Opinião

Tribunais de Contas caminham para redesenho de seu papel constitucional

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30 de setembro de 2020, 6h34

Foi objeto de pouca atenção na comunidade jurídica a decisão do STF no MS 25.888

Compreensível. A aludida decisão julgou em definitivo um pedido de liminar que foi deferido no distante ano de 2006 e ao final julgou prejudicado o mandado de segurança por perda de objeto, vez que com a entrada em vigor da Lei 13.303/2016, não se discute mais a possibilidade de as empresas estatais expedirem regulamentos para disciplinar seus procedimentos de licitações e contratações.

Mas há algo em tal decisão que salta aos olhos do bom observador: a sua esmerada construção por parte do ministro Gilmar Mendes é uma clara intenção de traçar uma diretriz a ser seguida pela corte.

Na fundamentação do seu voto no julgamento do MS 25.888, relata que a liminar de 2006 suspendeu os efeitos do Acórdão 39/2006 proferido pelo Tribunal de Contas da União no processo TC 008.210/2004-7.

E o que constava desta decisão do TCU?

No Acórdão 39/2006, o TCU determinou, tendo por esteio a Súmula 347 do Supremo Tribunal Federal, que a Petrobras observasse os artigos 22 e 23 da Lei 8.666/93 em seus certames licitatórios, e não as regras previstas em seu procedimento licitatório próprio, no caso o Decreto 2.745/1998.

E o que diz a Súmula 347 do STF? Ela enuncia que "o Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público".

Editada em 1963, aludida súmula já foi objeto de apreciação por parte do STF à luz da CF/88, tendo a corte se manifestado no MS 35.410 MC no sentido de é inconcebível a hipótese que o TCU órgão sem qualquer função jurisdicional, permanecesse a exercer controle difuso de constitucionalidade nos julgamentos de seus processos, sob o pretenso argumento de que lhe seja permitido em virtude do conteúdo da Súmula 347 do STF, editada em 1963, cuja subsistência ficou comprometida pela promulgação da Constituição Federal de 1988.

Voltando ao MS 25.888 destacamos duas premissas bem claras contidas no voto:

A primeira é a de uma "renovada aplicabilidade da Súmula 347 do STF" (usando a expressão do ministro relator), de modo a caber aos Tribunais de Contas a possibilidade de afastar a aplicação de normas manifestamente inconstitucionais apenas e tão somente quando já houver entendimento pacificado do STF acerca da inconstitucionalidade chapada, notória ou evidente, da solução normativa eventualmente em exame.

Já a segunda, que não tem propriamente relação com a questão do exercício do controle de constitucionalidade por parte dos Tribunais de Contas, é a de que "quando o STF, no papel do intérprete constitucional, procede a determinada leitura da norma constitucional, não podem os demais órgãos públicos lato sensu, no exercício de atividade administrativa típica ou atípica, simplesmente desprezá-la e contorná-la com artimanhas jurídicas. Porque se ao Supremo Tribunal Federal compete, precipuamente, a guarda da Constituição Federal, é certo que a sua interpretação do texto constitucional deve ser acompanhada pelos demais órgãos públicos, em decorrência do efeito definitivo de sua decisão".

Ora, qual o sentido de tal trecho? O observador atento às últimas reações do TCU em face de recentes decisões do STF enxerga claramente um alerta àquela corte de contas: o STF está ciente e trata como "artimanha" (expressão deveras induvidosa) a postura do TCU de ignorar as decisões do Supremo acerca da incidência da prescrição da pretensão punitiva daquela corte de contas.

Como o STF está julgando processos em que se pode redundar na limitação de alguns poderes cautelares do TCU como a indisponibilidade de bens e a sustação de licitações e contratos (tudo no âmbito dos chamados poderes implícitos do TCU), o STF no MS 25.888 não deixou claro apenas que o controle de constitucionalidade a ser exercido pelos tribunais de contas deve ser realizado em bases mais modestas que a que aparentemente é autorizada pela Súmula 347, o Supremo também deixou claro que espera ver os Tribunais de Contas (e principal e especialmente o TCU) cumprirem as suas decisões, sejam elas proferidas em sede de controle difuso ou concentrado.

Aparentemente, caminhamos para um redesenho do papel constitucional que tem sido exercido pelos Tribunais de Contas ao longo dos anos. E esta "ressignificância" certamente não vai afetar apenas a forma das cortes de contas exercerem o controle de constitucionalidade.

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