Opinião

A operação "carne fraca" e a "supermulta sanitária"

Autor

  • Pedro Mazalotti Teixeira

    é advogado graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) pós-graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) e mestrando em Direito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

28 de setembro de 2020, 14h39

Em 17 de março de 2017 foi deflagrada a operação "carne fraca", noticiada mundo afora como a maior operação da história da Polícia Federal, envolvendo 1.100 agentes e o cumprimento de 38 mandados de prisão, com a finalidade de investigar o envolvimento de fiscais do Ministério da Agricultura em um esquema de liberação de licenças e fiscalização irregular para frigoríficos [1]. Entre outros fatos noticiados da operação, destacou-se uma ilação equivocada sobre a mistura de papelão à carne no processo produtivo. A repercussão desta operação foi tamanha, que impactou significativamente o mercado de exportação de proteína animal do país, com a paralisação temporária da importação de carne brasileira em alguns países [2].

Spacca
Assim, a partir desta operação [3], embrionária e incerta quanto aos fatos à época, sem qualquer debate com os setores civis, foi editada a Medida Provisória n° 772/2017, alterando a Lei Federal n° 7889/89, que previa (artigo 2º) a quantificação de multas aplicadas por infrações tipificadas na legislação sanitária em, no máximo, 25.000 BTN’s, ou seja, de pouco mais de R$ 15 mil, para até R$ 500 mil.

Diante desta mudança repentina, a partir do dia 30 de março de 2017, o frigorífico que tivesse cometido determinada infração à legislação sanitária, poderia estar sujeito à uma pena de multa 33 vezes maior do que aquele que houvesse cometido a mesma infração no dia 29 do mesmo mês. A situação jurídica, que impactou todo o setor frigorífico, persistiu até o dia 8 de agosto de 2017, pois no dia seguinte foi editada a medida provisória n° 774/2017, revogando a MP 772/2017, e retornando a vigência e eficácia do texto original da Lei Federal n° 7889/89. Nessa época já se tinha vindo à tona que grande parcela acusações formuladas na operação, sobretudo à famigerada mistura de carne com papelão, foram exageradas, deturpadas e precipitadas, conforme reconhecido pela própria Polícia Federal [4].

No entanto, a MP 772/2017 já havia produzido uma série de efeitos, com destaque para a imposição de inúmeras multas administrativas baseadas no patamar valorativo provisório, o que foi agravado pelo fato de que após esgotado o prazo máximo de vigência da medida, o Congresso Nacional não editou decreto legislativo para disciplinar as relações jurídicas dela decorrentes, nos termos do artigo 62, §3º, da CRFB/1988.

Ocorre que, em uma interpretação equivocada do processo administrativo sancionador sanitário, e com base no §11º, do artigo 62 da Constituição Federal, mesmo após a revogação ou perda de eficácia da MP 772/2017 (sua eficácia se deu somente nos períodos de 30/3/17 a 8/8/17 e de 7/12/2017 a 8/12/2017) o Ministério da Agricultura estaria aplicando multas com base na mesma, considerando, para tanto, a data da prática da conduta infracional. A ilegalidade na aplicação dessas multas, o que foi explorado na coluna do dr. Igor Mauler Santiago [5], levou à existência de uma situação jurídica administrativa injusta e desproporcional.

Assim, no momento do cometimento da infração e lavratura do auto sanitário, não é aplicada nenhuma penalidade ao infrator ainda, até porque não é possível fazer isso, pois para um tipo infracional, é passível de aplicação sanções diferentes, inexistindo certeza quanto à aplicação da pena de multa.

Não obstante, é necessário ir além quanto aos fundamentos de ilegalidade na aplicação das multas como exposto. Veja-se, a MP 772/2017, lei administrativa sancionatória, não era uma lei de natureza temporária, tampouco de natureza excepcional, visto que a sua edição tinha o condão de perpetuidade, de permanência, pois o agravamento da sanção, no espírito do legislador, não prestava a regular uma situação episódica — o que se assim fosse escancararia sua inconstitucionalidade. No entanto, acertadamente, diante da ausência de razoabilidade, de proporcionalidade, de legalidade latu sensu e da inexistência de seus pressupostos objetivos autorizadores, a medida provisória não foi tornada Lei, tampouco possuiu o efeito de ultratividade.

Esse ponto é fundamental para que se compreenda que, independente da época da prática da conduta infracional, no processo administrativo sancionatório não transitado em julgado, a norma administrativa mais benéfica, que passou a viger antes de consolidada a multa aplicada, deverá retroagir, baseado na aplicação direta do princípio geral de direito sancionatório extraído do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal (afastada qualquer analogia ao Código Tributário Nacional) [6], conforme entendimento do STJ [7].

Além disso, tão importante quanto, foi o julgamento da ADPF n° 216/2006, quando o STF deu interpretação conforme a Constituição ao artigo 62, §11º da CRFB/1988. No caso, a Suprema Corte, quanto aos efeitos da perda de eficácia da Medida Provisória n° 320/2006, envolvendo processo administrativo aduaneiro, limitou a eficácia da MP aos processos administrativos já decididos, excluindo aqueles que no momento da caducidade da medida provisória ainda estavam pendentes. No que pese o entendimento do STF contrário à transcendência dos fundamentos nas decisões em controle concentrado de constitucionalidade, é esclarecedora e sintomática a fundamentação restringente dada ao §11º, do artigo 62, da Constituição, no julgamento desta ADPF: "A norma do § 11 do art. 62 deve ser interpretada com prudência a não permitir se protraia, indefinidamente, a vigência de medidas provisórias rejeitadas ou não apreciadas. O dispositivo é objeto de críticas da doutrina, havendo quem sustente até mesmo sua inconstitucionalidade".

Portanto, sem adentrar nas razões e necessidades políticas que levaram à edição da MP 772/2017 à época, criando-se a "super multa sanitária transitória", a interpretação jurídica quanto à aplicação desta, tanto pela administração quanto pelo Poder Judiciário, não deve escapar aos dois prismas constitucionais expostos, em preservação da segurança jurídica administrativa.

Autores

  • Brave

    é advogado, graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pós-graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) e em Business Law MBA pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!