Opinião

Banalização do impeachment de ministros do STF: backlash à brasileira

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1 de abril de 2021, 15h07

O chamado efeito backlash é de difícil tradução, muito embora provoque diversos debates no âmbito do direito constitucional. Na visão de Cass Sunstein, seria uma intensa desaprovação pública de determinada decisão da Suprema Corte, que se expressaria, em termos práticos, por uma atuação política e social cujo objetivo é retirar sua força normativa [1].

No contexto norte-americano, pôde-se vislumbrar o efeito backlash após as decisões da Suprema Corte sobre igualdade racial, no caso Brown v. Board of Education, e depois no precedente Roe v. Wade, no qual foi determinada a descriminalização do aborto.

Por sua vez, no Brasil, o melhor exemplo parece ser a ADIn 4983, em que se definiu a proibição da vaquejada. Logo após a decisão, foi apresentado o PL 24/2016 para a regulamentação da vaquejada. Referido projeto foi aprovado e convertido na Lei 13.364/2016 que passou a reconhecer a vaquejada como manifestação da cultura nacional e patrimônio cultural imaterial.

Nada obstante a dimensão costumeiramente negativa do efeito backlash, trata-se, em boa medida, de um dissenso legítimo entre poderes, o qual pode ser balizado pelas regras democráticas. Na maior parte dos casos, leva a uma resposta imediata do legislador contra determinada decisão da jurisdição constitucional.

Ou seja, dentro das regras do jogo, o backlash pode ser tratado pelas instituições e evoluir para um diálogo entre Judiciário e Legislativo [2]. Obviamente, o diálogo também poderia ser desenvolvido em conjunto com a sociedade civil, além de outros setores que possam fornecer conhecimentos metajurídicos para a solução de casos complexos submetidos à jurisdição constitucional [3]. Assim, abrem-se as portas para que o Judiciário possa aprender com esses importes externos, nos casos em que a discordância é legítima e a atuação dos demais players (sejam institucionais, como os demais poderes, ou a sociedade civil organizada) é em busca de um aprimoramento da decisão originalmente combatida.

Contudo, há de se analisar, em cada caso, se a discordância materializada no backlash é única e exclusivamente política, no sentido estrito de que "determinada decisão judicial deve ser derrubada, tão somente porque favorece determinado inimigo".

Ora, a ideia de um controle "repressivo" de constitucionalidade traz consigo não só a noção de uma racionalidade jurídica que se esgota em si mesma, como a imposição vertical de decisões que podem, muitas vezes, provocar o indesejável efeito backlash.

Contudo, em uma democracia constitucional funcional, o ruído institucional gerado por essa atuação do Poder Judiciário poderia evoluir para um modelo dialógico, que ressalta a importância da decisão de inconstitucionalidade como construção coletiva e oportunidade de aprimoramento do ordenamento jurídico, tendo por norte, em especial, a crescente complexidade regulatória e tecnológica que tem desafiado a jurisdição constitucional na pós-modernidade.

Ocorre que, no Brasil dos últimos anos, temos criado um modelo degenerado de backlash. O adjetivo é proposital: tais reações têm por finalidade específica o uso das instituições oficiais para implementar ideias autocráticas [4].

Qual seria o backlash degenerado à brasileira? Parlamentares insatisfeitos com a decisão do STF tentam emparedá-lo com a apresentação de numerosos pedidos de impeachment. Não raras vezes, tais pedidos são "corroborados" pelo notório saber de alguns digital influencers e outros setores da mídia que examinam a atuação do STF com a seriedade e o rigor analítico de quem assiste a uma partida de futebol no botequim.

É claro que juízes cometem erros em algumas de suas decisões. Inclusive o STF. Daí a importância de uma doutrina vigilante, apta a praticar aquilo que Lenio Streck sempre defendeu, sob a alcunha de constrangimento epistemológico.

Essa espetacularização dos pedidos de impeachment dos ministros do STF, além de consistir numa tentativa de se comunicar com as bolhas eleitorais mais extremistas, representa um verdadeiro ataque a um dos pilares do rule of law: a independência judicial.

Tais pleitos, movidos tão somente em razão da forma de julgar dos ministros do STF, não passam de uma tentativa de pressionar, politicamente, a jurisdição constitucional brasileira. Esse agir não amadurece, tampouco melhora nossas instituições. Ao contrário: cria, cada vez mais, cenários de inibição para ministros e juízes decidirem temas sensíveis, como Habeas Corpus, por exemplo.

Na realidade, a espetacularização e banalização dos pedidos de impeachment de ministros do STF contribui, a médio prazo, para degeneração do próprio espaço da política deliberativa do Congresso, dado que expressa uma visão que privilegia o discurso outsider e antiestablishment.

Aliás, é digno de nota que uma das características mais marcantes dos extremismos contemporâneos, notadamente os do segundo pós-guerra, é a de que eles não são abertamente antidemocráticos; antes, defendem uma espécie de "democracia-nos-seus-próprios-termos" e colocam o outro na condição de fator de risco dessa "verdadeira democracia" [5]. Nessa senda, o STF aparece como uma espécie de bode expiatório da democracia outsider.

O risco se dá porque o discurso outsider e antiestablishment é populista e, consequentemente, binário e simplório. Munido dessas supostas qualidades, não consegue solucionar os problemas reais. Nesse exato momento, o político populista, para fugir do dever de accountability, da prestação de contas que evidenciaria sua incapacidade governamental e legislativa, passa a atacar as demais instituições, afirmando que os problemas não foram solucionados porque a estrutura pública existente e os demais poderes não o deixam agir livremente.

Essa autofagia institucional não é nova. De há muito o Ministério Público se tornou uma espécie de censor dos Poderes Executivo e Legislativo. Em verdade, com as informações mais recentes que vieram à tona, descobrimos que o MP nutria uma espécie de obsessão pelo Supremo Tribunal Federal.

Já criticamos, em diversas ocasiões, decisões do Judiciário que, em nosso entender, afetaram de forma inconstitucional o Legislativo, como a imposição de medidas cautelares pelo STF ou o afastamento judicial de determinado deputado da presidência da Câmara [6]. Nessa toada, a banalização do impeachment em relação a ministros do STF é somente mais um passo em direção ao colapso institucional motivado pelo simplismo.

O que o Legislativo precisa compreender é que, ao agir atacando o Judiciário, enquanto instituição, por meio da degeneração e banalização dos pedidos de impeachment, o Legislativo cria o cenário ideal para que, amanhã, o Executivo atue da mesma forma contra ele próprio. Aqui se inicia o circuito da degeneração democrática, no qual o populista outsider busca jogar a população contra o Legislativo e o Judiciário.

Em uma democracia constitucional, quanto mais débeis as demais instituições, mais forte tem de ser o Poder Judiciário, para que garanta o pacto constitucional democrático e proteja as regras do jogo que os outros órgãos do Estado falham em assegurar.

Defender a jurisdição constitucional é proteger uma instituição crucial para a democracia. Daí ser fundamental a despoluição semântica. A banalização de pedidos de impeachment que temos vivenciado não é uma reação legítima do Legislativo em face de erros da jurisdição constitucional. Trata-se, na realidade, de ataque institucional feito por alguns parlamentares contra a jurisdição constitucional, apenas porque discordam de teor dos seus votos, e não porque apontam crimes na conduta dos ministros do STF.

Esse backlash, degenerado à brasileira, parte, infelizmente, de uma visão totalitária professada por alguns de nossos parlamentares, para quem o real debate constitucional é escondido e, em seu lugar, ascende uma visão que inclui um misto de vilanização do iluminismo e da modernidade, com um extremo anti-intelectualismo [7].

Ocorre que o constitucionalismo, apesar de ser, em essência, contramajoritário, é também, por excelência, antitotalitário. Ele buscar construir as regras do jogo e proteger as instituições necessárias para impedir que o indivíduo seja subjugado pelo Estado, partido ou ideologia. Por isso, qualquer tentativa abusiva de subjugar nossa instância contramajoritária, nossa jurisdição constitucional, deve ser prontamente repelida.

É nosso dever não deixarmos que o simples prevaleça sobre o complexo. As democracias contemporâneas, marcadas pela complexidade, reclamam soluções estruturadas, que contornem as saídas binárias de sempre. Afinal de contas, como bem nos alertava Cioran, se não encontrarmos, no edifício do pensamento, nenhuma categoria para pousarmos a cabeça, teremos de nos contentar com o travesseiro do caos [8].

 


[1] SUNSTEIN, Cass. R. A Constitution of many minds:  why the founding document doesn’t mean what it meant before?, Princeton-Oxford: Princeton University Press, 2009, p. 153.

[2] Sobre tema, conferir a bela obra de VICTOR, Sérgio Antônio Ferreira. Diálogo institucional e controle de constitucionalidade: o debate entre o STF e o Congresso Nacional, São Paulo: Saraiva, 2015.

[3] Trata-se do que chamamos de paradigma da proceduralização, ver: ABBOUD, Georges. Direito Constitucional Pós-moderno, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 503 et seq.

[4] Para mais detalhes acerca dos motivos pelos quais empregamos o substantivo "degeneração", conferir: ABBOUD, Georges. Direito Constitucional Pós-moderno, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 39 et seq.

[5] Analisando os radicalismos de direita no segundo pós-guerra, disse Theodor W. Adorno, "(d)esaparece o que é abertamente antidemocrático. Pelo contrário: evocam sempre a verdadeira democracia e acusam os outros de antidemocráticos." ADORNO, Theodor W. Aspectos do novo radicalismo de direita: conferência, trad. Felipe Catalani, 1 ed., São Paulo: Editora UNESP, 2020, p. 64.

[6] C.f. por todas ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro, 4 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, n. 10.1.1.5.3., p. 1399-1404.

[7] Acerca das características fundamentais de uma visão totalitária, conferir: ECO, Umberto. Fascismo Eterno, São Paulo: Record, 2020, p. 39-40

[8] CIORAN, Emil. Silogismos da amargura. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 25.

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