MEMÓRIA VILIPENDIADA

União indenizará por vídeo de acidente que liga motorista morto a consumo de álcool

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30 de setembro de 2020, 7h48

Campanha educativa que, mesmo sem citar nome, vincula a imagem de um motorista ao consumo de álcool no desfecho de acidente fatal de trânsito, sem provas nem autorização, viola direitos de personalidade. Logo, os pais do motorista falecido são parte legítima para pleitear a condenação do estado pelo abalo moral.

Assim, a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região manteve íntegra a sentença que condenou a União a retirar um vídeo educativo publicado na página do Facebook da Polícia Rodoviária Federal de Santa Catarina (PRF-SC) e a pagar dano moral aos pais do motorista que morreu no acidente retratado na peça de divulgação.

Nos dois graus de jurisdição, ficou patente que a demonstração do dano sofrido não exige efetiva comprovação. Basta, para sua configuração, a consciência de que determinado comportamento atinge a moralidade do indivíduo — como ocorreu no caso dos autos.

"A responsabilidade civil do Estado por ato comissivo é objetiva e independe de culpa, bastando tão só a prova do ato lesivo e injusto imputável à Administração Pública – art. 37, § 6°, da CF. Demonstrado o nexo causal entre o fato lesivo imputável à ré e o dano sofrido pelos autores, exsurge o dever daquela de indenizar, mediante compensação pecuniária compatível", resumiu a ementa do acórdão.

Acidente fatal na rodovia
Na madrugada de 20 de fevereiro de 2016, na altura do km 207 da BR-101, em São José (SC), Gustavo Luiz Silvério, 27 anos, dirigindo uma camionete Saveiro (VW), morreu ao bater na traseira de um caminhão que transportava lixo. A Polícia Rodoviária Federal de Santa Catarina, que atendeu a ocorrência, encontrou uma garrafa de bebida alcoólica dentro do veículo.

Em 9 de março, a PRF-SC publicou na sua página do Facebook um vídeo capturado pela câmara localizada na traseira do caminhão, mostrando a cena do acidente. No vídeo de 39 segundos, intitulado "Álcool e direção: mistura mortal", a corporação informava que o veículo estava em alta velocidade na hora da colisão, causando a morte do motorista no local. E mostrou uma garrafa vazia, sugerindo o consumo de álcool.

Tutela de urgência
Os pais do motorista falecido foram à Justiça barrar a divulgação do vídeo. Alegaram que a divulgação foi feita sem a sua autorização, o que agrava o sofrimento pela perda e viola o direito à imagem do filho falecido. Afinal, não houve confirmação de que ele estivesse realmente embriagado na hora do acidente fatal.

À 3ª Vara Federal de Florianópolis, requereram a concessão da tutela provisória de urgência antecipada para compelir a União a retirar do Facebook o referido vídeo. E, como pedido principal, pleitearam o pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 100 mil, por uso indevido e não autorizado da imagem do acidente.

Em contestação, a União sustentou a improcedência dos pedidos, pois o vídeo foi excluído tão logo a PRF-SC tomou conhecimento a respeito dos fatos. Com base na consultoria jurídica do Ministério da Justiça, argumentou que o vídeo não traz imagens, fotografias, nomes ou data que relacionem o fato ao filho dos requerentes/autores. Ou seja, a publicação teve o intuito, apenas, de alertar a sociedade sobre os efeitos de ingerir bebidas alcoólicas e dirigir, visando o bem comum.

O juiz federal substituto Gustavo Dias de Barcellos, em despacho proferido no dia 18 de março de 2016, deferiu o pedido liminar para a retirada do vídeo da rede social, já que permitia identificar aquele acidente como o que causou o óbito do filho dos autores.

Sentença procedente
Em 3 de julho de 2017, ao analisar o mérito, o juiz federal Diógenes Tarcísio Marcelino Teixeira julgou parcialmente procedente a demanda, reafirmando a condenação da União em retirar o vídeo do Facebook. O juízo também condenou a União a pagar danos morais ao casal, mas num patamar bem mais modesto — R$ 20 mil.

Nas razões de decidir, Teixeira citou os fundamentos utilizados por Barcellos ao conceder a antecipação de tutela. Para este, ainda que o vídeo não faça referência expressa ao filho dos autores, na seção de comentários há várias menções ao nome dele — o que permite identificá-lo como o condutor do veículo.

"Desse modo, ainda que o intuito da Polícia Rodoviária Federal fosse o de alertar a sociedade para os riscos de conduzir veículo sob a influência de álcool, o vídeo foi editado de uma maneira tal que a sua publicação, ao proporcionar um repositório público de críticas e juízos de valor dos usuários do Facebook, desbordou da finalidade pedagógica e passou a violar a honra e a imagem do filho dos autores", entendeu Barcellos, citando o artigo 5º, inciso X, da Constituição.

A retirada do vídeo, segundo o julgador, atende ao princípio da proporcionalidade em sentido estrito, segundo o qual deve haver uma proporção adequada entre os meios utilizados e os fins almejados. "Isso porque se, por um lado, a remoção do vídeo causará prejuízo praticamente inexistente à União e à sociedade, por outro, evitará o prolongamento de grave dano à honra e à imagem do filho dos autores." Em síntese, no confronto com o direito à informação e publicidade, a Justiça deve dar primazia ao direito de imagem.

Responsabilidade estatal
Quanto à obrigação de indenizar em danos morais, o juiz Marcelino Teixeira citou o parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição: "As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa."

Em relação à proteção dos direitos de personalidade, o juiz citou o inciso X do artigo 5º da Constituição, que considera invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelos danos decorrentes de sua violação. E, no quesito de legitimidade dos autores, o artigo 20 do Código Civil. O dispositivo diz que "(…) a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais". O caput deste parágrafo confere aos ascendentes do falecido legitimidade para pleitear a proteção à sua honra, boa fama e respeitabilidade na hipótese de publicação ou exposição não autorizada de sua imagem.

"Assim, é inquestionável que os autores detêm legitimidade para requerer a proteção do direito à imagem de seu falecido filho, Gustavo Luiz Silvério, e obter a indenização pelos danos morais que suportaram, já que o evento causou abalo não somente ao sentimento dos pais, como à memória do filho morto", anotou na sentença.

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5005307-67.2016.4.04.7200/SC

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