Opinião

Vícios e omissões do acordo entre Vale e órgãos públicos referente a Brumadinho

Autor

  • Luciane Moessa

    é Ph.D. pós-doutora em Direito Econômico e Financeiro (USP) membro do International Center for Comparative Environmental Law e diretora executiva e técnica da Associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS).

4 de abril de 2021, 6h33

Em primeiro lugar, é importante esclarecer que o acordo firmado entre a Vale, o estado de Minas Gerais, o Ministério Público de Minas Gerais, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais em fevereiro de 2021, referente ao rompimento de três barragens de tratamento de rejeitos na mina Córrego do Feijão (em Brumadinho, Minas Gerais), que levou à morte 270 pessoas (a grande maioria empregados da própria Vale), em 25/1/2019, não abrange: 1) direitos individuais homogêneos (indenizações devidas às vítimas que sobreviveram e às famílias de vítimas fatais); 2) reparação de danos ambientais (apenas a compensação dos danos ambientais irreparáveis), que segue objeto de estudos técnicas e ações específicas visando reparar, tanto quanto tecnicamente possível, os ecossistemas da bacia do Rio Paraopeba ao estágio anterior ao desastre; 3) responsabilidades na esfera criminal.

Os valores pactuados abrangem a compensação de danos socioambientais irreparáveis e a reparação e compensação de danos socioeconômicos de natureza difusa e coletiva (excluídos, como dito, os danos causados individualmente). Eles alcançam, para essa finalidade, cerca de R$ 26,4 bilhões e não se admite a compensação das despesas emergenciais já realizadas pela Vale desde a data do rompimento das barragens. Estão abrangidos o custeio de todos os estudos técnicos necessários, como de costume, e a realização de auditorias independentes para verificar o cumprimento do acordo no que se refere às medidas socioambientais e socioeconômicas acordadas.

Entretanto, sob o prisma dos princípios que devem reger a resolução consensual de conflitos coletivos, tema de minha pesquisa de doutorado (que resultou na publicação de duas obras já esgotadas) e sobre o qual ministro treinamentos a órgãos do Poder Judiciário, Ministério Público, advocacia pública e Defensoria Pública (nas esferas federal e estadual) no Brasil há mais de dez anos (e no qual já atuei na Câmara de Conciliação da Advocacia-Geral da União), vejo que o acordo contém diversos problemas:

1) Foi violada a regra da necessidade de participação de todas as partes interessadas, o que abrange todos os órgãos públicos competentes, e todas as partes privadas afetadas pelo conflito, pois os órgãos federais competentes (principalmente a ANM, responsável pela fiscalização da segurança de barragens) não foram envolvidos — existiu evidente omissão da Agência Nacional de Mineração e parece no mínimo estranho o Ministério Público Federal não ter exigido essa participação; também não houve a participação da Defensoria Pública da União;

2) As penalidades por descumprimento do acordo são muito baixas — R$ 100 mil por dia (com limite de R$ 6 milhões ou o valor da obrigação — o que for mais baixo) — para obrigação de fazer e multa de 2% para o caso de obrigação de pagar não são penalidades que encorajem de maneira suficiente o cumprimento espontâneo de tudo que foi acordado;

3) Desvinculação quase total entre os compromissos assumidos em um dos itens do acordo, o Programa de Fortalecimento do Serviço Público (relativo ao governo estadual) e a reparação/compensação dos danos socioambientais ou socioeconômicos decorrentes da tragédia/crime socioambiental ou mesmo a prevenção de novos episódios do gênero — a única exceção diz respeito ao fortalecimento da governança de órgãos ambientais, mas isso diz respeito a menos de 5% dos mais de 60 projetos listados; os demais projetos envolvem projetos rodoviários, segurança pública saúde pública, bombeiros e defesa civil, ouvidorias, cobrança da dívida ativa, segurança hídrica em outras localidades e defesa agropecuária —, todos sem nenhuma vinculação com a região;

4) Desvinculação total entre uma das obrigações da Vale, que é o financiamento do Programa Mobilidade (também direcionado ao governo estadual), e os danos socioambientais decorrentes da tragédia/crime socioambiental ou pelo menos a prevenção de novos episódios do gênero;

5) Esses dois programas referidos, somados (cerca de 8,2% bilhões), representam cerca de 30% do valor do acordo, o que é assustador tanto pela proporção em relação ao valor total quanto pelo fato de que também houve certo grau de omissão dos órgãos ambientais estaduais na fiscalização das operações da Vale em Brumadinho e isso soa como retribuição;

6) Não há no acordo um único compromisso sequer voltado à prevenção de novas tragédias, seja no que diz respeito ao incremento da segurança das barragens em operações da Vale em Minas Gerais (ou em outros estados — a presença do MPF no acordo não parece ter tido qualquer relevância), priorizando as barragens a montante que estejam mais próximas de núcleos populacionais e de prédios administrativos, seja exigindo que a Vale adote, cada vez mais rápido, um sistema de destinação de rejeitos mais seguro, como o tratamento de rejeitos a seco (como ela já faz em algumas operações no país);

7) Falta de representação direta da comunidade na negociação — juridicamente, as comunidades foram representadas pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública, e o acordo ao menos contempla sua participação, assessorada tecnicamente, na definição de projetos de interesse da comunidade (inclusive prioridades), mas é fato que foram excluídas da definição das linhas gerais do acordo; esse procedimento viola as melhores práticas de mediação de conflitos coletivos em matéria socioambiental.

Vale esclarecer que essa noção de representação meramente formal das comunidades na negociação (assim como a exclusão de órgãos públicos federais com competência na matéria) viola também alguns enunciados do próprio Ministério Público do Estado de Minas Gerais (aprovados durante evento ao qual estive presente em junho de 2017, após ministrar um treinamento curto para os membros da instituição):

"23 Os órgãos de execução do Ministério Público devem identificar e zelar pela representação adequada dos entes públicos e privados, de modo que esses entes possam funcionar como elo entre a mesa de negociações e o grupo ou órgãos que eles representam, garantindo-se que o representante possua disponibilidade para o diálogo, perfil resolutivo e aceitação do processo autocompositivo, sob pena de frustração dos objetivos da mediação/negociação.
24 Os órgãos de execução do Ministério Público devem identificar todos os atores e órgãos públicos envolvidos no conflito, convidando-os para a mesa de negociação/mediação, de maneira a conferir ao conflito e/ou controvérsia tratamento adequado, que consiga encampar todos os vértices do problema e das questões envolvidas, desde as suas causas até as mais razoáveis soluções a serem encontradas, de modo a abranger todos os afetados pela violação de direitos fundamentais, individuais homogêneos, coletivos ou difusos.
27. Os órgãos de execução do Ministério Público, para o devido planejamento do processo autocompositivo, devem considerar sugestões e críticas dos cidadãos afetados pelo conflito e/ou controvérsia, valendo-se, para tanto, de realização de audiências públicas e/ou outras medidas de diálogos, tais como reuniões ou consultas públicas".

Por todos esses motivos, as comunidades afetadas manifestaram publicamente insatisfação com o acordo e movimentos sociais já requereram ao Supremo Tribunal Federal a suspensão dos efeitos da homologação pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, gerando insegurança jurídica e, muito mais grave, perdendo-se uma excelente oportunidade de tirar da maior tragédia (sob o prisma da perda de vidas humanas) da mineração brasileira ao menos lições necessárias para que nada parecido se repita.

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