Opinião

Não há qualquer ilegalidade nas ações afirmativas para admissão no emprego

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28 de setembro de 2020, 9h11

Causou polêmica na última semana a divulgação feita por uma grande rede varejista de que seu programa de trainees para 2021 será voltado unicamente para pessoas negras. Em uma sociedade altamente polarizada como a atual, não chega a causar surpresa que ações desse tipo se tornem trend topic nas redes sociais: de um lado, os que defendem arduamente a sua pertinência e de outro, não menos certos de sua razão, os que alegam que ela combate discriminação com discriminação e que configura "racismo reverso". Nenhum problema há na discordância, faz parte da vida democrática. A questão aqui é entender se, para além das opiniões pessoais, há fundamento jurídico para tamanha controvérsia. É responder à pergunta: processos seletivos de emprego limitados a determinadas minorias são considerados legais?

A medida da rede varejista é uma espécie das chamadas "ações afirmativas", conceituadas na Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial como "(…) medidas especiais e concretas para assegurar como convier o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos raciais de indivíduos (…) com o objetivo de garantir-lhes, em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos do homem e das liberdades fundamentais". Ou seja: são ações que buscam fomentar a integração social de grupos minoritários.

Questionamentos à legalidade de ações afirmativas no Brasil não são novos e amparam-se basicamente nos seguintes fundamentos jurídicos: artigo 5º da Constituição, que consagra o princípio da igualdade como direito fundamental ("todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza"); ausência de base legal para tais políticas e, especificamente no que se refere ao mercado de trabalho, o artigo 7º da Constituição, que estabelece a "proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil". Desses preceitos derivam os argumentos adicionais, como meritocracia, isonomia, discriminação e "racismo reverso".

Todos esses argumentos já foram de alguma forma objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal ao avaliar a constitucionalidade de ações afirmativas. E todos foram sucessivamente refutados. Como exemplo, a decisão da ADPF 186/DF em 2014 sobre a constitucionalidade do sistema de cotas étnico-raciais para ingresso nas universidades públicas: com exceção da análise própria àquele contexto fático (questões atinentes ao acesso ao ensino superior público), os demais fundamentos da decisão são aplicáveis também ao caso da rede varejista, especialmente a declaração da constitucionalidade de políticas afirmativas em geral (incluindo as tomadas pela sociedade civil) e o uso do critério racial para essas políticas.

O principal argumento utilizado por aqueles que são contrários a tais políticas, a alegada ofensa ao princípio da igualdade, foi refutado pelo relator daquela decisão, ministro Lewandowski, sob o fundamento de que "a aplicação do princípio da igualdade, sob a ótica da Justiça distributiva, considera a posição relativa dos grupos sociais entre si (…) objetiva promover a inclusão social de grupos excluídos ou marginalizados, especialmente daqueles que, historicamente, foram compelidos a viver na periferia da sociedade". Nesse mesmo sentido foi o voto do ministro Nelson Jobim na decisão da ADI 1.946 pelo STF, com objeto similar à ADPF: "A discriminação positiva introduz tratamento desigual para produzir, no futuro e em concreto, a igualdade. É constitucionalmente legítima, porque se constitui em instrumento para obter a igualdade real".

Eles consolidam, portanto, o entendimento de que devemos superar a interpretação puramente formal do princípio da igualdade, que acaba por perpetuar desigualdades, e compreendê-lo em seu aspecto material, pela máxima "tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades". Essa é, em suma, a interpretação dada pelo STF ao artigo 5º, caput, da CF, de modo que o argumento de que ações afirmativas, como a do programa de trainees, seriam inconstitucionais por ofender o princípio da igualdade já foi ampla e reiteradamente rechaçada por aquela corte, que declarou que elas não apenas observam tal princípio, como constituem maneira eficaz de atingi-lo de forma plena.

Também a alegação de que inexiste base legal para tais políticas mostra-se equivocada: além do entendimento consolidado pelo STF quanto à compatibilidade destas com os preceitos constitucionais relacionados à igualdade, elas ainda são legitimadas por farta base legal e supralegal. Como exemplo, a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial da ONU, ratificada pelo Brasil em 1968, estabelece que ações afirmativas visando assegurar o progresso e a inclusão de certos grupos raciais ou étnicos excluídos não configura discriminação [1]. Mais recentemente, a Lei nº 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial) fixou que é dever da sociedade garantir a igualdade de oportunidades a todos, que a inclusão das vítimas de desigualdade étnico-racial deve ser uma diretriz político-jurídica e que essa inclusão deve ser promovida prioritariamente por meio de ações afirmativas, com a eliminação dos obstáculos históricos, socioculturais e institucionais nas esferas pública e privada. Isso sem contar inúmeros outros dispositivos legais e tratados internacionais que tratam do tema, formando um amplo arcabouço jurídico a amparar tais medidas.

Por fim, o argumento de que a medida violaria o artigo 7º, XXX, da CF, que proíbe diferenciação por cor como critério de admissão no emprego, não se sustenta em razão da necessidade de interpretá-lo de acordo com a interpretação dada ao artigo 5º e em conjunto com os demais preceitos constitucionais. Aqui, a conclusão é que a diferenciação vedada no momento da admissão por tal artigo é aquela que prejudica o atingimento da igualdade material, o que não é o caso de ações afirmativas, que visam justamente ao oposto: atingi-la. Não por outra razão, a Convenção 111 da OIT estabelece que os membros daquela entidade podem definir como não discriminatórias medidas que objetivam garantir necessidades particulares de grupos de indivíduos que demandam proteção especial [2]. A violação ao referido artigo pressupõe, portanto, a ocorrência de discriminação no sentido dado a esta palavra pela Convenção 111 da OIT: "Toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão".

É essa discriminação que a Constituição busca extinguir, a perpetrada por empresas que possuem critérios discriminatórios de admissão, no sentido de impedir a igualdade de acesso de determinados grupos àquela empresa. Inclusive, a maneira mais comum e eficaz de comprovar a alegada discriminação é por meio da demonstração da ausência ou do número extremamente reduzido de pessoas de determinados grupos minoritários na empresa em questão (negros, mulheres, portadores de deficiência). Será esse o caso da rede varejista?

Em artigo publicado no Brazil Journal [3], Frederico Trajano, CEO da rede varejista em questão, referiu que, muito embora inclusão e diversidade sejam valores da empresa desde a sua criação e do fato de que praticamente metade dos seus 40 mil funcionários é composta de pessoas negras e pardas, há pouquíssimos negros na liderança da empresa — cerca de 16%. Revela, ainda, que, dos 250 trainees já formados por ela, apenas dez eram negros e que no comitê executivo e no conselho de administração da empresa não há nenhum. E que esse ponto de absoluta incoerência entre a prática e a política de diversidade da empresa os incomodava, mas que, por motivos diversos, nunca conseguiram endereçá-lo. O processo diferenciado para o programa de trainees de 2021, que visa justamente formar essa liderança, decorre justamente de tal percepção e de uma busca da empresa em resolver tal incoerência.

Será então possível enquadrar esse processo como violador do princípio da isonomia ou gerador de discriminação de forma a violar o artigo 7º, XXX? Vejam: negros e pardos continuarão a ser a minoria na liderança da empresa e indivíduos brancos (os que estariam sendo alegadamente discriminados) seguirão ocupando a maior parte de tais postos de trabalho. Como poderia se caracterizar, portanto, a existência de intenção da empresa de "destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão", nos termos da Convenção 111 da OIT, se a maioria dos empregados naqueles postos são brancos? Não poderia. Caracteriza-se, sim, um evidente objetivo de diversificar a liderança por meio de uma ação afirmativa e essa diversificação não só é aceita pela Constituição, como é um de seus objetivos maiores.

Basta observar a referência à dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República, assim como os valores sociais do trabalho [4]; os objetivos de "construir uma sociedade livre, justa e solidária", de "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" e de "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais [5]"; a previsão de que "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais" e que "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível [6]"; o dever estatal de "combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos [7]". E, no mesmo artigo 7º que proíbe a diferenciação na admissão no emprego, a inclusão do direito fundamental da "proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei", o que também é previsto no artigo 37, VIII, em relação aos portadores de deficiência.

É evidente, portanto, o objetivo claro e expresso da Constituição de erradicar qualquer discriminação negativa e redução das desigualdades, não somente por condutas omissivas, mas por meio de ações afirmativas. Na já referida decisão da ADPF pelo STF, o ministro Lewandowski menciona que "tal como os constituintes de 1988 qualificaram de inafiançável o crime de racismo, com o escopo de impedir a discriminação negativa de determinados grupos de pessoas, partindo do conceito de raça, não como fato biológico, mas enquanto categoria histórico-social, assim também é possível empregar essa mesma lógica para a autorizar a utilização, pelo Estado, da discriminação positiva, com vistas a estimular a inclusão social de grupos tradicionalmente excluídos".

Está respondida, portanto, a nossa questão: de acordo com interpretação dada pelo STF à nossa Constituição de forma reiterada e já há bastante tempo, não somente não há ilegalidade na adoção de políticas afirmativas como critério de inclusão de grupos minoritários, seja para admissão no emprego, no ensino superior ou em outros âmbitos da sociedade, como elas são meios legítimos de atingir os objetivos estabelecidos pela Carta Maior.


[1] "Artigo 1º, § 4º — Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais."

[2] "Artigo 5º. 2 — Qualquer membro pode, depois de consultadas as organizações representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas existam, definir como não discriminatórias quaisquer outras medidas especiais que tenham por fim salvaguardar as necessidades particulares de pessoas em relação às quais a atribuição de uma proteção ou assistência especial seja, de uma maneira geral, reconhecida como necessária, por motivos tais como o sexo, a invalidez, os encargos de família ou o nível social ou cultural."

[4] CF, artigo 1º.

[5] CF, artigo 3º.

[6] CF, artigo 5º.

[7] CF, artigo 23º.

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