Opinião

Quanto pior, melhor: less eligibility e ciclo punitivo predatório

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30 de setembro de 2020, 18h57

Como instrumento de imposição de sofrimento através da privação de liberdade, a prisão até hoje conta com teorias que objetivam legitimar sua aplicação para enfrentamento do crime e ressocialização de detentos, apesar das mazelas que lhe são inerentes. A prevenção do delito é o argumento utilizado para justificar esse modelo de punição, bem como o discurso simbólico que tenta explicar o cárcere em seu aspecto material: o less eligibility.

Desenvolvido no Reino Unido a partir do Poor Law Amendment Act, de 1834, o princípio visa à subordinação do apenado às condições mais desumanas possíveis, buscando desestimular a criminalidade. A lógica é: "Para que o castigo produza o efeito que se deve esperar dele, basta que o mal que causa ultrapasse o bem que o culpado retirou do crime" (BRISSOT, 1781 apud FOUCAULT, 2014, p. 93). A doutrina inspira a realidade da política criminal brasileira em seu trajeto histórico. 

A prisão é um meio de confinamento que desde o nascimento visa a concentrar forças produtivas, afinal, as casas de correção do século XVI surgem simultaneamente ao modo de produção capitalista, iniciando o sistema penitenciário moderno. Isso significa que tal qual diversas instituições sociais, a função do cárcere é servir à pauta econômica que o momento histórico exige. Para tanto, precisa adestrar perfis já etiquetados por seu poder disciplinador valendo-se de um discurso pretensamente salvacionista.

Operando de forma seletiva, o sistema carcerário fabrica "inimigos" convenientes que são estrategicamente depositados nos presídios. O objetivo é manter as estruturas coletivas de poder, por isso os dissidentes, invisíveis sociais, afrodescendentes, entre outros vulneráveis, são politicamente escolhidos. Portanto, a atuação do poder prisional não pressupõe necessariamente uma prática delituosa. O crime é um mero detalhe que justifica sua aplicação, visto que o propósito das instituições segregadoras é obter o controle do proletariado através da prática punitiva burguesa.

Intramuros, esses "inimigos" estão imersos numa estrutura neutralizadora. O less eligibility instrumentaliza a máxima "quanto pior, melhor" e reflete-se nas celas superlotadas, com condições sanitárias iatrogênicas. Para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais encarcerados, a situação é mais crítica: torturas específicas da sua condição de gênero, além da violência emocional, física e sexual são frequentes dentro das prisões masculinas (MODELLI, 2020).

A falibilidade  do sistema prisional também se evidencia no regime disciplinar diferenciado, uma vez que as celas coletivas nas penitenciárias brasileiras são tão humilhantes que o cumprimento de parte da pena no RDD recebeu dos presos o epíteto de "parque dos monstros" e detém o sofisma de ser uma premiação (REDAÇÃO NSC, 2013). A função da less eligibility é promover a reprodução de desvios secundários, afinal os egressos descarregam os excessos sofridos cometendo novos delitos, o que os torna aptos a exercerem o papel de reincidentes por vocação. É dessa forma que o sistema retroalimenta o poder punitivo através do crime.

A pandemia da Covid-19 escancarou a incongruência da pena privativa de liberdade no Brasil: O Departamento Penitenciário Nacional (Depen) sugeriu ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) que analisasse a possibilidade de permitir a utilização de contêineres utilizados na construção civil para separar presos em flagrantes de outros detentos com sintomas da Covid-19. É aberrante que o Estado ofereça soluções desse caráter, afinal no ano de 2009 o próprio CNPCP insurgiu-se contra o aprisionamento prolongado de pessoas detidas em contêineres, alcunhados de "micro-ondas" no Estado do Espírito Santo. Manter custodiados num ambiente dissociativo pretendendo sua ressocialização é irracional.

Essas condições carcerárias marcadamente degradantes são executadas com adesão subjetiva da população. Sim, pois é preciso que o sistema prisional, de forma oportunista, fomente a violência generalizada para se oferecer como resposta em seguida. Assim, os eleitores outorgam poderes a candidatos que bradam sensacionalismo penal e pseudossoluções atécnicas para institucionalizar a barbárie. Afinal, é o uso político midiático da criminalidade que alavanca o eleitorado e impede o reconhecimento do preso como sujeito de direitos. Trata-se do entretenimento punitivo massivo (GENELHÚ, 2015, p. 328).

O detento é uma mercadoria no ciclo "prisão-liberdade-reincidência". A piora de suas condições intramuros favorece as parcerias público privadas e atrai investimentos para a indústria carcerária, cujo lucro exige essa deterioração. Eis outra função do princípio britânico: fazer com que as penitenciárias privadas representem um sucesso quando comparadas com as prisões sucateadas propositalmente pelo Estado. A privatização maquia a estrutura prisional, apesar de reforçar o mesmo script estigmatizante, pois segrega sempre o mesmo elenco. O 'disciplinamento dulcificante' (BAUDRILLARD, 1968 apud GENELHÚ, 2015, p. 167) dos custodiados segue ocorrendo inalteradamente.

O Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (2015) recomendou a não privatização dos serviços relacionados à custódia de pessoas, bem como a rejeição de qualquer proposta legislativa que permita regulamentar a terceirização da execução da pena (Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, 2015). Infrutífera recomendação, pois, uma vez enraizado o interesse econômico na gestão carcerária, a satisfação de direitos e garantias fundamentais cede lugar ao mercantilismo. Os corpos aprisionados são apenas peças que movimentam a engrenagem neoliberal punitiva predatória.

O less eligibility e a ociosidade promovida pela prisão são matéria prima para a anulação dos detentos, o que os tornam mais úteis ao capital e ao controle social. Por isso os reclusos continuarão se perpetuando nas carceragens, mesmo sendo liberados diariamente. Eternizar as disparidades sistêmicas de poder e promover a supremacia de uma minoria (representativa do capitalismo como no século XVI e XVII) sobre muitos é o único objetivo desse circuito arbitrário cujos protagonistas são o sofrimento estéril e a exclusão.

Referências bibliográficas
COMITÊ NACIONAL DE PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA. Recomendação nº 2, de 09 de dezembro de 2015. Privatização do Sistema Carcerário Brasileiro. Distrito Federal, Disponível em: <https://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2015/12/Recomenda%C3%A7%C3%A3o-do-CNPCT-sobre-privatiza%C3%A7%C3%A3o-do-sistema-carcer%C3%A1rio_Aprovada-2.pdf>. Acesso em: 30 abr. 2020.

FOUCAULT, Michel. A Punição Generalizada. In: FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. 42. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014. Cap. 1.

GENELHÚ, Ricardo. Do discurso da Impunidade à Impunização: o sistema penal do capitalismo brasileiro e a destruição da democracia. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

GENELHÚ, Ricardo. Do discurso da Impunidade à Impunização: o sistema penal do capitalismo brasileiro e a destruição da democracia. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

MODELLI, Laís. Estupro e tortura: relatório inédito do governo federal aponta o drama de trans encarceradas em presídios masculinos. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/02/06/estupro-e-tortura-relatorio-inedito-do-governo-federal-aponta-o-drama-de-trans-encarceradas-em-presidios-masculinos.ghtml>. Acesso em: 21 fev. 2020.

REDAÇÃO NSC. Confira a realidade da Penitenciária São Pedro de Alcântara, de onde partem os ataques a SC. 2013. Disponível em: <https://www.nsctotal.com.br/noticias/confira-a-realidade-da-penitenciaria-sao-pedro-de-alcantara-de-onde-partem-os-ataques-a-sc>. Acesso em: 09 mai. 2020.

MARTINS, Marco Antônio. Depen propõe que presos contaminados ou de grupos de risco sejam isolados em contêineres por causa do coronavírus Disponível em: <https:// https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/28/depen-propoe-que-presos-sejam-isolados-em-conteineres-por-causa-do-coronavirus.ghtml>. Acesso em: 15 mai. 2020.

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