Opinião

Século 21 e a legitimação democrática do reconhecimento do direito à saúde no Brasil

Autor

  • Vinícius G. F. Jallageas de Lima

    é advogado mestrando em Direito Processual Civil pela USP especialista Direito Processual Civil pela PUC-SP em Direito Imobiliário pela FGV-SP em Direito Médico e Hospitalar pela EPD sócio e fundador de Vinícius Jallageas Advocacia.

28 de setembro de 2020, 7h06

Inicialmente, importante traçar algumas ponderações, por meio de um breve retrocesso histórico do direito à saúde, para que seja possível construir um raciocínio minimamente compreensível acerca do seu atual grau de legitimação democrática no Brasil.

Em 1945, após a Segunda Guerra Mundial, suscitou-se, mundialmente, uma série de crescentes medidas relacionadas ao uso intensivo da ciência e tecnologia para a produção de riquezas, objetivando distribuí-las de maneira equânime, eliminando iniquidades.

Para atingir este objetivo, diversas nações, em conjunto, criaram organismos intergovernamentais, por meio de uma série de tratados, conferindo-lhes arcabouço legal, tendentes a realizar a colaboração entre os países, dos quais a Organização das Nações Unidas (ONU) é a mais conhecida [1].

Após a confecção da Carta das Nações Unidas, documento responsável pela fundação da Organização das Nações Unidas (ONU), foi constituída a Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1946, objetivando que todos os povos pudessem adquirir o nível de saúde mais elevado possível.

Aliás, importante esclarecer que foi inserido, no próprio preâmbulo da Constituição da OMS, o conceito de saúde como sendo "um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade [2]".

Em 10 de dezembro de 1948 fora proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual, em seu artigo XXV estabeleceu o direito à saúde da seguinte forma:

"Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e à sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle."

Após, em 1966, adotou-se o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, reconhecendo também a saúde como um direito básico do ser humano.

Diante de todo esse contexto histórico, e com base na influência dos tratados mencionados acima, todos ratificados pelo Brasil, a Constituição Federal de 1988 positivou diversos dispositivos legais sobre o direito à saúde.

Estabeleceu-se nos artigos 196 a 198 da Constituição Federal diretrizes e normas acerca de questões de políticas públicas do Estado, além de facultar em seu artigo 199 caput e parágrafos a assistência à saúde à livre iniciativa privada.

Nessa mesma toada, em sede infraconstitucional, fora publicada a Lei nº 8.080/1990, que dispõe sobre as condições do Estado para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento destes tipos de serviços.

Além disso, após dez anos de vigência da Constituição, fora promulgada a Lei nº 9.656/98, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, estabelecendo as bases do sistema privado de saúde no Brasil.

Com isso, estabeleceu-se no Brasil dois sistemas de atendimento à saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS), cujo dever é do Estado, e o Sistema de Saúde Suplementar, regulado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Feita essa breve introdução e partindo para o tema central do presente artigo, vale rememorar que o Brasil não viveu qualquer modelo democrático até a Constituição Federal de 1946, visto que as mulheres passaram a ter direito a voto em 1932, com a elaboração do primeiro Código Eleitoral do Brasil, criado no início da Era Vargas, direito este incorporado à Constituição Federal de 1934, e os analfabetos só tiveram o direito de voto reconhecido com a Constituição Federal de 1988.

Desta forma, com o advento da Constituição de 1988, conhecida também como "constituição cidadã", por ter sido concebida no processo de redemocratização do Brasil, houve sim um grau de legitimação democrática do reconhecimento do direito à saúde no Brasil.

Isso porque, em um Estado de Direito, tem que garantir participação democrática para todos e somente assim o contrato social será considerado legítimo.

Para tanto, é preciso que o contrato social seja construído por todos, claro que tem que construir maiorias para prevalecer a vontade dos seus interesses, mas sempre também proteger as minorias.

Justamente por causa disso que Rousseau, ao pensar no contrato social, define que a maioria pode tudo, exceto criar sistemas onde a igualdade, liberdade, segurança e a vida não sejam garantidas.

A propósito, em nome da participação democrática, a maioria não pode dizer que a vontade da minoria está suprimida, pois deve-se respeitar o patamar mínimo de direitos estabelecidos no contrato social.

E assim feito com a criação e promulgação da Constituição de 1988, responsável pela positivação do direito à saúde no Brasil, tal como historicamente narrado acima, fruto de um processo de redemocratização, após o fim da ditadura militar, razão pela qual entendo pela legitimação democrática do reconhecimento do direito à saúde no Brasil.

Até mesmo porque esse processo de redemocratização foi realizado com a participação dos políticos eleitos pelo povo.

Apesar dessa construção abstrata de "povo", não se pode tapar os olhos ao fato de que os políticos responsáveis por pactuar o que pode e não pode, limites, transições, foram submetidos a um processo de eleição, escolhidos pela população, sendo a única forma possível encontrada até o presente momento para gerir uma sociedade moderna, racionalmente e sem legitimação metafísica do poder.

Aliás, a legitimação democrática é o contrato social, por meio das leis democraticamente constituídas, tal como ocorrera com o direito à saúde, tanto no âmbito constitucional quanto infraconstitucional, cujos textos foram elaborados por políticos, escolhidos pela população.

Vale destacar que a democracia tende a descaracterizar e perverter em demagogia, em nome do povo, defender os próprios interesses ou de grupos menores, questões estas não solucionadas dentro do sistema representativo.

Segundo Rousseau, a única resposta possível para legitimar o exercício do poder é a do contrato social, considerado como o exercício da racionalidade da sociedade em escolher de que forma o poder será exercido, razão pela qual toda constituição moderna estabelece que todo poder emana do povo e por ele será exercido — ideia de democracia.

Rousseau já dizia que a vontade do povo e a vontade geral não se confunde com a vontade da maioria. A legitimidade democrática do poder, a legitimidade do poder dentro da lógica de Estado de Direito é garantir que os consensos do contrato social sejam permeados por argumentos da maioria e minoria e que a proteção dos direitos da minoria esteja prevista no contrato social.

E em relação aos opositores, como podem ser livres e ao mesmo tempo submetidos a leis com as quais não consentiram?

Nesse sentido, na obra "Contrato Social", Rousseau assevera que [3]:

"O cidadão consente a todas as leis, mesmo àquelas que são aprovadas sem seu apoio, inclusive aquelas que o punem quando ele ousa infringi-las. A vontade constante de todos os membros do Estado é a vontade geral; por meio dela é que se torna os cidadão livres. Quando uma lei é proposta na assembleia do povo, o que se pergunta não é precisamente se eles aprovam a proposição ou se a rejeitam, mas se está ou não de acordo com a vontade geral, que é a deles. Cada um, ao dar seu voto, profere seu parecer a respeito e do cálculo dos votos se extrai a declaração da vontade geral. Quando, portanto, opinião contrária à minha vencer, isso não prova outa coisa senão que eu me enganei e que aquilo que eu imaginava ser a vontade geral não o era. Se minha opinião particular tivesse prevalecido, eu teria feito outra coisa em vez daquilo que eu queria e então, eu não teria sido livre".

Por meio da legitimação democrática nascem as sociedades modernas, Estados de direitos liberais e que vão colocar na sua constituição os direitos básicos de todos, tanto os civis quanto os políticos.

E o principal para Rousseau, sem exceção, é que todos, por serem considerados cidadãos, possuem o direito de participar da democracia política, votar e ser votado e, assim, exercerem o direito básico de qualquer sociedade democrática.

Logo, apesar da legitimação democrática mencionada acima, acerca do reconhecimento do direito à saúde, penso que seja necessária sua potencialização, pois o grande problema da democracia sanitária no Brasil não é a solução do debate, mas a vedação ao debate, pois desde que o debate seja garantido não haveria problema democrático.


[1] https://nacoesunidas.org/conheca/historia/. Acesso em 18 de agosto de 2020.

[2] Organização Mundial da Saúde. Constituição da Organização Mundial da Saúde. Documentos básicos, suplemento da 45ª edição, outubro de 2006. Disponível em espanhol em: https://www.who.int/governance/eb/who_constitution_sp.pdf.

[3] Rousseau, Jean Jacques. O contrato Social. Lafonte, 2019, tradução Ciro Mioranza, p. 138-139.

Autores

  • é advogado, sócio e fundador do escritório Vinícius Jallageas Advocacia, mestrando em Direito Processual Civil pela USP, pós-graduado em Direito Processual Civil pela PUC-SP, em Direito Imobiliário pela FGV-SP e em Direito Médico e Hospitalar pela EPD.

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