio, à frente de uma aliança entre mineiros e gaúchos. Um derrotado, cuja ruína se evidencia ao fim do livro.

O romance pode ser lido sobre vários pontos de vista. Pode-se pensar inicialmente em leitura de fundo psicanalítico, com ênfase na culpa, no arrependimento e na frustração do narrador. Pode ser narrativa de gabinete de psicanalista. Um superego implacável castigaria o narrador. Afinal, questiona, para que adianta tanta luta? Nesse contexto (psicanalítico) há um filho do narrador, raramente mencionado, cujo nome o leitor talvez não encontre, e cujo destino e presença são irrelevantes e inexistentes para a trama. Essa irrelevância e essa inexistência, no entanto, podem se revelar como chaves interpretativas para a personalidade de Paulo Honório e, consequentemente, para a veracidade ou para as possibilidades do registro e do relato.

São Bernardo pode também ser enfocado no contexto político da época. Revela a ironia de Graciliano para com os detratores do comunismo, embora, à época, ainda não militasse no partido. Há uma confusão entre seu pensamento e sua ação, da qual Graciliano não conseguiu se distanciar satisfatoriamente, e que resultou em sua prisão, tema de Memórias do cárcere, outra obra prima de sua autoria.

De igual modo, sob um ponto de vista do relato político é o depoimento de um vencido em 1930, que não acreditava que a crise econômica subsequente à crise política o alcançaria. Equivocou-se. Com a crise política veio sua decadência econômica. Pode haver aí algum substrato autobiográfico, que vincula Graciliano e sua família. Não nos esqueçamos que Graciliano era um pequeno comerciante no interior do Alagoas. Vendia tecidos.

São Bernardo também sugere uma leitura sociológica, no que se refere, principalmente, a questões de gênero, ambientadas no fim da República Velha. É um livro que descreve um mundo de homens. É o relato de um obcecado que acusa a mulher de traição, sem que o leitor possa ouvi-la. Não sabemos da versão da acusada, quanto aos fatos que o narrador lhe imputou. O leitor pode, nesse passo, associar Paulo Honório a Bentinho, Madalena a Capitu, São Bernardo a Dom Casmurro, guardando-se algumas proporções. Paulo Honório é ciumento, possessivo, para quem a esposa Madalena não poderia ter ideias ou percepções próprias. Sua insanidade construiu uma vala comum na qual acomodou tudo quando tinha por inimigo ou contrário: ateísmo, comunismo, humanismo e igualdade entre seres humanos. Paulo Honório, com base em sua trajetória, achava-se superior. No fim, reconheceu sua falibilidade. É a nossa falibilidade como seres humanos. Somos contingenciais.

São Bernardo também é um livro de acusação que escancara a corrupção da imprensa. Nesse ponto Graciliano Ramos aproxima-se de Lima Barreto, que em alguns de seus contos e romances acertou contas com jornais e revistas do Rio de Janeiro do início do século. Denuncia donos de jornal que vendiam espaços e opiniões a quem mais os pagasse. Não se tem compromisso ético de ordem alguma. A verdade é construída. A opinião não é uma opinião pública; é uma opinião publicada. Essas duas não se confundem. Compra-se essa última, que molda aquela primeira.

Paulo Honório e Madalena são os personagens centrais. Paulo Honório é o narrador. No capítulo inicial coloca alguns problemas de teoria narrativa. Pretende agrupar conhecidos, dividindo tarefas. Esforço em vão. Resolveu tocar a empreitada sozinho. O leitor, no fundo, duvida que um homem simples possa ter escrito daquela forma, com aquele nível de concisão. Não é Paulo Honório quem narra a história. O leitor sabe que está lendo Graciliano Ramos. No entanto, esse pacto é necessário. Concordamos. O autor das memórias, para que o livro tenha sentido, é Paulo Honório.

Na mencionada carta à esposa, Graciliano observou que o livro estava pronto, mas que estava redigido em português. Procedeu a uma tradução para o brasileiro, “um brasileiro encrencado, muito diferente desse que aparece nos livros da gente da cidade, um brasileiro de matuto”. Havia expressões inéditas, que o próprio Graciliano reconhecia que não as conhecia. Acreditava que São Bernardo colaboraria para a fixação de uma língua nacional. Acertou.

A narrativa é linear. Paulo Honório explica como resolveu registrar suas reminiscências. Explica o livro. Pensa no uso de pseudônimo. Reconhece que é limitado para escrever. É uma pessoa humilde. Lembra seu passado. Desconhece o pai e a mãe. No registro de nascimento, somente há referência aos padrinhos. Não sabia o dia certo do aniversário, e nem mesmo a idade, pelo menos exatamente. Lembra de uma senhora que dele cuidou, Margarida, centenária, a quem mais tarde buscou para viver próximo a ele. Cometeu um assassinato. Foi preso. Aprendeu a ler na cadeia por um tal Joaquim Sapateiro. Saindo da prisão e trabalhou em vários ofícios. Fez um empréstimo, e desse empréstimo conseguiu construir um cabedal com o qual foi ampliando as atividades.

Trabalhou na fazenda São Bernardo, para um tal Salustinano Padilha, cujo sonho era fazer do filho um bacharel. Padilha faleceu. Seu filho, Luís, começou a beber e a fazenda foi praticamente abandonada. Foi tomada pelo mato. Paulo Honório emprestou dinheiro a Luís. O filho do fazendeiro pretendia comprar um jornal; via-se como um jornalista influente. Vencendo a letra, Luís foi obrigado a entregar a fazenda para Paulo Honório. É o novo proprietário. Indispõe-se com um vizinho, o Mendonça, que havia alterado a cerca divisória. Resolveu o problema de um modo perverso.

Há críticas ao Judiciário, na figura de um magistrado, o Dr. Magalhães, que se dizia neutro, que não gostava de literatura, mas que o leitor percebe que as decisões favoreciam a Paulo Honório. O Dr. Magalhães sonhava com uma aristocracia de feição platônica, quando uma elite (da qual ela fazia parte) administraria o país. O filho do antigo dono da propriedade, Luís, começa a trabalhar para Paulo Honório, dando aulas na escola construída na fazenda, que fora uma sugestão do governador, que um dia visitou o local. Luís foi acusado de pregar ideias subversivas entre os trabalhadores da fazenda.

Paulo Honório resolve se casar. Investe em uma jovem professora, Madalena. Casam-se, ainda que ela enfaticamente avisou que não amava o proponente. Logo na primeira semana do casamento os problemas surgem e se multiplicam. Madalena protegia aos trabalhadores. Estava sempre do lado dos mais fracos. Paulo Honório se indispõe com a esposa. Brigam. Se desentendem. O conflito entre o casal toma a maior parte do livro. Paulo Honório queria convencê-la de seus pontos de vista. Uma sequência de desinteligências. Não gostava de mulheres sabidas. Achava-as intelectuais, e as reputava como horríveis. Trocavam ofensas pesadíssimas. O desfecho desse infeliz casamento surpreende o leitor.

Ao chegar aos 50 anos Paulo Honório via-se como um velho. Foram 50 anos perdidos. Gastos sem objetivo, nos quais maltratou aos outros, e também maltratou a si mesmo. Começara a vida como guia de cego, vendedor de doce, trabalhador alugado. Terminava na propriedade e na chefia de uma fazenda, porém, sem amigos, famílias, perspectivas, memórias. Ao fim da narrativa, afirmava que não cantava, e que não ria. E quando se olhava no espelho, a dureza da boca e a dureza dos olhos os descontentavam. São Bernardo é síntese da falta de sentido de uma vida construída sobre bases muito frágeis. É em excerto de uma carta do Apóstolo dos Gentios que lemos que aquele que pouco semeia, igualmente, colherá pouco, mas aquele que semeia com generosidade, da mesma forma, colherá com fartura. Há várias interpretações para a passagem. Paulo Honório pode ilustrar essa lógica e essa sabedoria. Colheu a violência que plantou ao longo da vida.

A amargura de Paulo Honorário poderia qualificar uma referência com a qual Graciliano, creio, ilustrava a efemeridade das forças políticas triunfantes de sua época e, ao mesmo tempo, a imprecisão de nossas decisões, a imprevisibilidade do resultado de nossos esforços, bem como a inconstância de nossa condição. Graciliano parece lamentar o fracasso de Paulo Honório, ao invés de enaltecer sua trajetória. Paulo Honório termina só, agoniado pela solidão do poder e atormentado pela recorrência de suas memórias, das quais não consegue se libertar. Nossas memórias fazem parte de nossas vidas.

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