Opinião

Banco de identificação genética pode acabar com a identificação criminal?

Autor

  • Antonio Baptista Gonçalves

    é advogado pós-doutor em Desafios en la postmodernidad para los Derechos Humanos y los Derechos Fundamentales pela Universidade de Santiago de Compostela pós-doutor em Ciência da Religião pela PUC/SP pós-doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de La Matanza.

1 de abril de 2021, 6h34

Em decorrência da pandemia da Covid-19, intensificou-se o debate acerca do uso da tecnologia como ferramenta de otimização do cotidiano jurídico. Com o isolamento social, algumas medidas extraordinárias foram adotadas a partir da Resolução nº 62 do Conselho Nacional de Justiça. Entre as iniciativas, tivemos a proibição de visitação nos presídios, inclusive dos advogados, realização de audiências virtuais e, atualmente, cogita-se até a inserção do Tribunal do Júri nessa modalidade.

Com uma diferença de menos de dois meses para o início da pandemia no Brasil, a lei "anticrime", isto é, a Lei nº 13.964, de 24/12/2019, ingressou no ordenamento jurídico brasileiro em 23/1/2020, quando entrou em vigor e passou a produzir efeitos. Entre as inovações trazidas pela nova lei, destacaremos o banco genético, apesar de não ter sido inserido na realidade jurídica brasileira pela lei "anticrime".

O banco genético é recente no ordenamento jurídico brasileiro, pois foi introduzido com a Lei nº 12.654/12, apesar da identificação criminal já ser realidade alguns anos antes. Foi regulamentado pelo Decreto nº 7.950, de 12/3/2013, e o 9.817, de 3/6/2019. Assim, sobre o banco genético, a lei "anticrime" não criou o dispositivo, apenas ampliou seu espectro, pois ele já era previsto na Lei de Execução Penal, além da Lei nº 12.037, de 1º/10/2009, que dispõe sobre a identificação criminal.

Com a chegada da lei "anticrime", as possibilidades se aumentaram com a adição do artigo 7°-C, §4° na Lei nº 12.037, de 1/10/2009:

"§4º. Poderão ser colhidos os registros biométricos, de impressões digitais, de íris, face e voz dos presos provisórios ou definitivos quando não tiverem sido extraídos por ocasião da identificação criminal" (grifo do autor).

Agora todos os presos podem fazer parte do acervo disponível para as investigações. A diferença é que não poderá ser coletado o DNA, pois continuam restritos aos crimes hediondos e aos dolosos contra a vida, porém, as impressões digitais, íris, face e voz são estendidas a todos os presos.

A lei "anticrime" também inclui nessa coleta os presos provisórios, isto é, aqueles que ainda não foram julgados, o que significa que mesmo se absolvido suas impressões ficarão no banco de dados a menos que solicite judicialmente sua exclusão. Refletimos.

Não há dúvidas da necessidade de aprimoramento dos mecanismos investigativos criminais, inclusive a modernização dos mesmos. Desde que se respeite a Constituição Federal e os pactos internacionais aos quais o Brasil é signatário. A principal crítica a ser feita é não fazer do banco genético um banco de dados genéticos dos condenados para base informativa de suspeição criminal permanente.

O pacote "anticrime" objetivava a identificação criminal de toda a população prisional brasileira, de maneira compulsória. Sobre o tema se manifestou o então coordenador da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Guilherme Jacques: "Era um incremento de talvez 200%. Era um grande incremento. Hoje são cadastrados cerca de 30% dos condenados. Com o pacote anticrime, 99% dos condenados seriam cadastrados com a redação que o Ministério da Justiça propôs. A Câmara não concordou com esse aumento".

O objetivo precípuo de um banco genético não é ter um catálogo de criminosos, mas, sim, eliminar a possibilidade de condenar erroneamente pessoas por base de reconhecimento facial. Entre junho de 2019 e março de 2020, segundo relatório da Coordenadoria de Defesa Criminal e da Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Rio Janeiro, o Estado teve 58 casos de reconhecimento fotográfico com acusações injustas, coincidentemente ou não, 70% dos acusados de forma errônea eram negros, as vítimas acabaram processadas e até presas sem qualquer envolvimento com o crime que lhe fora imputado, para alguns, o erro custou três anos de liberdade.

O uso do banco genético tem como condão imiscuir tais falhas. Além disso, a presença de material genético pode elucidar crimes sexuais, porém não se pode usar esse arcabouço criminológico com desvios de finalidade. Nem tudo são benefícios claros, ainda mais da forma como a legislação sobre o tema foi edificada.

A presença de um banco genético não assegura, com precisão, quem pode ser culpado ou inocente, visto que, em uma cena de crime, pode conter vestígios de uma pessoa que consta no sistema, porém, que não teve relação com o crime, senão somente com o local, por ter lá estado. Afinal, a cena de um delito é composta por material genético de diversos indivíduos que transitaram pelo local, portanto, além dos traços e vestígios da vítima temos igualmente de terceiros, como a ciência poderá, corretamente, separar os suspeitos? Será que haverá prevalência na investigação daqueles que já estão no banco genético? Em uma presunção antecipada de culpa? Se for assim, como fica a presunção de inocência? Será que o material encontrado pertencerá, efetivamente, a um potencial culpado, ou apenas a uma pessoa que estava no lugar errado na hora errada?

Foi o caso de Barbara Querino, que fora fotografada por policiais no mesmo dia que seu irmão e primo foram presos, mesmo sem ter qualquer participação nos delitos. Poucos meses depois, sua imagem, indevidamente, circulou nas redes sociais a associando a uma organização criminosa, o que resultou em sua prisão injusta por um ano e oito meses, mesmo mostrando provas de que não fora autora ou tivera participação em qualquer delito. Apenas um entre tantos exemplos correntes na realidade brasileira. Se o banco genético pudesse ter contribuído, provavelmente, a perda da liberdade não teria sido consumada. Seu uso depende muito do interesse do judiciário.

O banco genético pode ser utilizado como uma ferramenta válida, desde que a Justiça o adote em sua realidade processual, pois atualmente não é o que se percebe, analisemos alguns números: no primeiro semestre de 2020, o banco genético foi utilizado em 825 investigações. Segundo o VIII Relatório da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos, de junho de 2018, estavam disponíveis dez mil amostras de DNA de suspeitos de crimes no Brasil. Já haviam sido coletados, desde 2014, 6,8 mil vestígios, mas apenas dez decisões judiciais foram calcadas nesse aparato.

O banco genético pode representar a elucidação de crimes e condenações injustas baseadas na identificação criminal, porém, claro está que a Justiça brasileira ainda não o integrou adequadamente. Será culpa da pandemia da Covid-19 ou da falta de familiaridade com suas benesses? O Estado se preocupou em instituir uma medida, todavia, falta a segunda parte: a propaganda, a cientificação de que tal mecanismo pode ser válido e contribuir positivamente para o ordenamento jurídico.

O Brasil possui muitos problemas em sua segurança pública, faltam investimentos, há déficit de material humano, de equipamento, de manutenção, de adoção de tecnologia e de condições mínimas a fim de otimizar e procedimentalizar as investigações policiais. No entanto, se bem aplicado o banco genético poderá trazer frutos e evitar condenações injustas.

O banco genético pode evitar que pessoas percam sua tão preciosa liberdade de maneira equivocada. Que se use com parcimônia e se saiba armazenar adequadamente as informações genéticas a fim de contribuir para as investigações. A identificação criminal não mais pode ser a principal ferramenta de condenação de uma pessoa, pois, como vimos, a margem de erro é deveras elevada. 

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