Suspensões do lockdown e a superlatividade do controle difuso no Brasil
3 de abril de 2021, 8h02
Com o agravamento da pandemia e o aumento no número de mortes, ganham destaque as decisões judiciais que tratam das medidas restritivas destinadas à diminuição do contágio, tendo em vista a sua repercussão para a unidade das medidas de combate à pandemia. Chama a atenção o caso ocorrido no Tribunal de Justiça de São Paulo em que foram recebidos sete recursos de uma rede de supermercados contra a negativa de reabertura das suas lojas em municípios que decretaram lockdown[2]. De quatro recursos apreciados, três tiveram o pedido negado e um deles obteve a concessão da liminar. Tudo isso no mesmo Tribunal de Justiça.
Com a ressalva da relevância do mérito dessas ações, pouco se falou a respeito de como esse fato é ilustrativo para analisar as transformações que acometeram o controle de constitucionalidade no Brasil, e de como elas impactam a ideia que se tem de segurança jurídica em nosso ordenamento.
As mudanças relativamente recentes em nosso sistema processual, especialmente no tocante ao processo constitucional, denotam uma nebulosidade nas fronteiras que demarcam a distinção entre o controle de constitucionalidade difuso (em regra incidental) e o concentrado (abstrato). Isso porque, tradicionalmente, o controle difuso tem como foco a resolução de demandas concretas que apresentam uma questão constitucional que influencia diretamente na resolução do mérito. Dessa forma, no controle difuso, a questão constitucional se apresenta como um incidente, de modo que não constitui o pedido principal da ação, que se volta à resolução do conflito subjetivo entre as partes.
Ocorre que a criação de institutos como a súmula vinculante, a repercussão geral, além das transformações advindas do Código de Processo Civil de 2015, deram uma nova roupagem para o controle difuso, possibilitando que este tivesse efeitos de abrangência maior do que os limites fixados pelo caso concreto em análise. Torna-se, portanto, o que visualizo como um controle difuso “superlativo”.
Os episódios mencionados a respeito das decisões judiciais que têm como tema a pandemia são paradigmáticos, pois compõem um diagnóstico maior, que está relacionado às faltas que acometem a dinâmica dos precedentes no direito brasileiro e de como elas impactam o controle de constitucionalidade no Brasil. Isso porque esse crescimento da importância e da repercussão do controle de constitucionalidade difuso aqui não foi acompanhado de uma teoria dos precedentes.
Lenio Streck , por meio da sua Crítica Hermenêutica do Direito, é preciso em apontar as falhas de uma teoria dos precedentes no Brasil, tais como: o problema “metodológico”, que diz respeito à cisão entre interpretação e aplicação; o equívoco de se pensar que a força vinculante do precedente está na sua razão da autoridade, e não pela qualidade das suas razões e ainda a equivocada recepção do stare decisis, no sentido de que o precedente nasce para vincular, ao invés de vincular contingencialmente; por fim, a demonstração de que o dever de coerência e de integridade não significa a incorporação irrefletida de uma “teoria dos precedentes”[3].
E no que isso se relaciona com o funcionamento do controle de constitucionalidade? Fundamentalmente numa questão cara ao Estado Democrático de Direito, que é a segurança jurídica, que deve ser compreendida à luz de um lastro principiológico que confira estabilidade e previsibilidade às relações jurídicas. Ora, na carência da possibilidade de manejo de uma ação declaratória de constitucionalidade que, de forma abstrata e, portanto, geral, confira estabilidade aos atos normativos que regulamentam o lockdown, confirmando a constitucionalidade desses atos, a profusão e a diversidade de provimentos em sede de controle difuso é não somente previsível, mas em certa medida inevitável. E é aí que ficamos diante de um grande impasse.
A pandemia acabou por evidenciar males que já assombravam o Direito brasileiro, mas que agora se mostram incontornáveis. Há um flagrante deficit de segurança jurídica, que, por sua vez, se consubstancia na ausência de coerência e integridade nas decisões judiciais. Mas existe, também e ainda, uma urgência pela melhor definição dos contornos assumidos pelo controle de constitucionalidade difuso após as últimas transformações em nosso sistema processual. Acima de tudo, é urgente a criação de um sistema unificado que regule o processo constitucional, além da já mencionada necessidade de uma teoria dos precedentes que leve em conta o problema da decisão judicial. Enquanto isso, padecemos da falta de unidade que tanto atrapalha a efetividade das medidas de combate à pandemia que já sofre pela absoluta omissão do governo federal.
[1] CANADO, Vanessa Rahal; LONGO, Larissa Luzia, Relatório de Pesquisa (parcial) Decisões Judiciais relacionadas ao COVID-19, São Paulo: Insper, 2020, p. 9.
[2] https://www.conjur.com.br/2021-mar-22/mercados-sp-decisoes-distintas-periodo-lockdown
[3] STRECK, Lenio Luiz, PRECEDENTES JUDICIAIS E HERMENÊUTICA: o sentido da vinculação no CPC/2015, Salvador: Editora Jus Podivm, 2018, p. 14.
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