Opinião

Considerações sobre notícias falsas dolosas

Autor

  • Celso Cintra Mori

    é advogado com atuação na área de contencioso cível e empresarial e presidente do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CBPEJ).

29 de setembro de 2020, 15h18

"Não existem ervas daninhas, nem homens maus. O que existem são maus cultivadores" (Victor Hugo, "Os Miseráveis"). Ou "porque muitos são tão fracos no bem, alguns poucos conseguem ser tão fortes no mal". (Noemy Rudolfer, Conferência em Itu, 1956). A comunicação humana, tão promissoramente vicejante em milagres da tecnologia, viu-se, de repente, invadida por ervas daninhas que deturpam a verdade, distorcem as narrativas e arrasam reputações. Isso quando simplesmente não semeiam e cultivam o ódio.

As chamadas fake news não são apenas notícias falsas. Se alguém divulgar nas plataformas de comunicação virtual a informação de que possui uma fazenda de elefantes de cinco patas no Alaska, isso não é verdade, mas não é fake news. A notícia falsa que é objeto de preocupação é a notícia daninha. É a notícia falsa propagada para se transformar em crença de muitos e obter uma vantagem indevida, quase sempre política, mediante os crimes de injúria, difamação ou de calúnia contra alguém ou contra alguma instituição.

A preocupação justifica-se porque a grande vítima é, entre outras, a democracia. Não existem boas escolhas fundadas em más informações. Não existe uma sociedade civilizada de cidadãos desonrados e de instituições enxovalhadas sem direito de defesa.

Portanto, embora tenha recentemente editado o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14), que é amplamente regulatório, o legislador mobiliza-se agora para editar uma nova lei, especificamente voltada para combater as notícias falsas dolosas, ou, fake news.

O Senado já aprovou e a Câmara Federal começa a debater o Projeto de Lei nº 2630/2020 (Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet), que objetiva exatamente combater essa erva daninha.

Entretanto, são necessários alguns importantíssimos cuidados. A lei nova não pode contrariar nem a Constituição, nem o próprio Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) recém-editado, e que não tem motivos para ser reformado. Por outro lado, a lei tem de ser exequível e eficaz, sob pena de frustrar a sociedade e desprestigiar o legislador. Em 1798, o Conde de Tracy já advertia que não são as penas excessivamente severas que coíbem os delitos. O que os coíbe é a certeza da aplicação da lei [1].

A Constituição assegura a liberdade de expressão (artigo 5º, IV e IX) e o direito de ser informado (artigo 5º, XIV). Em uma palavra, garante a liberdade de imprensa e veda a censura prévia. Por outro lado, a Constituição garante os direitos de personalidade, e entre estes a dignidade da pessoa humana (artigo 5º, X). Portanto, prestigia os artigos 138, 139, e 140 do Código Penal, que continuam a considerar como crime a calúnia, a difamação e a injúria, conjuntamente chamados de crimes contra a honra. Qualquer que seja o meio usado para praticá-las. Uma sociedade que deseje ter cidadãos honrados, precisa defender a honra como valor social.

Em uma palavra, o sistema legal ancorado na Constituição assegura a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, sendo proibida a censura prévia. Mas, se alguém usar mal a liberdade e, em abuso desse direito praticar crime contra a honra, deverá ser processado e pode ser condenado a penas que variam de dois meses a dois anos de detenção.

O interesse em combater comportamentos criminosos é de toda a sociedade. Mas o dever de os investigar e punir é do Estado. É isso que a Constituição prevê em seu artigo 144, ao dispor que "a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: (…)".

Na prevenção e repressão aos delitos de notícias falsas dolosas, sem dúvida um dever do Estado, há uma interação deste com as empresas privadas provedoras de serviços de comunicação. É no mau uso desses serviços que os delinquentes podem perpetrar os seus crimes contra a honra de terceiros e a reputação das instituições, e corroer a democracia.

Portanto, uma lei que pretenda reprimir as notícias falsas dolosas terá, necessariamente, que definir o papel a ser reservado e imputado às empresas provedoras desses serviços de comunicação.

Essa interação entre Estado e iniciativa privada, entretanto, deve se fazer nos limites dos direitos e obrigações constitucionais e dos dispositivos do Marco Civil da Internet.

A Constituição assegura às empresas o direito à livre iniciativa (artigo 170), que significa a liberdade de se organizar segundo a criatividade de cada empresa. Na iniciativa privada, o que não é especificamente proibido pela lei é permitido pela Constituição (artigo 5º, II).

Por outro lado, o Marco Civil da Internet traz definições precisas sobre parâmetros de condutas de usuários e de prestadores de serviços.

Essa lei estabelece garantias, direitos e deveres para o uso da internet, mediante princípios que define (artigo 1º). Garante a liberdade de expressão (artigo 2º), bem como os direitos de personalidade (inciso II, do artigo 2º), a livre iniciativa, a livre concorrência e os direitos do consumidor (inciso V do artigo 2º).

Em coerente composição de sistema com os dispositivos citados, essa lei também adota como princípios a proteção da privacidade, a neutralidade de rede e a responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades e nos termos da lei (artigo 3º). O mesmo artigo, resguardados esses princípios, garante a liberdade dos modelos de negócios (inciso VIII do artigo 3º).

O direito de acesso à internet e à privacidade são erigidos em valores essenciais ao exercício da cidadania, e por isso assegurados como garantias fundamentais (artigo 7º).

O provedor de aplicações de internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros (artigos 18/21), salvo se descumprir ordem judicial de remoção de conteúdo ilícito.

O desafio que se lança ao legislador para impedir as notícias falsas dolosas é exatamente o de editar lei eficaz, que respeite todos esses pressupostos de leis maiores ou mais gerais anteriores, a começar pela Constituição Federal.

Sabe o legislador, obviamente que não se pode querer uma coisa e o seu contrário ao mesmo tempo. Portanto, se a vontade política é a de combater as notícias falsas dolosas, há que o fazer dentro da lei, mas com a máxima eficiência possível. Não se pode ser leniente com aquilo que se quer combater.

A primeira constatação é a de que todas as garantias, desde as constitucionais até as dos diplomas legais ordinários, precisam ser interpretadas de forma a não conduzir ao absurdo de se imaginar que a Constituição garanta o direito de cometer crimes. Essa interpretação, que não é nem a revogação nem a reinvenção das garantias, começa pelo fato de que são garantias da cidadania. Cidadania tem nome e sobrenome.

Portanto, a primeira garantia que se deve submeter a escrutínio é a suposta garantia do agente que se quer manter sob anonimato. Já o fez o próprio legislador constitucional ao proibir o anonimato, no inciso XIV do artigo 5º. Disso decorre que qualquer legislação que pretenda combater as notícias falsas dolosas deve começar esclarecendo que não se aplicam as garantias legais ao não sujeito, que se esconde sob o anonimato para praticar ilícitos civis ou penais.

É preciso ter sempre em mente que não se pode criar, na amplitude do mundo digital, um espaço para que agentes anônimos criminosos invoquem indevidamente o direito à privacidade, que não têm, para continuar praticando os ilícitos que a comunicação digital possibilita. Portanto, quando se fala em privacidade, o tema é a privacidade de pessoas identificadas.  

Como as coisas nunca são tão fáceis, é preciso lembrar a existência de todo um arcabouço interpretativo que assegura o direito de se atuar sob pseudônimo. Mas esse deverá ser desvendável em determinadas circunstâncias. A lei também assegura o direito de manifestar opinião política com sigilo da própria identidade. A liberdade de expressão deve estar a salvo das represálias arbitrárias. O exemplo mais eloquente disso é o direito ao voto secreto.

Portanto, parece-me justificável dizer que para as legítimas expressões de pensamento e vontade na internet permite-se o pseudônimo, assegurando-se os meios tecnológicos de se identificar, por ordem judicial, a pessoa real que se representa pelo pseudônimo.

Entendo que a questão se resolveria com um dispositivo legal que esclarecesse ser direito do ofendido, em processo de cognição sumária, preventiva, cautelar ou incidental, obter ordem judicial de identificação de agente responsável por divulgação que o juízo entenda ter razoável probabilidade de ser falsa e causar dano (fundados indícios de ilicitude da conduta).

E esse dispositivo já existe: é o artigo 22 do Marco Civil da Internet [2]. Dessa forma, não haveria necessidade de novo dispositivo no projeto de lei. Quando muito, para se evitar qualquer interpretação obscura, a repetição de disposição semelhante ao Marco Civil da Internet.

Questão igualmente tormentosa é a de se saber quais são os limites de interferência da lei na definição da liberdade de iniciativa e de escolha do modelo de negócios, que a Constituição assegura sem excluir as empresas privadas que atuam como provedores de serviços de internet.

Ninguém pode pôr em dúvida que a liberdade de iniciativa e de escolha de modelo de negócios se faz dentro do território demarcado pela lei. Mas esse território não pode ser progressivamente restringido na direção de um ponto imaginário.

O artigo 12 do Projeto de Lei nº 2630/2020 presta-se exatamente a esse necessário debate.

Nesse dispositivo, o projeto procura desenhar, em parâmetros básicos, mas imprecisos, as regras de procedimento a vigorar entre os usuários e o provedor, quando se imponha a necessidade de coibir ou moderar o uso abusivo da plataforma.

O projeto não trata, e nem deveria, de esmiuçar os procedimentos internos e contratuais a serem adotados pelo provedor para o cumprimento da lei em face de seus usuários. Mas arrisca umas tantas regras de interpretação dúbia. Em determinadas circunstâncias, o provedor deve notificar previamente o usuário suspeito ou acusado de abuso, antes de suspender a divulgação.

A enumeração das hipóteses em que a notificação prévia é dispensada não está clara, e comporta subjetivismos. Não se sabe, por exemplo, o alcance da dispensa de notificação em hipótese de "risco para a segurança da informação ou do usuário". Parece, ao analista do projeto, que a segurança que se quer preservar é a do ofendido, não necessariamente usuário.

Esse é apenas um exemplo de como a tentativa do legislador de regulamentar relações contratuais pode levar a distorções. E, certamente, leva à violação dos princípios constitucionais garantidores da liberdade de iniciativa e da liberdade de escolha de modelo de negócio.

Fixados os objetivos da lei, bastaria dizer que os provedores devem incluir em seus contratos com os respectivos usuários as disposições necessárias para cumprir a lei, incluindo procedimentos que assegurem os direitos de ampla defesa. O mais já consta do sistema legal brasileiro.

 


[1] Quels Sont le Moyans de Fonder la Morale Chez um Peuple?

[2] "Artigo 22 – A parte interessada poderá, com o propósito de formar conjunto probatório em processo judicial cível ou penal, em caráter incidental ou autônomo, requerer ao juiz que ordene ao responsável pela guarda o fornecimento de registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet".
Parágrafo único. Sem prejuízo dos demais requisitos legais, o requerimento deverá conter, sob pena de inadmissibilidade:
I – fundados indícios da ocorrência do ilícito;
II – justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ou instrução probatória; e
III – período ao qual se referem os registros".

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