Direto do Carf

Sobre a possibilidade de retificação de declarações de compensação no PAF

Autor

  • Thais de Laurentiis

    é advogada sócia do escritório Rivitti e Dias Advogados doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP (com período na Sciences Po/Paris) especialista pelo Ibet graduada pela Faculdade de Direito da USP árbitra no CBMA professora do mestrado profissional do IBDT professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão universitária e ex-conselheira titular do Carf na 1ª e da 3ª Seção de Julgamento.

30 de setembro de 2020, 8h01

Buscaremos aqui tratar de assunto que perpassa as três Seções de Julgamento do Carf, uma vez que constitui verdadeiro tema de processo administrativo fiscal: o erro no preenchimento da declaração de compensação (ou DCOMP, nos dias atuais) por parte dos contribuintes e a possibilidade de corrigi-lo no curso do processo administrativo.

Spacca
Tal objeto aparece no contencioso fiscal federal por meio de defesas dos contribuintes alegando terem incorrido em equívoco escusável (vezes tratado como "erro material", outras como "erro de fato" ou ainda "inexatidão material") sobre alguma informação constante da declaração de compensação (como o período de apuração do crédito; origem do crédito; data do Darf; valor do Darf, entre outros), o qual culminou em uma injusta apreciação da autoridade fiscal a respeito do seu direito ao proferir o despacho decisório.

No âmbito das Delegacias Regionais de Julgamento (DRJs), observamos dois tipos de decisão a esse respeito.

O primeiro deles é que eventual correção da declaração de compensação teria rito e tempo próprio, de modo que eventuais equívocos nas informações acerca da origem do crédito justificam a não homologação da compensação declarada. De outro lado, o segundo entendimento apresentado pelas DRJs é o não conhecimento da manifestação de inconformidade apresentada pelo sujeito passivo, sob o argumento de que compete à Delegacia da Receita Federal do Brasil da circunscrição fiscal do contribuinte analisar e decidir sobre pedido de cancelamento ou retificação de DCOMP, não tendo as instâncias de julgamento do processo administrativo fiscal (PAF) competência para tanto.

Diante dessas decisões, o Carf é instado a se manifestar, tendo em vista o que dispõem o artigo 74, §3º, incisos V e VI, da Lei nº 9.430/96 e os atos normativos[1] expedidos pela Receita Federal ao trazer critérios para retificação dos pedidos gerados a partir do Programa PER/DCOMP, quais sejam: tratar-se de inexatidões materiais no preenchimento do documento, cujo pedido de retificação ocorra perante a Receita Federal enquanto ainda pendente a decisão administrativa de análise do pedido.

Na 1ª Seção de Julgamento do Carf a temática tem sido consolidada em favor dos contribuintes [2].

Destacamos inicialmente o Acórdão nº 1301-003.599, de 22/11/2018, no qual se avaliou um dos erros cometidos pelos contribuintes que mais carregam o assunto à 1ª Seção do Carf: o PER/DCOMP indicava tratar-se de pagamento indevido de estimativa, mas, na realidade, o crédito se referia a saldo negativo de IRPJ/CSLL. Nesse julgamento, baseado no Parecer Normativo Cosit nº 8, de 2014 e tendo em vista o princípio da busca da verdade material, decidiu-se por afastar o óbice de retificação do PER/DCOMP apresentado pelas autoridades fiscais [3].

Esse também foi o entendimento da 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) nos Acórdãos 9101-003.150 e 9101-002.903, de 5/10/2017 e 8/6/2017, respectivamente. Neste último, foi apresentado o histórico da problemática do direito creditório como pagamento indevido de estimativa mensal ou como saldo negativo, gerador da Súmula Carf nº 84, colocando-o como um dos argumentos para superar a eventual confusão dos contribuintes no momento da transmissão da DCOMP relativa a créditos desse jaez.

Recentemente, no Acórdão nº 9101-005.100, de 2 de setembro deste ano, a 1ª Turma da CSRF abonou que o racional decisório dos citados julgamentos deve ir para além dos casos de pagamento estimativa x saldo negativo de IRPJ/CSLL, julgando que também na hipótese daqueles autos, em que o contribuinte equivocou-se ao descrever o indébito proveniente de saldo negativo apurado em período anterior, deveria ser convalidada a possibilidade de retificação de declaração.

Foi confirmada, assim, a antiga jurisprudência da 1ª Seção do Conselho, como podemos ver no Acórdão nº 101-96.829, julgado em 27/6/2008, que diante de uma situação em que a contabilidade do contribuinte corroborava o erro (o crédito a compensar referia-se ao ano base 2001, e não 1998/1999 como constara por declaração de compensação), foi dado provimento ao recurso voluntário, reconhecendo a possibilidade de retificação da declaração no bojo do processo administrativo [4].

Já no âmbito da 2ª e, especialmente, da 3ª Seções de Julgamento, verificamos que o tema gera maiores controvérsias.

Existe uma primeira corrente de entendimento, bastante presente nas turmas extraordinárias, no sentido de não tomar conhecimento dos recursos dos contribuintes a respeito do tema, pois entendem a retificação da DCOMP tem rito próprio, alheio ao contencioso administrativo regido pelo Decreto 70.235/72 (e.g. Acórdão 3001-000.942, de 18/9/2019).

Igualmente negando o pleito dos contribuintes, porém sob outro argumento, aparece uma segunda corrente de julgados afirmando que a retificação das declarações de compensação equivaleria à inovação do pedido feito inicialmente pelo sujeito passivo, o que não se pode admitir, pois o pedido inicial da declaração delimita a lide a ser apreciada no processo administrativo (no Acórdão 2402-006.887, de 17/1/2019, faz-se inclusive uma analogia do PER/DCOMP com a petição inicial, frisando a função delimitadora desta na controvérsia levada ao Poder Judiciário). Assim, essa linha de entendimento aplica diretamente a restrição prevista nos atos normativos da Receita Federal, no sentido de só permitir a retificação de declaração "antes de decisão administrativa", sendo essa decisão percebida como o despacho decisório da autoridade fiscal [5], e não como a decisão dos órgãos judicantes do PAF (e.g. Acórdãos 3401-005.803, de 19/03/2019 e 3302-008.229, de 19/02/2020).

Constatamos, aqui, um descompasso em relação à jurisprudência da 1ª Seção, a qual coloca que as limitações das INs editadas pela Receita Federal não possuem amparo legal (e.g. Acórdão nº 140200.704, de 5/8/2011), de modo que a limitação temporal à retificação deve ser superada quando comprovada a inexatidão material em que se baseia a defesa do contribuinte (e.g. Acórdão nº 9101-003.150, de 05/10/2017). Fundamento desse raciocínio tem sido aquele apontado pelo Acórdão 9101-002.203, de 2/2/2016, nos seguintes dizeres:

"Um erro de preenchimento de DCOMP, que motivou uma primeira negativa por parte da administração tributária (DRF de origem), não pode gerar um impasse insuperável, uma situação em que a contribuinte não pode apresentar nova declaração, não pode retificar a declaração original, e nem pode ter o erro saneado no processo. Tal interpretação estabelece uma preclusão que inviabiliza a busca da verdade material pelo processo administrativo fiscal".

Embora em menor escala, podemos também encontrar acórdãos proferidos pela 2ª e pela 3ª Seções do Carf que, diferentemente dos anteriormente citados, avalizam a possibilidade de retificação e erros materiais constantes nas declarações de compensação no decorrer do processo administrativo.

Citamos como exemplo o Acórdão 3402-007.534, de 19/8/2020, no qual o erro descrito pelo contribuinte dizia respeito à data de arrecadação do Darf elencado como fundador do crédito. O voto condutor, nesse caso — partindo da ideia de que processo administrativo, pautado no Decreto 70.235/72, tem como fim assegurar que o crédito tributário seja cobrado de forma precisa e de acordo com a lei —, apresenta uma analogia da retificação do PER/DCOMP com a retificação de DCTF, uma vez que ambas configuram confissão de dívida, de modo que o equívoco do contribuinte em quaisquer delas, desde que cabalmente demonstrado pela documentação fiscal pertinente, deve ser avaliada pelos julgadores do PAF.

No Acórdão 2101-002.187, de 14/10/2013, foi lembrado que os processos analisados, iniciam-se eletronicamente, de forma que "se é defensável sob o ponto de vista da Administração Tributária o método sumário e eletrônico de reconhecimento do direito creditório constante do PER/DCOMP com base tão somente das inconsistências apresentadas nas declarações entregues pelo sujeito passivo, tal limitação não pode e não deve ser observada na análise manual que deve ser realizada sempre que houver a existência de erro de fato como é o caso aqui apreciado".

Esse julgamento foi corroborado pela 2ª Turma da CSRF no Acórdão 9202-005.356, de 25/4/2017, que manteve o entendimento sobre a possibilidade de retificação, destacando outrossim a necessidade de envio do processo de volta à autoridade fiscal de origem, para que ela analisasse os demais requisitos do crédito tributário [6].

Por fim, cumpre realçar a existência de precedente da 3ª Seção que, embora parta do pressuposto da possibilidade da retificação da declaração mesmo depois de proferido o despacho decisório, na análise da situação fática (equívoco sobre o Darf aprestado, buscando-se alterar o Darf relativo ao crédito pleiteado na DCOMP) descrita pelo contribuinte, entendeu que não se tratou de inexatidão material ( "mero erro de preenchimento” em seus dizeres), mas sim de informação de crédito diverso do apreciado pela autoridade fiscal. Por essa razão, negou provimento ao recurso voluntário (Acórdão 3402-007.531, de 19/08/2020).

Podemos perceber que o tema tem sido solucionado de formas diversas no Carf, especialmente na comparação entre os de precedentes da 1ª Seção em relação àqueles das 2ª e 3ª Seções. Enquanto essas, na maioria dos seus julgados, ficam adstritas às restrições impostas pelos atos normativos infralegais sobre o tema; aquela normalmente ultrapassa tais limitações, assumindo a possibilidade de retificação da declaração de compensação no decorrer do PAF. Pela análise dos precedentes igualmente fica evidenciada a importância da precisa situação fática em julgamento, vale dizer, de qual foi o erro cometido pelo contribuinte em sua declaração de compensação.

Parece interessante, assim, a apresentação de trabalhos abordando o tema de forma global, permitindo uma futura uniformização da jurisprudência administrativa, conforme preceitua o artigo 926 do CPC. O presente artigo se presta a ser o pontapé inicial nesse sentido, convidando aqueles que estudam a jurisprudência do Carf a colaborarem com maiores estudos sobre a matéria, tão importante nessa faixa nebulosa onde é necessário, de um lado, garantir o interesse público pela não apresentação de compensações indevidas, mas, de outro, não permitir que formalidades descompassadas com a lei firam o direito ao crédito que detêm os contribuintes.

Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.

 


[1] Inicialmente pela Instrução Normativa SRF nº 460/2004 nos artigos 55 a 60; disciplina essa que foi sucedida pela IN 600/2005 nos artigos 56 a 61; depois posta na IN 900/2008 nos artigos 76 a 81; em seguida trazida pela IN nº 1.300/2012 nos artigos 87 a 92; e por fim na IN nº 1.717/2017 nos artigos 106 a 116.

[2] Em sentido contrário, ver o Acórdão nº 1003000.100, de 7/8/2018.

[3] Tal entendimento vem sendo sistematicamente adotado pelo Carf (vide Acórdãos nº 1401-004.180, 1003-001.357, 1301-004.266).

[4] Interessante notar o argumento do relator, no sentido de que vivemos num contexto em que cada vez mais é atribuída ao contribuinte a função de apresentar informações em declarações ao Fisco, as quais passam por modificação constante para ajustes que facilitem o controle informatizado da Receita Federal, sendo certo que tal situação favorece a ocorrência de eventuais erros.

[5] Esse entendimento veio expressamente posto no artigo 115 da IN nº 1.717/2017.

[6] Nesse mesmo sentido, sobre a necessidade de o processo ser devolvido à origem, ver Acórdão nº 1402-00.578.

Autores

  • é conselheira titular e vice-presidente da 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção do Carf, árbitra no Centro Brasileiro de Mediação a Arbitragem (CBMA), doutoranda e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), este cursado conjuntamente no Institut d`Études Politiques de Paris (SciencesPo), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributário (Ibet) e professora de Direito Tributário e Aduaneiro em cursos de pós-graduação e extensão universitária.

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