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Autonomias universitárias: limites financeiros e para nomeação de reitores

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

29 de setembro de 2020, 8h00

O artigo 207 da Constituição consagra que as universidades possuem autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, o que é também aplicável às instituições de pesquisa científica e tecnológica (§2º).

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O tema é vasto e comportaria uma biblioteca inteira para sua devida compreensão. No âmbito deste texto, trataremos de alguns aspectos dos limites administrativos e financeiros.

Um dos limites administrativos no âmbito das Universidades Federais consta da Lei 5.540/68, através da qual são estabelecidos os parâmetros para a escolha dos Reitores, por meio de uma sucessão de atos administrativos complexos, cumprindo diversas etapas e formalidades, e que culmina com a remessa de uma lista para apreciação pelo Presidente da República, a quem compete a nomeação dentre os nomes indicados. O art. 16, I, da Lei 5.540/68 é claro: “Reitor e o Vice-Reitor de universidade federal serão nomeados pelo Presidente da República e escolhidos entre professores dos dois níveis mais elevados da carreira ou que possuam título de doutor, cujos nomes figurem em listas tríplices organizadas pelo respectivo colegiado máximo, ou outro colegiado que o englobe, instituído especificamente para este fim, sendo a votação uninominal”.

É possível ao presidente da República indicar outra pessoa quenão esteja na referida lista, mesmo preenchendo os requisitos normativos estabelecidos? Claro que não.

Por outro lado, como deve ser feita esta lista? Destaca-se da normaque elas devem ser “organizadas pelo respectivo colegiado máximo (…) sendo a votação uninominal”. Daí surge uma distinção extremamente relevante, que diz respeito à legalidade e à legitimidade, conceitos que nem sempre estão superpostos.

Uma lista bem feita deve ser elaborada a partir de consulta à comunidade envolvida, a fim de escutar não só aos dois grupos permanentes que estão envolvidos na prestação dos serviços educacionais — docentes e servidores —, mas também os destinatários daqueles serviços — os discentes, grupo transitório nos bancos escolares. Esse é um aspecto referente à legitimidade dos que vierem a ser escolhidos.

Outro aspecto diz respeito à legalidade do processo, pois “o colegiado máximo” tem características jurídicas específicas, a depender do Estatuto de cada Universidade. Uso como exemplo um que bem conheço, o da Universidade Federal do Pará (UFPA), a maior e mais importante da Amazônia — que, a despeito de estar em destaque, anda tão maltratada. Na UFPA o órgão máximo é o Consun, conselho que reúne docentes, discentes, servidores e representantes da comunidade. Trata-se de órgão semelhante ao que possui a USP, maior e mais destacada Universidade do país, bem como todas as Instituições de Ensino Superior do Brasil. As normas eleitorais são estabelecidas por esse “órgão máximo”. Aqui é o âmbito da legalidade.

Uma boa lista tríplice deve conjugar a legalidade e a legitimidade, porém, nem sempre isso ocorre. Juridicamente, a validade é a da lista tríplice que decorrer desse processo eleitoral estabelecido pelo Conselho Universitário. Porém, de forma alguma, de jeito nenhum, o Presidente da República pode escolher fora da lista tríplice elaborada a partir do processo eleitoral estabelecido por esse Conselho. Fazê-lo se configurará uma violação da autonomia universitária, constitucionalmente prevista, coibível pelo STF.

Por outro lado, pode ocorrer aquilo que os administrativistas chamam de silêncio da Administração, ou seja, mesmo estando íntegro o processo conduzido pelo Conselho Universitário, o Presidente simplesmente silenciar a respeito, não nomeando ninguém. Aqui haverá um ato omissivo, igualmente passível de subsunção ao STF.

Teria o Presidente da República poder para indicar um interventor nessa hipótese? Entendo que não, à míngua de norma específica para isso, pois com esse intuito foi editada a MP 979 (em 09/06/20), que foi impugnada no STF pela ADI 6.458 (proposta em 10/06/20), a qual perdeu objeto em face da revogação normativa realizada pela MP 981 (de12/06/20). A singela observância das datas revela muito de todo esse processo, destacando-se que não há norma que permita a indicação de interventor pro tempore. Qual a solução para essa hipótese? Mais uma vez olhar para a autonomia universitária, isto é, olhar para as normas internas, reguladas pelo Conselho Universitário, que regem a matéria.

O presidente da República pode muito, mas não pode tudo.

Sobre a autonomia financeira já escrevi a quatro mãos com Heleno Taveira Torres com referência à tentativa do Governador de São Paulo confiscar o Fundo da Fapesp. Isso se insere também no âmbito da autonomia universitária e das Instituições de pesquisa científica e tecnológica, previstas no art. 207 da Constituição, além de atacar o art. 271 da Constituição paulista. Registre-se que tentativa semelhante  foi feita no âmbito federal em maio de 2019, através de amplo contingenciamento realizado pelo Ministério da Educação, conforme comentado à época.

Essa autonomia financeira é relevante, pois sem dinheiro não há como concretizar direitos fundamentais que dependem de ações do poder público, como ensino e pesquisa. Se tornarão mais uma promessa vã, ampliando o gap educacional e tecnológico que aflige nosso país, ampliando desigualdades sociais e regionais, em sentido oposto ao que determina a Constituição (artigo 3º, III).

A pandemia vem demonstrando a importância da ciência e da tecnologia (C&T), sem as quais não poderíamos continuar trabalhando on line, como vimos fazendo, a despeito da necessária quarentena, bem como seguir tendo esperança em uma vacina contra o vírus, em tão pouco tempo, em face da cooperação mundial que vem se operando. O primado da ciência e da tecnologia deve ser plural, e não vinculado a particulares e específicos grupos de interesses, pois, só assim, os diversos âmbitos da pesquisa poderão alcançar a sociedade em seus múltiplos aspectos. Para usar exemplos relativos às duas Universidades mencionadas, a USP desenvolveu durante a pandemia respiradores de baixo custo para atender a população infectada, e a UFPA possui pesquisas relevantes sobre o meio ambiente amazônico, que arde. O risco de vincular as Universidades e Institutos de Pesquisa à um pensamento único é torná-las reféns de interesses específicos, que muitas vezes não condizem com a realidade, escondendo-a ou direcionando as atenções para outros focos. Como um antídoto jurídico contra tais ameaças é que a Constituição, com sabedoria, resguarda as autonomias desses centros de produção de conhecimento, nos quais se concentra a riqueza do século 21.

Para ilustrar o problema, nada como uma metáfora. Imagine-se as normas jurídicas e a realidade das ruas como retratos em uma parede. A fotografia das ruas pode ser vista na bela música intitulada “Histórias para ninar gente grande, cantada pela escola de samba Mangueira no Carnaval de 2019, na qual se diz: “Deixa eu te contar/A história que a história não conta/O avesso do mesmo lugar” e arremata “eu quero um país que não está no retrato”. A fotografia das normas está na Constituição e no ordenamento jurídico. É necessário fazer convergira fotografia das ruas com a fotografia das normas, e não aprofundar a atual dissonância.

No limite, essa convergência deve ser exercida pelo STF, como guardião da Constituição, pois os fatos aqui narrados estão lesionando ou ameaçando direitos de toda a sociedade — a atual e das futuras gerações.

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    é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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