Opinião

A nova advogadofobia e histórias de bugios e delegados!

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28 de setembro de 2020, 8h35

Spacca
Há uma expressão no folclore gaúcho que tem dois sentidos: um vem da letra da música do grupo folclórico Os Fandangos, que diz: "Nas festanças de campanha do interior do meu estado; Da fronteira até a serra o bugio é delegado". Aqui o bugio é um ritmo musical. Um ritmo que manda no baile. É o delegado. O bugio da música, à evidência, está ligado à figura do animal, que ronca bastante. A música imita o ronco. O músico Gaúcho da Fronteira é conhecido por tocar esse ritmo "roncador".

Outro sentido é o de quando se quer falar de um lugar em que não há lei. Diz-se, então: lá onde o bugio é delegado. Na fronteira se diz muito isso. Assim como "nos tempos de Ariri Pistola".

Lembrei de outra expressão também muito comum no Sul: a guerra de bugios. O folclore gaúcho é rico.

Por falar em baile, os advogados de todo o Brasil ficamos tristes, sem vontade de dançar nesse baile do autoritarismo, nesse furdunço ocorrido no interior de uma Delegacia no Estado da Paraíba, conforme bem relatado pelo jornalista Rafa Santos, da ConJur (ler aqui).

Explico: Conforme a matéria, advogados foram agredidos a socos e pontapés na delegacia central da Polícia Civil da Paraíba. O procurador das Prerrogativas da OAB-PB, Igor Guimarães, foi agredido fisicamente, teve seu telefone celular quebrado, suas calças rasgadas e quase acabou sendo preso.

Boa parte da confusão foi registrada em vídeos de celulares e em lives no Instagram. Um desses registros ao vivo foi feito pelo perfil Papo de Criminalista, mantido pelo advogado Mário de Oliveira Filho, presidente da comissão de direitos e prerrogativas da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas (Abracrim).

"Vou te falar que me senti ali como se estivesse na Alemanha nazista. Como se tivesse entrado em uma máquina do tempo e ido parar em 1964 na ditadura militar. Nunca vi tanto autoritarismo. Tanta bravata. Parecia que tinham rasgado o texto constitucional e que vivemos em um estado de barbárie", resume Igor Guimarães em entrevista à ConJur.

O advogado classifica o caso como digno de "cenas de guerra" e revela que os policiais queriam prendê-lo em flagrante por desacato, calúnia e difamação — por conta da live gravada na delegacia.

Personagens policiais nominadas na matéria: a delegada Viviane Magalhães, quem, além de destratar o causídico, ofendeu a sua mãe. Incrível, mas teve mais um delegado envolvido, marido de Viviane. Um advogado teria recebido telefonema dele, ameaçando-o.

Pronto. Eis a tempestade perfeita para o baile. Para o fandango. Para o furdunço. Só que nesse baile — o da Paraíba — o ritmo é ditado pela delegada. Como na música de Os Fandangos. Só que, na música gaúcha, não há ofensas. Não há nada de arbítrio. Digamos que o bugio musical é “dançado na forma da lei”.

Porém, fiquei tranquilo quando li a nota da Polícia Civil. Dura. Esclarecedora (selo LLS de ironia). E o secretário da segurança também foi incisivo… (novo selo LLS de ironia!).

O que sobra disso, sem precisar discutir pormenores? A volta à pré-modernidade. Relação de poder? Carismática. Ex parte príncipe. Não há ex parte princípio, que é a dominação legal racional, característica da modernidade.

Na delegacia essa do baile, o que há — ou nitidamente pareceu haver — é a FEM (Forma Estatal Medieval, conforme Bolzan de Moraes e eu chamamos a esse período que antecede o Estado Moderno). É quando o senhor feudal pegava a mulher do servo da gleba para curtir a primeira noite. A lei? Era o próprio senhor feudal quem fazia.

Como diz o Dr. Elias Mattar Assad, meu querido amigo e presidente da Abracrim, a Associação Brasileira da Advocacia Criminal (a qual tive a honra de representar no plenário do STF quando do julgamento das ADCs 43, 44 e 54), “recuai tiranos! A Advocacia resistirá, como resistiu nos piores momentos da nossa República!”

Não sei não, meu caro Presidente Elias. Não sei não. Cada dia vemos o vilipendio de nossas prerrogativas aumentar. Vivemos tempos de advogadofobia!

A propósito: o Ministério Público não faz o controle externo da atividade policial? Ou deveria fazer?

A propósito 2: o delegado Afrânio Doglia de Brito Filho, marido da delegada Viviane — e quem, segundo consta, esteve ativamente envolvido no episódio (dando voz de prisão à advogado) —, livrou-se de um caso de crime contra a liberdade pessoal e lesão corporal não faz muito. Parece que o Ministério Público deixou prescrever (o documento não especifica), conforme processo n. 3002095-73.2017.8.15.2002. Decisão transitada em 2018.

Também será interessante que seja posto às claras — por uma questão de accountabillity — a questão envolvendo o pedido de perícia médica (ID 23883460), que foi deferida em 09.04.2020, pela 6ª. Vara da Fazenda Pública de João Pessoa, que deveria ser feita pelo Instituto Psiquiátrico Juliano Moreira. É possível que tenha relação com o fato sob comento. A ver.

Quanto ao caso de sexta-feira, dia 25.09202, nem uma notinha da Procuradoria-Geral de Justiça? Como se diz aqui no Sul, no profundo Rio Grande do Sul e seus verdes campos, antes ou depois do baile em que ronca o bugio, "tchê, mas que barbaridade", expressão que mais simplesmente está resumida em uma quase onomatopeia: bah!

Poderia fazer aqui uma frase retórica, tipo "ah, a justiça esclarecerá e punirá os culpados por essas violações das prerrogativas dos advogados". Mas seria apenas retórica.

Como disse um xirú velho (homem talhado pelo tempo, castigado pelo canzil), depondo sobre uma peleia em que a polícia bateu à vontade em alguns borrachos na bailanta lá no fundo do Irui:1 "não vai acontecer nada pra esses ‘prevalecidos” — sic’". O “sic” é meu!

Pois é. A ver. Bah!

Advogados de todo o Brasil, somos, mesmo, stoik mujic! Stoik mujic! Apanhamos e nos levantamos. Apanhamos e nos levantamos.

E porque levantamos, sovrevive(re)mos!

Stoik Mujic!


1 Isso foi dito por um velho gauche, depondo em um caso em que atuei como Promotor de Justiça, na comarca de Itaqui, fronteira com a Argentina. Ele era descrente. Tivemos, o juiz e eu, muito trabalho em fazê-lo acreditar que os policiais, a quem o bagual chamou de "prevalecidos", seriam punidos. Na verdade, nos anos 80, a velha Lei do Abuso facilitava a prescrição. Pior: o bagual do Irui tinha razão.

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