Opinião

E agora, quem vai prestar o serviço de saneamento básico no Brasil?

Autor

  • Juliano Heinen

    é procurador do estado do Rio Grande do Sul e doutor em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

29 de setembro de 2020, 17h12

Um dos grandes debates envolvendo o saneamento básico no Brasil ficou atrelado à sua titularidade — uma discussão, diga-se de passagem, feita há décadas. Ela poderia ser evitada se a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 tivesse expressa e claramente atribuído esta competência a um ente da federação, assim como o fez em relação a outros serviços públicos (v.g. serviço local de gás — artigo 25, §2º; energia elétrica — artigo 21, inciso XII, alínea "b" etc.). No seu silêncio, muitas foram as compreensões sobre o tema.

Não pretendemos aqui abordar o debate sob o prisma constitucional, até porque, há algum tempo atrás, o assunto muito bem explorado pelo professor Ricardo Marcondes Martins (RDA nº 249 de 2008). Queremos entregar ao leitor nossas impressões em relação à Lei nº 11.445/2007 e as alterações feitas mais recentemente pela Lei nº 14.026/2020, denominada novo Marco Legal do Saneamento Básico.

O texto atual não negligenciou o assunto, e fez uma série de especificações sobre a titularidade do mencionado serviço público. Desse modo, o debate poderia ser encerrado, caso a redação dos dispositivos legais que regularam o tema não carecesse de toda sorte de interpretações, notadamente o artigo 3º, inciso VI, alínea "a"; o artigo 8º; e o artigo 8º-A; e o veto ao §4º do artigo 3º. E se essas regras reclamam uma análise jurídica detida, é porque ou são incongruentes, ou são omissos, ou são abstratos etc.

Passemos ao texto, para dele retirar uma norma. O artigo 8º define a titularidade do serviço público de saneamento básico a partir do interesse:

a) Se estivermos diante de um interesse local, o serviço público de saneamento básico pertence ao município ou ao Distrito Federal (inciso I);

b) Se o interesse é comum, o serviço pode ser de titularidade do Estado, em conjunto com os municípios que "compartilham efetivamente instalações operacionais". Mas, para isso, deverão ser "integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, instituídas por lei complementar estadual". Essa segunda hipótese segue a lógica do artigo 25, §3º, da CF/88.

Mas o serviço público de saneamento básico ainda pode ser prestado de modo regionalizado, a fim de se garantir a economia de escala ou de escopo, com o intento de melhorar a eficiência da prestação. Nesse caso, a execução regionalizada deve pressupor uma prestação integrada de um ou mais componentes dos serviços públicos de saneamento básico em determinada região cujo território abranja mais de um município (artigo 3º, inciso VI). E, para tanto, podem ser criadas três estruturas:

1) Estado cria região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião por lei complementar, necessariamente entre municípios limítrofes;

2) Estado cria unidade regional de saneamento básico por lei ordinária, sem a necessidade de se ter municípios limítrofes;

3) União cria bloco de referência por ato regulatório, sem a necessidade de se ter municípios limítrofes.

Então, o leitor já deve ter percebido que, se de um lado temos dois casos de titularidade — de acordo com o interesse —, de outro, temos quatro formas de prestação: uma individual, por município, e três formas por bloco regional de municípios em que participa o Estado. O questionamento naturalmente coligado a esta perspectiva consiste em saber se, com a opção pela regionalização, o município atingido por ela seria obrigado a aderir.

Antes da vigência da Lei nº 14.026/2020, que instituiu um novo marco legal no saneamento básico no Brasil, o STF, na ADI nº 1.842-RJ [1], declarou que a adesão dos municípios atingidos pela estrutura interfederativa era obrigatória. Não havia, aqui, um juízo de oportunidade e conveniência, porque, criada a referida unidade, automaticamente a titularidade da prestação do serviço público de saneamento deixava de pertencer aos municípios e migrava à estrutura criada.

Ao que nos parece, essa não foi a opção do legislador, apesar de uma inconsistência. Vimos que o artigo 3º, inciso VI, da Lei nº 11.445/2007 dispõe que a prestação regionalizada pode ser feita de três modos: a) região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião; b) unidade regional de saneamento básico; e c) bloco de referência. O §4º do mesmo artigo 3º dizia que ficava "facultado aos municípios, detentores da titularidade do serviço, a participação nas prestações regionalizadas de que trata o inciso VI do caput deste artigo". Contudo, esse dispositivo foi vetado. Então, se ficássemos só com essa regra, a única voluntariedade existente quanto à adesão estaria resumida na Região Integrada de Desenvolvimento (Ride), conforme dispõe o §5º (não vetado). Aqui, a prestação regionalizada do serviço de saneamento básico estará condicionada à anuência dos municípios que a integram.

Conforme se percebe, a intenção do veto era justamente determinar a compulsoriedade da adesão, tendo por base dois fundamentos: 1) o artigo 25, §3º, da CF/88; e o 2) disposto na mencionada ADI nº 1.842-RJ, STF. Contudo, se essa era a intenção do presidente da República, ele "esqueceu" de vetar o artigo 8º-A: "É facultativa a adesão dos titulares dos serviços públicos de saneamento de interesse local às estruturas das formas de prestação regionalizada". Logo, o dispositivo vigente ressuscita a facultatividade.

Em outros termos, apesar do veto ao §4º do artigo 3º da Lei nº 11.445/2007, o que vale é a norma vigente, ou seja, o artigo 8º-A. Logo, entendemos que, de regra, a adesão dos municípios e o Distrito Federal é facultativa.

Mas há mais um componente a ser pensado aqui: quando os municípios "compartilham efetivamente instalações operacionais" e são "integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, instituídas por lei complementar estadual, no caso de interesse comum" (inciso II do artigo 8º), segue-se a lógica do veto ao mencionado §4º do artigo 3º e da ADI nº 1.842-RJ, ou seja, a adesão será compulsória, ao nosso juízo.

Então, pela interpretação sistemática da Lei nº 14.026/2020, há duas perspectivas quanto à adesão dos municípios e à titularidade:

a) A adesão será compulsória, quando a prestação regional se der por meio de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões. Mas desde que — e aqui é o ponto nodal — os municípios compartilhem efetivamente instalações operacionais (operating facilities);

b) Nos demais casos, a adesão será facultativa, ou seja, não será obrigatória a aderência nos blocos criados pela ANA ou pelo Estado, ou caso não exista o compartilhamento. Basta existir, aqui, prestação integrada de um ou mais componentes dos serviços públicos de saneamento básico.

De se ver, então, que o desafio está em diferenciar duas expressões: 1) "compartilhamento efetivo de instalações operacionais" (adesão compulsória); e 2) "prestação integrada de um ou mais componentes dos serviços públicos de saneamento básico" (adesão é facultativa). Mas especificamente, o que significa, na prática, "prestação integrada" e "compartilhamento efetivo"?

É certo que toda e qualquer prestação regionalizada deverá estar integrada. A grosso modo e de maneira pragmática, é dizer que os dutos, canalizações etc. deverão ser compatíveis entre si e estarem integrados em um sistema de saneamento único e sistemático. Contudo, isso não significa dizer que necessariamente os sistemas são "compartilhados", porque esse signo não se confunde com a palavra "compatíveis".

Exemplifico. Imagine que o esgotamento sanitário de dois ou mais municípios seja conduzido por dutos comuns, e/ou tratados em uma mesma estação, por exemplo. Com esse compartilhamento, a adesão seria compulsória, ou seja, a titularidade do serviço migraria automaticamente ao bloco ou unidade regional formado.

A criação de unidades ou blocos para prestação regionalizada é essencial para se conseguir atingir os níveis de universalização determinados na Lei nº 11.445/2007. A adesão, como visto, será obrigatória se houver compartilhamento de estruturas. Logo, quando formada a estrutura regional, deverá ser repensada a prestação, a ser visualizada como um todo. E isso pressupõe definir se haverá subsídio cruzado entre municípios (localidade mais rentável sustentaria a prestação ao município deficitário), ou entre serviços (exemplo: tratamento de água, mais lucrativa, custearia o tratamento de esgoto etc.); prestação compartilhada; redefinição de estruturas e procedimentos etc.

Para o final, lamentavelmente, deixamos mais perguntas do que respostas ou conclusões — quiçá um convite ao leitor refletir conosco a respeito destes enormes desafios.

1) Criada a unidade ou bloco regional de prestação do saneamento básico, como ficam os contratos em curso, feitos pelos municípios com terceiro, na medida em que a titularidade do município passaria à referida instituição regional?;

2) Criando a unidade ou bloco regional, deverá ser feito aditivo ao contrato? Isso reclama lei estadual e/ou lei local, oriunda de cada município? Não haveria uma espécie de "novação ativa"?;

3) Como será calculado o reequilíbrio econômico-financeiro, na medida em que se agregam uma soma de obrigações de um lado, e recebimento de tarifas, de outro?;

4) Como se resolve a situação em que os municípios do bloco ou unidade formada tenham contratos com prestadores diferentes, e a titularidade migra às referidas instituições regionais? A unidade ou bloco manteria vários contratos com prestadores diferentes, até seu advento contratual?;

5) Temos muito que pensar à respeito, não é mesmo?


[1] STF, ADI nº 1.842-RJ, rel. p/ o ac. Ministro Gilmar Mendes, Pleno, j. 6/3/2013.

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    é procurador do Estado do Rio Grande do Sul, doutor em Direito (UFRGS), professor de Direito Administrativo e autor da obra "Curso de Direito Administrativo" (Ed. Juspodivm).

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