Opinião

A descrença no enfraquecido sentimento constitucional brasileiro

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4 de abril de 2021, 13h14

Não são peculiares ao cotidiano jurídico decisões amplamente questionáveis à luz da Constituição. Trataremos, contudo, não dos casos em que as cortes decidiram ao arrepio da Carta Magna, mas, sim, daqueles em que, apesar de terem tomado decisões acertadas, foram duramente criticados. Defende-se, aqui, que as tensões sociais denotam o enfraquecimento do sentimento constitucional brasileiro, caracterizado pela descrença dos cidadãos nas previsões constitucionais que se desviam de seus interesses políticos imediatos. Para a análise dessa dinâmica, destacam-se dois exemplos recentes altamente ilustrativos: 1) o debate no âmbito do julgamento da ADI 6.524 — o caso da reeleição das mesas do Congresso Nacional; e 2) a decisão monocrática do ministro Edson Fachin no HC 193.726 — que levou à transferência das ações contra o ex-presidente Lula de Curitiba para a Justiça federal do Distrito Federal.

A respeito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.524/DF, a discussão girava em torno da constitucionalidade das previsões constantes dos regimentos das casas do Congresso Nacional, que permitiam a recondução aos cargos da mesa diretora em legislaturas subsequentes. Por apertada maioria, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou parcialmente improcedente o pedido, admitindo a constitucionalidade do artigo 5º, §1º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. O pedido, no entanto, foi considerado procedente em relação à inconstitucionalidade da recondução na mesma legislatura, de modo que se conferiu interpretação conforme à Constituição aos artigos 5º, caput, RICD, e 59 do Regimento Interno do Senado Federal.

A Constituição da República, em seu artigo 57, §4º, lê: "Cada uma das Casas reunir-se-á (…, para a) eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente". Muito embora a ausência de termos vagos ou ambíguos deixe claro que a norma veda a referida recondução, cinco ministros da corte seguiram o entendimento do relator de que essa regra poderia ser derrotada. Essa percepção — aliada a um processo de malabarismo interpretativo que visava a assegurar a separação dos poderes — misturou o recurso ao cânone histórico, à interpretação sistemática e à mutação constitucional para reescrever o texto da Carta Magna. Com isso, objetivou-se admitir, em qualquer situação, uma única recondução de membro das mesas do Congresso, independentemente da passagem para outra legislatura.

De forma semelhante, o julgamento do HC 193.276 mostra-se igualmente capaz de ilustrar a dinâmica que se pretende analisar. No último dia 8, o ministro Fachin decidiu monocraticamente pela concessão de ofício do Habeas Corpus impetrado pela defesa do ex-presidente Lula. Assim, reconheceu-se, com base em precedentes do próprio STF (INQ 4.130 QO), a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgar o líder do PT nas ações penais que não envolvessem ilícitos diretamente relacionados à Petrobras. Em decorrência disso, anularam-se os atos decisórios praticados no âmbito das respectivas ações, devolvendo a Lula seus direitos políticos até então cassados por força da Lei da Ficha Limpa (LC 135/2010).

A Constituição Federal consagra como direito fundamental o princípio do devido processo, do qual se extrai o princípio do juiz natural. Nesse sentido, o artigo 5º, LIV, assegura que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal''. Da mesma forma, o artigo 5º, LIII, garante que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente". No caso em questão, nota-se que a 13ª Vara de Curitiba de fato não ostentava competência para julgar o caso. Isso dá-se pois a ausência de indícios materiais, no processo, que comprovem eventuais vínculos entre os atos supostamente praticados por Lula e a Petrobras exclui o caso do âmbito de incidência das regras de competência previstas nos artigos 76 e 77 do CPP.

A lógica por trás dos casos apresentados expressa a dicotomia entre as regras jurídicas e os anseios da sociedade. Percebe-se que ambos os casos poderiam ser classificados como "casos fáceis", haja vista que o direito aplicável para solucionar o conflito de interesses fornecia texto claro (artigo 57, §4º, CF e regras de competência do CPP, respectivamente), cujas normas determinadamente abarcavam os casos em tela, e oferecia uma resposta satisfatória, sem conflitos com as demais previsões do ordenamento. Colocado de outra maneira, tratavam-se de dois casos cujas soluções não deveriam, em princípio, suscitar questionamentos a respeito de sua constitucionalidade. No entanto, surgiram diversos movimentos jurídicos e políticos em defesa da falta de legitimidade dessas decisões a partir do apoio a teses que, se acolhidas pelo tribunal, resultariam em decisões contra legem.

Do ponto de vista doutrinário, o jurista alemão Konrad Hesse [1] escreve sobre a existência de duas Constituições: uma "Constituição jurídica", documento oficial sem normatividade plena — que não passa de um pedaço de papel —, e uma "Constituição real", baseada no modelo prático de aplicação e adesão às normas na realidade concreta. Nesse sentido, ambas as constituições estariam em relação de condicionamento recíproco, de modo que a normatividade da Constituição estaria limitada à sua compatibilidade com o meio em que se insere.

Hesse, com isso, afirma haver uma "vontade da Constituição", dado de consciência geral, que consistiria na força ativa capaz de concretizar a ordem da "Constituição jurídica" na "Constituição real", a despeito dos juízos de conveniência. Segundo o autor [2], a ordem seria baseada em três pilares: 1) o reconhecimento e a valorização de um ordenamento "inquebrantável", capaz de proteger o Estado de Direito, 2) a compreensão de que essa ordem precisa de recorrente legitimação e 3) a consciência de que sua eficácia prática depende de atos de vontade não apenas dos cidadãos em geral, mas, sobretudo, daqueles responsáveis pela manutenção do sistema constitucional.

À luz dos casos supracitados e da noção introduzida por Hesse, percebe-se a proliferação de opiniões que buscam desconsiderar não apenas o texto, como também o espírito da Constituição brasileira de 1988. Ao refletir um momento histórico específico, marcado pelo "ódio e nojo à ditadura" [3], nas palavras do deputado Ulysses Guimarães, a Constituinte garantiu um amplo espectro de direitos fundamentais e um rígido controle do poder político. Nada obstante às três décadas transcorridas desde então, o respeito à Carta Magna e a compreensão da importância dos valores nela contidos ainda deveriam sobrepor-se a interesses políticos momentâneos. No entanto, a realidade dista das expectativas: vive-se, no Brasil, um momento de crescente enfraquecer do sentimento constitucional, em que previsões constitucionais, mesmo quando claras e objetivas, são desconsideradas pela opinião pública e postas de lado pelas autoridades estatais.

A reação à decisão do ministro Fachin no "caso Lula" e o desfecho por pouco evitado na eleição do Congresso corroboram justamente essa proposição. No que tange ao primeiro, uma pesquisa de opinião divulgada recentemente pelo Datafolha [4] aponta que 57% dos brasileiros consideram equivocada a decisão do ministro no HC 193.276. Isso implica reconhecer o papel central das preferências políticas individuais diante da normatividade da Constituição, que é deixada de lado quando oportuno se faça. Na referida ocasião, parte substancial da sociedade entendeu que, apesar de a decisão seguir o que está expressamente disposto no texto constitucional e nas normas infraconstitucionais, ela, ainda assim, não deveria ter sido tomada.

Analogamente, no caso da eleição dos membros da mesa diretora do Congresso, circunstâncias políticas levaram ao apoio [5] a uma posição banalizante do texto constitucional — propugnada, inclusive, por cinco ministros do STF. Como visto, a impossibilidade de reeleição desfavorecia o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), pois se entendia no meio parlamentar que, sem Maia, o favorito na disputa seria o deputado Arthur Lira (PP-AL), próximo ao presidente da República. A crescente parcela da população que desejava restringir a influência de Jair Bolsonaro no Congresso, sob essa óptica, admitia, pelo menos em parte, a desconsideração dos ditames da Carta Magna em oposição à possível subserviência da Câmara aos interesses do Poder Executivo.

Diante disso, percebe-se que a recorrência de episódios nos quais textos legais claros são questionados ilustra um verdadeiro enfraquecimento do sentimento constitucional, na medida em que se tem a desconsideração sistemática de valores trazidos pela Constituição em face da priorização de interesses políticos momentâneos. As razões para o fenômeno encontram-se: 1) na falta de exposição mínima das pessoas ao Direito, para lhes permitir a valorização de suas prerrogativas civis e dos ideais do ordenamento; 2) na falta de "bons exemplos" por parte das instituições e de seus agentes — que, como visto, têm agido em inobservância à Constituição; e 3) nos crescentes movimentos políticos aderentes a ideologias radicais, que propagam, sobretudo nos últimos anos, discursos contrários à Carta Magna.

Somados, esses fatores contribuem para uma noção deturpada e conveniente da ordem jurídica, destinada não mais à permanente manutenção do Estado de Direito, mas, sim, à satisfação de interesses efêmeros. Nada obstante, por mais relevantes que sejam os problemas do agora, os benefícios de se respeitar a Constituição — que abriga o resultado jurídico da maior expressão democrática do sistema vigente — sempre os superam. Logo, haja vista o risco que o referido fenômeno denota à democracia brasileira, devem-se buscar caminhos para fortalecer o sentimento constitucional. Afinal, como vaticinou "doutor" Ulysses, no antológico discurso já aludido, "a persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia".

 


[1] HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Die normative Kraft der Verfassung. Trad.: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 3.

[2] Id., ibid., p. 7.

[3] GUIMARÃES, Ulysses. Discursos parlamentares. Brasília: Câmara dos Deputados, 1997, pp. 375-380.

[4] G1. Datafolha: 57% consideram justa a condenação de Lula, e 51% acham que Fachin agiu mal ao anular decisões da Lava Jato. Publicação: 23 mar. 2021. In: G1. Disponível em: <https://glo.bo/31n6Upj>. Acesso em 27 mar. 2021.

[5] PLIGHER, Pedro. 42% são contra a reeleição de Maia e de Alcolumbre no comando do Congresso. In: Poder 360. Disponível em: <https://bit.ly/39lyPdk>. Acesso 27 mar. 2021.

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