Segunda Leitura

O julgamento de Cristo, a indiferença de Pilatos e a nossa rotina

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

4 de abril de 2021, 8h02

Spacca
Jesus Cristo exercia o seu ministério, pregando nas cidades da Galileia, Judeia e Pereia, curando os doentes que o procuravam e passando a mensagem da prática do bem e da tolerância. Sua fama crescia e o ciúme dos sacerdotes levou-o a julgamento. Aqueles que dias antes o aplaudiam, pediram a Pôncio Pilatos a sua morte, mostrando que a fama, o aplauso, a glória, são efêmeros (sic transit gloria mundi).

Pilatos era o governador romano na Judéia e, entre as suas funções, encontrava-se a de julgar. Não convencido das acusações contra Cristo, encaminhou-o a Herodes, que era governador da Palestina, uma das quatro regiões administrativas (tetrarquias) do Império Romano na região. Não vendo crime algum a ser punido, Herodes devolveu-o a Pilatos. E assim foi Cristo a julgamento.

Segundo consta, “Pilatos sabia que os líderes religiosos tinham entregado Jesus por inveja. Durante a Páscoa era costume libertar um preso e Pilatos tentou usar a ocasião para libertar Jesus (Marcos 15:9-11). Mas a multidão gritou pela morte de Jesus e pediu a libertação de um bandido chamado Barrabás”.[i]

O magistrado, então, lavou suas mãos e “Para acalmar a multidão, Pilatos lhes soltou Barrabás. Então, depois de mandar açoitar Jesus, entregou-o aos soldados romanos para que fosse crucificado” (Marcos 15:15).[ii] E assim passou à história como o exemplo da omissão quanto à escolha de posição sobre qualquer tema relevante.

A conduta de Pôncio Pilatos, condenada por todos, repete-se aos nossos olhos e à nossa volta, tantos séculos depois, ainda que possamos disto nem nos dar conta.

Injustiças passam à nossa frente diariamente, ora com conhecimento pessoal, ora através dos meios de comunicação. Grandes ou pequenas, ferindo a ética ou as leis penais, possíveis ou impossíveis de reparação, de diferentes formas ou graus de gravidade. Que fazer? Insurgir-se? Acomodar-se?

Não há resposta única nem solução definitiva. Na verdade, o tema é objeto de discussões seculares e imortalizado na literatura, através da obra de Robert Louis Stevenson, de 1886, O médico e o monstro, passada ao teatro e ao cinema.[iii] Omitir-se ou não é uma escolha de cada um e a primeira posição, por certo mais cômoda, é simbolizada pelo gesto de Pilatos ao lavar as mãos.

Vejamos o quanto estamos envolvidos em tal situação, saibamos ou não.

No sistema de Justiça Criminal, ignorar o controle que as organizações criminosas estão assumindo é grave forma de “lavar as mãos”. Para mencionar exemplos recentes, cita-se a proibição de bailes funk ordenada pelas lideranças em morros do Rio de Janeiro, a fim de combater a Covid-19[iv] e o alargamento territorial de quadrilhas neste período, com a dominação de novos bairros.[v] O Estado cede espaços diariamente, o STF não toma conhecimento desta realidade em julgamentos e o Direito Administrativo ainda não tomou ciência que estamos diante de regras novas que existem, goste-se ou não. Opta-se pelo mais cômodo.

Algumas espécies de ações judiciais têm situações indefinidas e soluções adiadas. Exemplifico. Áreas de proteção ambiental são invadidas de norte a sul do país, por pessoas economicamente carentes, muitas vezes estimuladas por terceiros. E aí surge o conflito entre o direito à moradia e a proteção ao meio ambiente, ambos previstos na Constituição. Evidentemente, as importantes referências de Luigi Ferrajoli sobre o constitucionalismo como paradigma do direito[vi] não dão solução para a realidade brasileira. Reconhece-se a usucapião? Retiram-se os invasores da área com força policial? Na prática judiciária tem-se atribuído responsabilidade ao município o que, evidentemente, nada resolve. E o conflito persiste. Um autêntico “lavar as mãos”.

Na política os ânimos estão acirrados, as posições foram se radicalizando, crendo os atores, à esquerda ou à direita, ter a solução para todos os problemas da vida nacional. Então, seja qual for a opção ideológica, é preciso ver as coisas com equilíbrio, negando-se a assumir posições radicais que retiram qualquer credibilidade ao portador.

Exemplos. À esquerda, negar a existência de grave corrupção em governos passados é “lavar as mãos” em momento impróprio. À direita, não reconhecer a má condução da administração pública federal no combate à Covid-19, com ausência de uma firme e equilibrada política de coordenação da ação dos estados é, da mesma forma, “lavar as mãos”.

Calar-se nas denúncias é também uma forma de “lavar as mãos”. As mulheres aqui estão dando bom exemplo ao denunciar médicos e supostos líderes espirituais, que se valem da fragilidade momentânea da vítima para satisfazer seu apetite sexual. No passado calavam-se, fazendo que o mal se alastrasse.

Omitir-se, de forma geral, é também “lavar as mãos”. Vivemos em tempos de cansaço, descrença e de youtubers tornando-se líderes de milhões de pessoas. A isto se soma uma generalizada falta de vontade de assumir posições. E assim, pouco a pouco, enorme número de pessoas omite-se na tomada de decisões, principalmente quando tenham que confrontar o pensamento da moda. Não há como mensurar o dano causado por este comodismo que se alastra. Mas ele pode ser rotulado como um mal da época.

Em plano menor, no dia a dia, omissões confortáveis revelam que a posição de Pilatos fez escola. Exemplos. Não pedindo nota fiscal, o comprador não faz a sua parte para que o estado tenha recursos orçamentários. Mas isto não o inibe depois de reclamar a falta de políticas públicas para isto ou aquilo. Ignorando as reuniões do condomínio, o morador colabora para que más práticas, muitas vezes sofisticadas formas de corrupção no âmbito privado, cresçam e colaborem para que a taxa mensal de cada condômino aumente. Forças menores, porém não menos relevantes, de “lavar as mãos”.

Contudo, volta-se ao início para registrar que é preciso agir sem transformar a vida em uma desgastante sucessão de batalhas perdidas. Atuar com equilíbrio, ponderação, sem entrar na provocação do atingido, muitas vezes feita em nível rasteiro. Saber que há momentos de avançar e outros de dar um passo atrás. Mas persistir, sim, sem capitular. Sem permitir que o mal cresça.

Neste dia de Páscoa, em que a morte de Jesus Cristo e a conduta de Pôncio Pilatos é relembrada sempre de forma crítica, devemos nos conscientizar de que lavar as mãos devemos sim, mas só para evitar a propagação do Corona vírus. Nas decisões de nossas vidas não, que a omissão não seja parte de nosso comportamento e que não sejamos cobrados pelas futuras gerações.

[i] Respostas Bíblicas. Disponível em: https://www.respostas.com.br/quem-foi-poncio-pilatos/. Acesso em 02/04/2021.

[ii] Disponível em: https://www.biblegateway.com/passage/?search=Marcos%2015&version=NVT. Acesso em 02/04/2021.

[iii] Wikipédia, disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/O_M%C3%A9dico_e_o_Monstro_(1941). Acesso em 02/04/2021.

[iv] VejaRIO, 31/03/2021. Disponível em: https://vejario.abril.com.br/cidade/coronavirus-trafico-proibe-baile-funk-favelas-rio/. Acesso em 02/04/2021.

[v] Globo.com, 24/07/2020. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/07/24/traficantes-usam-pandemia-para-criar-novo-complexo-de-favelas-no-rio-deixam-rastro-de-desaparecidos-e-tentam-impor-religiao.ghtml. Acesso em 02/04/2021.

[vi] FERRAJOLI, Derechos y garantias. La ley del más débil. Madri: Ed. Trotta, 2009, ps. 65-68.

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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