Opinião

Projeto de lei que cria 'bolsa estupro' é claramente inconstitucional

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1 de abril de 2021, 10h34

Durante a penúltima semana do mês de março, diversos movimentos (notadamente feministas) manifestaram enorme indignação em relação ao projeto de Lei Nº 5435, de 2020, de autoria do senador Eduardo Girão (Podemos/CE). Até o momento de elaboração deste conteúdo, o website do Senado Federal contava com mais de 271 mil votos contrários à proposta, em detrimento de apenas 22.583 favoráveis.

Toda essa movimentação (e aqui cabem minhas congratulações às incansáveis mulheres que, num momento tão difícil de nossa história, ainda têm forças de denunciar tais escárnios) me fez sentir a necessidade de dar àqueles alheios à área jurídica uma descrição minimamente embasada do projeto. Em linhas gerais, traduzo: é um minúsculo pedaço de queijo numa clarividente ratoeira mortífera.

Nesse ínterim, a análise realizada revelou ser a "bolsa-estupro", prevista no artigo 11 do referido projeto de lei, um problema ainda menor do que outras catástrofes que objetivam introduzir no ordenamento jurídico brasileiro. Por fim, vamos aos motivos.

A mulher será obrigada a gerar eventuais filhos de seu estuprador
O Direito brasileiro, por razões óbvias, estabelece claras distinções entre o nascituro (embrião ou feto) e a criança (já parida). O nascituro, resumidamente, possui direitos eventuais (ou expectativas) que apenas se consolidam quando do seu nascimento com vida. É o caso, por exemplo, do direito de herdar. Dado à luz, é considerado criança, passa a ter personalidade jurídica e proteção ainda maior do ordenamento jurídico.

Essa diferença entre a proteção jurídica dada ao nascituro e à criança é vista, também, no Código Penal. Note-se que a mulher que causa aborto em si mesma pode ser condenada à pena de detenção de um a três anos (artigo 124 do Código Penal). Por outro lado, aquele que dolosamente assassina uma criança pode ser condenado à reclusão, de seis a vinte anos, além de ter a pena aumentada em um terço em razão da idade da vítima (artigo 121, §4º, do Código Penal). Há, assim, uma escolha legislativa de proteger com maior contundência a vida da pessoa física, assim considerada enquanto nascida com vida.

Pois bem, passemos à análise do Projeto de Lei Nº 5435/2020. De antemão, é importante destacar que, logo em seu artigo 1º, o texto mistura os conceitos de criança e nascituro, a fim de inaugurar o instituto da criança por nascer: "Artigo 1° — Esta lei dispõe sobre a proteção e direitos da Gestante, pondo a salvo a vida da criança por nascer desde a concepção".

Esse aparente erro técnico objetiva, na verdade, dar ao nascituro o mesmo tratamento jurídico concedido à criança. Ocorre que o Direito pátrio, em que pese de fato proteja o feto de forma bastante contundente (a exemplo de o aborto ser considerado crime no Brasil), sopesa os direitos do nascituro, em razão de seu efetivo desenvolvimento gestacional estar condicionado a um processo bastante íntimo e peculiar que prescinde a participação de uma mulher, à qual não pode ser negada a dignidade.

Portanto, a lei em vigor permite o aborto quando a gestação é resultante de estupro, a fim de não obrigar a gestante a prosseguir num tipo de gravidez que, em regra, seria um martírio psicológico. O Estado não pode impedir de forma arbitrária a execução do plano de vida de uma mulher com a obrigatoriedade de realizar uma gestação à qual não deu causa e que, pelo contrário, foi vítima. Note-se que grande parte das vítimas de abuso sexual são adolescentes, as quais teriam seu desenvolvimento pessoal interrompido com uma gravidez forçada e que as impediria de esquecer um momento imensuravelmente traumático.

Nesse diapasão, temos que, se o conceito de criança for estendido ao nascituro, a ressalva legal já mencionada (possibilidade de abortar em caso de gravidez decorrente de estupro) será tacitamente revogada. Essa intenção se torna ainda mais evidente quando observado o conteúdo do §3° do artigo 4º do Projeto de Lei Nº 5435/2020: "Artigo 4º — O SUS promoverá políticas de apoio e acompanhamento da gestante vítima de violência para auxílio quanto à salvaguarda da vida e saúde da Gestante e da criança por nascer".

Ora, mas é óbvio que o SUS deve proteger a vida da gestante vítima de abuso sexual. Tendo isso em vista fica claro que, no dispositivo, apenas se utiliza a gestante como disfarce para as reais intenções do legislador. A finalidade é garantir que a gravidez decorrente do estupro não seja interrompida. Essa proposta de alteração, de acordo com o parecer do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), viola os direitos fundamentais femininos: "Desse modo, meninas e mulheres em gestação passam a ser consideradas apenas um meio para o desenvolvimento do feto, violando o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana".

Nessa perspectiva, estamos diante de uma clara situação em que o legislador se depara com dois bens jurídicos excludentes. Nesse caso, se opta por proteger demasiadamente o feto, viola direitos das mulheres. Aqui, parece que o deputado Eduardo Girão, ao invés de escolher a ponderação, conforme já faz a legislação vigente, preferiu ignorar completamente a condição de pessoa humana da gestante vítima de abuso sexual, para desumanizá-la e rebaixà-la à mera espécie de chocadeira.

O estuprador terá os mesmos direitos de um pai legítimo
Essa é, talvez, a parte mais estapafúrdia do projeto aqui discutido. Isso porque, se aprovado o Projeto de Lei Nº 5435/2020, um hipotético homem que obrigar, de forma violenta (estupro), uma mulher a com ele gerar um filho poderá ter com ela vínculo longínquo, em razão de o estuprador adquirir a condição de genitor da criança nascida por decorrência da relação não consensual. O criminoso seria responsabilizado pelo crime, mas poderia gozar das prerrogativas cíveis concedidas aos pais como, por exemplo, o direito de conviver com a criança e exercer o poder familiar ao participar ativamente da tomada de decisões importantes na vida desta. Nesse sentido, nascida a criança e, caso a mulher não decidisse oferecê-la para adoção (na forma do artigo 5º da proposta), ela teria de exercer o poder familiar em conjunto com seu algoz. Por exemplo, caso a mãe planejasse mudar a criança de escola ou enviá-la ao exterior, teria de discutir a questão com o estuprador, que poderia impedi-la de praticar tais atos, no pleno exercício de seu poder familiar.

Nesse sentido, cabe uma leitura minuciosa do artigo 11º do Projeto de Lei Nº 5435/2020:

"Artigo 11º — Na hipótese de a gestante vítima de estupro não dispor de meios econômicos suficientes para cuidar da vida, da saúde, do desenvolvimento e da educação da criança, o Estado arcará com os custos respectivos de um salário-mínimo até a idade de 18 anos da criança, ou até que se efetive o pagamento da pensão alimentícia por parte do genitor ou outro responsável financeiro especificado em Lei, ou venha a ser adotada a criança, se assim for a vontade da gestante, conforme regulamento".

Note-se que, para além da teratológica possibilidade de o Estado pagar uma compensação pecuniária por ter tolhido da mulher estuprada sua dignidade, devemos atentar para outros pontos ainda mais graves. É que, logo no início da redação, fica evidente que o legislador está se referindo à mulher que engravidou em decorrência de violência sexual. No entanto, em seguida, faz a ressalva de que o Estado não mais pagará a pensão mencionada quando o fizer o "genitor". Ora, mas no caso de ser a gestante vítima de estupro, o pseudogenitor só pode ser o próprio estuprador. Nesse diapasão, temos que tal alteração, ao tratar o estuprador como genitor, revogaria tacitamente as normas do Código Civil e do Código Penal que estabelecem a impossibilidade de o estuprador exercer o poder familiar.

Dessa maneira, o Projeto de Lei Nº 5435/2020, em que pese se proponha a ser um Estatuto da Gestante, não inova em quaisquer direitos em benefício desta. Pelo contrário, cria garantias em favor dos indivíduos que tenham cometido crimes de violência sexual. Por essa razão, deveria se chamar Estatuto do Estuprador. Ao que parece, faltou coragem para o senador Eduardo Girão nomear adequadamente sua proposta.

Por sorte, nossa Constituição Federal de 1988 sobrepõe às leis ordinárias emanadas pelo Congresso Nacional diversos direitos fundamentais básicos. Ou seja, há uma hierarquia entre as leis. Nesse sentido, perceba que em nobre parte de nosso texto constitucional, mais especificamente no inciso III do artigo 1º da Magna Carta, está situado o direito humano à dignidade. Mais adiante, no artigo 5º, incisos I, III e X do referido diploma legal, há outras garantias importantíssimas, como a igualdade entre homens e mulheres, a impossibilidade de se submeter alguém a tratamento degradante e a inviolabilidade da honra e da intimidade. Assim, a mera condição fisiológica masculina, que não contempla a hipótese de gestação, já traz como encargo desproporcional para as mulheres a gravidez forçada. Além disso, é extremamente evidente que obrigar uma mulher a ter um filho do homem que a estuprou viola sua intimidade, visto ser a gestação um processo extremamente particular da mulher. Também é afetada, nessa hipótese, a honra, se considerado que a imagem feminina sairia extremamente arranhada com o inevitável conhecimento público de que deu à luz uma criança cujo pai é, no melhor dos casos, um anônimo. Destarte, é evidente que todas as situações narradas configurariam situação extremamente degradante para a gestante vítima de estupro. Por essa razão, é latente a inconstitucionalidade da proposta.

Em suma, o Projeto de Lei Nº 5435/2020 se propõe, em teoria, a trazer benefícios à mulher gestante. No entanto, conforme a análise apresentada, caso o projeto fosse incorporado ao Direito brasileiro, diversas poderiam ser as violações de direitos fundamentais feitas às mulheres. Por tal motivo, o projeto é claramente inconstitucional e o Congresso Nacional está apto a realizar o controle de constitucionalidade preventivo, de modo a rechaçar o quanto antes eventual possibilidade de aprovação dos dispositivos sugeridos no projeto. Caso não o faça e a proposta se torne lei, o mais provável é que o Supremo Tribunal Federal a declare inválida, visto que, invariavelmente, seria provocado a realizar o controle abstrato de constitucionalidade a partir de uma ação direta de inconstitucionalidade. Por isso, embora não haja — por ora — motivo para desespero, certamente se fazem cabíveis e necessárias todas as manifestações de repúdio ao projeto. É que, quando se trata da defesa dos direitos de grupos minoritários, não basta vencer as batalhas travadas no campo jurídico. É preciso, também, de vitórias no campo cultural, a fim de que seja possível vislumbrar um fim para a guerra contra a discriminação.

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