Opinião

A transação tributária e o mercador de Veneza

Autores

  • Guilherme Carvalho

    é doutor em Direito Administrativo mestre em Direito e políticas públicas ex-procurador do estado do Amapá bacharel em administração sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

  • Mitale Sampaio

    é advogada pós-graduada em Direito Tributário pela FGV-SP diretora do Instituto Mineiro de Direito Tributário – IMDT integrante da Comissão de Direito Tributário da OAB/SP e membro da Associação dos Advogados de São Paulo.

29 de setembro de 2020, 21h03

À medida que envolve um figurino sofisticado e com as mais variadas conotações jurídicas, William Shakespeare, em "O Mercador de Veneza", constrói uma das mais atraentes tramas que aportam no mundo contemporâneo, interessando, dentre tantos instigantes temas e questionamentos apresentados na obra, o oneroso contrato firmado entre o judeu Shylock e o cristão Bassânio, tendo por garantia, em caso de não pagamento, uma tira de carne do garante e também cristão Antônio.

As obrigações tributárias, no sistema tributário brasileiro, por vezes relembram o contrato que norteia a história contada por Shakespeare na Veneza do século 16. Embora nossa democrática aparelhagem constitucional reclame a preservação da dignidade da pessoa humana, é induvidoso que, por vezes, do contribuinte se lhe retira, quando do não pagamento dos complexos tributos que lhe são impostos, uma "libra de carne", em forma de sangue, suor e lágrimas. A Receita Federal brasileira é nosso Shylock.

Se é certo que ao poder público não é conferida a plena autonomia da vontade ínsita aos particulares, pois a vontade da Administração Pública é formada mediante um plexo de atos e procedimentos administrativos, às vezes é possível o poder público ajustar, desde que haja lei em sentido autorizativo. Para viabilizar o adimplemento das obrigações assumidas pelo administrado, tal qual nas soluções apresentadas por Pórcia quando do julgamento de Antônio, chancelou-se, por meio de lei (Lei nº 13.988/20), a transação tributária no Brasil, norma esta que "estabelece os requisitos e as condições para que a União, as suas autarquias e fundações, e os devedores ou as partes adversas realizem transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária".

Ocorre que aludida lei, extremamente benéfica ao poder público, na verdade muito mais se afeiçoa a uma aceitação, similar à concordância de Antônio quanto às condições impostas por Shylock; para salvar Bassânio, Antônio não hesitou! Caro leitor, todos os dias o contribuinte brasileiro se sujeita a uma adesão ou a um parcelamento — ou a algo minimamente parecido (e sempre sugerido como um beneplácito).

Pois bem. A Lei nº 13.988/20, ao tempo em que assevera que "a União, em juízo de oportunidade e conveniência, poderá celebrar transação em quaisquer das modalidades de que trata esta lei, sempre que, motivadamente, entender que a medida atende ao interesse público" (§ 1º do artigo 1º), conjuntura, assim como Shylock impusera a Antônio, esta mesma transação a uma condicionante de pura e estrita adesão (hipóteses do artigo 2º), salvo uma única hipótese de proposta individual, relacionado à cobrança de créditos inscritos na dívida ativa da União (inciso I do artigo 2º da Lei nº 13.988/20), que pode ou não ser aceita pelo poder público. Pragmaticamente, não há qualquer transação.

Assim como Antônio vai ao encontro de Shylock, que oferece suas condições e termos de cumprimento para que o empréstimo possa ser efetivado, no Brasil o que ocorre, na prática, é uma transação tributária em que há uma verdadeira submissão do contribuinte ao pacote oferecido pela Administração Pública; ou adere, ou não transaciona.

Ora, transação é cessão mútua, é um sinalagma, onde há perdas e ganhos, de onde emergem ajustes, convenientes não só ao poder público, mas também à outra parte. O que a União ousa abonar é tão apenas parcela do que já não é justo — parte dos abusivos juros e demais encargos impostos ao contribuinte. A cedência do Fisco condiz com o sangue que escorre pela libra de carne rotineiramente já retirada do sujeito passivo da obrigação tributária.

À espera da advogada Pórcia, o contribuinte brasileiro (Antônio) anseia um julgamento justo, uma transação tributária com paridade de direitos e obrigações, que não se concretizem em meras adesões, sempre na expectativa de que mais nenhuma gota de sangue seja derramada e que, um dia, a carga tributária seja suficientemente adequada, permitindo manter intactas todas as libras de carne de seu já castigado corpo.

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    é advogado do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados, doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas e ex-procurador do Estado do Amapá.

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    é advogada, pós-graduada em Direito Tributário pela FGV-SP, diretora do Instituto Mineiro de Direito Tributário – IMDT, integrante da Comissão de Direito Tributário da OAB/SP e membro da Associação dos Advogados de São Paulo.

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