Opinião

Uma leitura constitucional do novo modelo de arquivamento do inquérito policial

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2 de abril de 2021, 17h10

Com a entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019, conhecida como pacote "anticrime", pretendeu-se a alteração do princípio gestor de todo o conteúdo do processo penal. Assim, claramente, buscou-se a substituição de quaisquer resquícios do sistema inquisitório pelo acusatório (novo artigo 3-A do CPP). Os papéis do juiz e do Ministério Público foram notadamente revistos e, por consequência, todo o procedimento investigatório inicial, seja para fins de oferecimento da denúncia ou acordo de não persecução, seja para o seu arquivamento.

Aparentemente, busca-se priorizar a denominada "justiça penal negocial" e viabilizar o protagonismo processual às partes, com a exclusão de qualquer ativismo do magistrado. Essa a tônica da alteração promovida ao artigo 28 do CPP, que passa a dispor [1]:

"Artigo 28 Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei.
§1º. Se a vítima, ou seu representante legal, não concordar com o arquivamento do inquérito policial, poderá, no prazo de 30 (trinta) dias do recebimento da comunicação, submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica.
§2º. Nas ações penais relativas a crimes praticados em detrimento da União, Estados e Municípios, a revisão do arquivamento do inquérito policial poderá ser provocada pela chefia do órgão a quem couber a sua representação judicial".

Ou seja, na nova modalidade não cabe mais ao Poder Judiciário exercer qualquer espécie de controle. A solução legislativa criou a figura de uma espécie de "reexame necessário administrativo" das promoções de arquivamento do inquérito policial. Algo não só atípico como inédito. Além disso, há a via do recurso da vítima, em hipótese de impugnação da manifestação do titular da ação penal, via de regra, de iniciativa pública (artigo 129, I, CF).

A nosso ver, porém, se há possível inconstitucionalidade de algum dispositivo da nova legislação, essa parece ser a mais flagrante, com a criação de um reexame necessário em evidente violação ao princípio da presunção de inocência.

Ora, se houve investigação, tendo o agente do Parquet fundamentadamente proposto o arquivamento, a revisão de sua decisão somente deveria ocorrer com fulcro na discricionariedade técnica embasada na ausência de condições para o exercício da ação penal, e não mediante homologação de ofício ou recurso hierárquico administrativo. Melhor, e aí, sim, constitucional, seria a manutenção da sistemática anterior, que submetia o arquivamento ao crivo judicial, com a possibilidade de encaminhamento ao órgão superior do Ministério Público, sob perspectivas exclusivamente técnicas (ou seja, presença ou não das condições da ação).

Com a criação do referido reexame administrativo necessário, prolonga-se uma investigação preliminar, quiçá injusta ou até sem quaisquer bases técnicas, em nítido sofrimento ao investigado que, aparentemente, deverá aguardar inerte à revisão (homologatória) de um procedimento contra si instaurado.

Preferível a possibilidade de o magistrado local discordar do arquivamento, remetendo, aí, sim, os autos à instância superior do Ministério Público. E veja-se que isso, inclusive, seria feito pelo "juiz das garantias", segundo a nova sistemática legal (artigo 3º-B, IV, V e IX, do CPP), de modo que sequer se poderia objetar quanto a sua parcialidade para posterior julgamento do processo.

Não se duvida de que a essência da intenção seja aproximar o sistema processual penal brasileiro do sistema acusatório, impedindo o Poder Judiciário de exercer o controle da promoção de arquivamento do inquérito, vez que esse será feito, exclusivamente, pela instância de revisão ministerial. A busca por um juiz vinculado ao princípio dispositivo não pode, porém, afastar o sistema processual brasileiro da atuação por um juiz justo e democrático, que exerça sua função constitucional de garante dos direitos individuais e inafastabilidade da tutela dos cidadãos. A ideia aqui propugnada é, pois que, diante das redações dos incisos IV, V e IX do artigo 3º-B da Lei 13.964/2019 e da nova regra do artigo 28, CPP, introduzida pela mesma legislação, a melhor compreensão constitucional para os dispositivos em análise esteja na possibilidade de o juiz das garantias determinar o arquivamento do inquérito policial, ou remeter o inquérito à instância superior, seja por força de iniciativa da vítima, seja por discordar da manifestação ministerial.

Não se retira a viabilidade da agora instaurada decisão administrativa de "não acusar". Sequer se defende que a autonomia institucional do titular da ação penal deva sofrer alguma interferência institucional. Ao contrário, quando se defende que ela própria deveria prevalecer, independentemente de "reexame administrativo" hierárquico superior, o que se idealiza é, justamente, preservar a manifestação de vontade já formalizada pelo dominus litis da ação penal.

De fato, a inovação legislativa não pode, a nosso ver, afastar princípios constitucionais basilares, entre os quais a presunção de inocência e a inafastabilidade da tutela jurisdicional.

 

[1] Ressalte-se que o ministro Luiz Fux, no dia 22 de janeiro de 2020, na condição de relator das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6305, proferiu decisão liminar suspendendo “sine die a eficácia, ad referendum do Plenário, (b1) da alteração do procedimento de arquivamento do inquérito policial (Artigo 28, caput, Código de Processo Penal)” (STF – Min. Luiz Fux – ADI/MC 6288 6299 6300 6305/DF – j. em 22.01.2020). Assim, a nova sistemática ainda não está em vigor, mantendo-se a sistemática da redação revogada do art. 28 enquanto perdurar referida medida cautelar.

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