Ameaça eleitoral

"Nem sempre há ligação do abuso de poder religioso com as hipóteses da lei"

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28 de setembro de 2020, 8h14

Um líder de determinada religião entra em contato com seus subordinados durante o período eleitoral e determina que eles digam aos fiéis em quem votar, independentemente de convicções pessoais. A abordagem não é feita apenas nos cultos religiosos, mas em grupos de Whatsapp. Nenhum centavo é gasto nessa estratégia. Isso não configuraria ameaça ao processo eleitoral?

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DivulgaçãoO advogado Mateus Barbosa Gomes Abreu

A situação hipotética é levantada pelo advogado Mateus Barbosa Gomes Abreu para demonstrar como jurisprudência e legislação estão despreparadas para lidar com a figura do abuso de poder religioso.

A necessidade de regulamentação desta hipótese específica de vulneração eleitoral é defendida por ele no livro Eleições e Religião: abuso de poder religioso nas eleições (Juruá, 2020), fruto de tese de doutorado em Direito Público em 2019, pela Universidade Federal da Bahia.

O trabalho foi citado pelo ministro Luís Felipe Salomão durante julgamento recente em que o Tribunal Superior Eleitoral decidiu que não é possível ampliar a concepção do termo "autoridade", constante do artigo 22 da Lei Complementar 64/1990, para incluir especificamente o caso do líder religioso. A hipótese fora levantada pelo relator, ministro Luiz Edson Fachin, que ficou vencido.

"Ainda que o TSE acolhesse a tese de abuso de poder eleitoral, reconhecendo esta forma enquanto modalidade autônoma, este precedente não teria o condão de suprir a necessidade de regulamentação legislativa. Em verdade, a legislação eleitoral precisa ser atualizada para contemplar e punir todo e qualquer abuso de poder que subverta a normalidade das eleições, de sorte que, mesmo à luz da atual legislação, não me parece que o mens legis dos nossos legisladores tenha sido punir algumas formas abusivas e ser condescendente com as demais", afirmou Mateus.

A tese traz detalhes de como o abuso de poder religioso ainda tem incursão tímida no ordenamento jurídico brasileiro: foi analisado, de fato, em apenas 15 de 57 julgados levantados na pesquisa. O ministro Luís Felipe Salomão usou esses dados para exemplificar como o tema pode ser abarcado pelas formas de abuso já definidas na legislação — de poder econômico ou da propaganda irregular.

"Nem sempre há ligação do abuso de poder religioso com hipóteses já definidas como ilícitas em nosso ordenamento. Em razão disto, verifica-se uma grande oscilação e imprecisão quanto a ratio decidendi subjacente ao controle jurisdicional desta modalidade de abuso", apontou Mateus, para quem a ausência de regulamentação sobre a matéria torna mais difícil a atuação da Justiça Eleitoral.

Leia a entrevista:
ConJur — Em sua opinião, a figura do abuso de poder religioso representa ameaça ao processo eleitoral?
Gomes Abreu —
Sim. Tanto as formas típicas quanto as atípicas de abuso de poder representam ameaças ao processo eleitoral e, em última instância, às próprias bases da democracia. Por isso, todas elas devem ser combatidas com igual rigor.

ConJur — Desde quando a questão do abuso de poder religioso passou a ser uma preocupação para a Justiça Eleitoral? Existe algum marco representativo?
Gomes Abreu —
O capital político das organizações religiosas é muito relevante na conjuntura atual brasileira, e não pode mais ser ignorado. Segundo pesquisa divulgada pelo Instituto Datafolha em 2017, 19% dos brasileiros que professam alguma religião levam em conta as recomendações dos seus líderes religiosos. Nas eleições de 2018, o Brasil teve um claro exemplo disto. É de conhecimento público que determinadas congregações religiosas, de grande apelo popular, detêm uma infraestrutura colossal, abrangendo a propriedade de emissoras de rádio e de televisão, bem como de instituições financeiras, gráficas e até mesmo de empresas de construção civil.  

ConJur — Inclusive com candidaturas.
Gomes Abreu —
Também é fato notório que certas matrizes neopentecostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), atuam incisivamente na esfera política. Desde a primeira eleição de um deputado federal em 1986, a Iurd só fez crescer a cada disputa eleitoral, tendo sido decisiva para que alguns senadores e diversos deputados estaduais e federais fossem eleitos. Um verdadeiro case de sucesso eleitoral, que acabou chamando a atenção dos partidos políticos, do ministério público e da justiça eleitoral.

ConJur — E na jurisprudência?
Gomes Abreu —
Além do recente julgamento do TSE, no qual o relator, ministro Edson Fachin, restou vencido, outro importante marco jurisprudencial foi o Recurso Ordinário 537003/MG, relatado pela ministra Rosa Weber, no qual se ventilou, sem fixar teses conclusivas, sobre a possibilidade de enquadramento do abuso praticado por autoridades religiosas no conceito do já tipificado "abuso de poder de autoridade", previsto no caput do artigo 22, da Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar 64/1990).

ConJur — O TSE rejeitou a criação da figura autônoma do abuso de poder religioso e indicou que essa análise pode sempre se dar pela figura do abuso de poder econômico. Sua tese conclui que ainda é tímido o enfrentamento judicial do abuso de poder religioso em território brasileiro. Existem balizas suficientes para enfrentar esse tema?
Gomes Abreu —
Falta clareza e uniformidade nos precedentes judiciais. O controle jurisdicional realizado pela Justiça Eleitoral sobre os abusos de poder em matéria religiosa ainda oscila bastante. Na obra "Eleições e Religião: abuso de poder religioso nas eleições" (Juruá – 2020), expus que os mais diversos motivos já conduziram ao acolhimento da tese de abuso de poder religioso pelas cortes eleitorais, sempre associando aos ilícitos eleitorais já existentes. Quando não é possível fazer essa associação, por se tratar de questão singular, não há condenação. É preciso regulamentar a matéria, para que não só o abuso de poder religioso, como qualquer outro tipo de abuso anômalo, seja punível pela legislação eleitoral. É com esta finalidade que procuramos contribuir para o debate, através do nosso recém-lançado livro.

ConJur — Ao citar sua tese na sessão de julgamento, o ministro Luís Felipe Salomão usou dados levantados para concluir que a efetiva discussão do abuso de poder religioso só ocorreu em 15 entre 57 julgados pesquisados. Em suma, o tema está bem acobertado dentro de outras discussões, como a do abuso de poder econômico ou propaganda eleitoral. Como avalia esse panorama?
Gomes Abreu —
De um modo geral, os Tribunais Eleitorais quando acolhem a tese de abuso de poder religioso, para que seja possível a imputação de penalidade, têm feito associação com algum dos ilícitos eleitorais já consubstanciados na lei (como o próprio abuso de poder econômico, por exemplo), ou seja, atua-se dentro da reserva legal. Contudo, nem sempre há ligação do abuso de poder religioso com hipóteses já definidas como ilícitas em nosso ordenamento. Em razão disto, verifica-se uma grande oscilação e imprecisão quanto a ratio decidendi subjacente ao controle jurisdicional desta modalidade de abuso, o que por um lado, causa insegurança naqueles que estão sub judice da Justiça Eleitoral e, por outro, revela enorme dificuldade em punir abusos praticados por autoridades ou instituições religiosas.

ConJur — Nesse contexto, o que distinguiria o abuso de poder religioso dos demais abusos de poder? Por que seria necessário fazer essa diferenciação?
Gomes Abreu —
Muito embora, não raro, o abuso de poder religioso possa ocorrer associado a outras modalidades abusivas já regulamentadas (como o abuso de poder político, econômico ou nos meios de comunicação social), com estas não se confunde, podendo ocorrer também de forma isolada. Neste particular, diferente das demais modalidades de abuso, o grande capital empregado no abuso de poder religioso é o carisma, comumente presente no líder ecumênico, e a fé de seus seguidores.

ConJur — E por que o carisma é um risco?
Gomes Abreu —
Segundo Robert J. House, em obra publicada em 1976, o carisma é um termo empregado na literatura da ciência sociológica e política, para descrever líderes que, em razão de suas habilidades pessoais — como a notória capacidade persuasiva — são capazes de desencadear efeitos extraordinários naqueles que o seguem, tais como a confiança, a lealdade, a obediência e a devoção, resultando, assim, na inspiração para que os seguidores aceitem e realizem tarefas sem hesitar ou questionar, a despeito dos seus próprios interesses ou convicções pessoais. Neste sentido, defendemos que eventual abuso, quando exercido por autoridades eclesiásticas ou pela própria congregação durante uma disputa eleitoral, tendo o propósito de adulterar as escolhas dos fiéis em função da dominação carismática, pode representar — a depender do contexto, da forma e da intensidade com que for exercido (o que deve ser aferido em análises concretas) — um inconteste abuso de poder religioso.

ConJur — O maior rigor na apuração do conteúdo econômico nas ações de entidades religiosas pode alcançar o mesmo efeito da definição da figura autônoma do abuso de poder religioso?
Gomes Abreu —
Entendo que não. Ao nosso ver, nem sempre haverá fundo econômico em abusos perpetrados por autoridades ou instituições religiosas. O abuso de poder econômico tem por característica central a cessão, efetiva ou potencial, de bens ou vantagens associadas a benefícios pecuniários, disponibilizado a terceiros, antes ou durante a corrida eleitoral, interferindo no seu livre-arbítrio e causando desequilíbrio nas competições eleitorais, representando a venalização das eleições. Contudo, imagine-se, por exemplo, que um líder estadual de determinada religião entre em contato com os seus subordinados, determinando que estes incutam coativamente e de forma ostensiva nos seus respectivos fiéis em quem votar durante o período eleitoral, ao arrepio das convicções pessoais deles, abordando-os não só no culto, como também fora dele (como, por exemplo, através de grupos de whatsapp). Nesta hipótese não há, ao menos a priori, nenhum emprego excessivo de recursos pecuniários, embora constitua uma prática abusiva.

ConJur — Sua tese defende que o abuso de poder religioso seja reconhecido enquanto figura autônoma. Uma definição legislativa parece ser pouco provável basta ver a repercussão que o julgamento causou. Acredita que seria possível ao TSE, no enfrentamento da matéria, fazer essa definição, como foi proposto?
Gomes Abreu —
Em nosso ponto de vista, embora seja possível, em algumas situações concretas, a imputação de sanções eleitorais mediante a associação da prática abusiva perpetrada por agentes ou instituições religiosas com algum ilícito já tipificado, nem sempre isso é possível. Por isso, ainda que o TSE acolhesse a tese de abuso de poder eleitoral, reconhecendo esta forma enquanto modalidade autônoma, este precedente não teria o condão de suprir a necessidade de regulamentação legislativa. Em verdade, a legislação eleitoral sobre abusos eleitorais precisa ser atualizada, para contemplar e punir todo e qualquer abuso de poder que subverta a normalidade das eleições, de sorte que, mesmo à luz da atual legislação, não me parece que o mens legis dos nossos legisladores tenha sido punir algumas formas abusivas e ser condescendente com as demais, o que abarcaria, evidentemente, o abuso de poder religioso.

ConJur — Dentre as preocupações dos ministros do TSE quanto à definição do abuso de poder econômico está a questão subjetiva que o tema carrega e a possibilidade de ingerência no discurso religioso. Como o Judiciário poderia, em tese, tratar da matéria?
Gomes Abreu —
É preciso ter em conta que não é toda autoridade eclesiástica e nem toda instituição religiosa que pratica abusos em contextos eleitorais, da mesma forma que, por outro lado, não se pode generalizar e afirmar que todo fiel é incauto e submisso às vontades da congregação, tendo as suas vontades anuladas. Em outras palavras, da mesma forma que não se pode inferir que o manejo abusivo de poder carismático é inerente a toda e qualquer organização religiosa (bem como seus agentes), posto que muitas delas atuam como vertente da sociedade civil organizada, defendendo interesses de parcela da população que, não raro, é sonegada pelo Estado. Aqui, as instituições religiosas podem representar verdadeiros agentes de transformação social, sobretudo nos grandes centros urbanos. Dito isso, é importante registrar que não é qualquer irregularidade ou ilicitude ordinária que tem o condão de deslegitimar o resultado de uma eleição, e os nossos Tribunais atuam neste sentido.

ConJur — Teria de ser bem tipificado, portanto.
Gomes Abreu —
Somente em situações excepcionais, resultante de contextos em que se vislumbram práticas extremamente graves, comprovadas com provas robustas, é que há legitimidade para a imputação de sanções mais contundentes, como a cassação de mandatos e declarações de inelegibilidade. A identificação de um abuso desta magnitude somente será desvelada a luz do caso concreto, o que cria um dever de agir com elevada procedência, por parte dos nossos tribunais. Contudo, a carência de regulamentação do abuso de poder religioso (ou, de modo mais amplo, de disciplina jurídica que puna qualquer abuso apto a corromper o pleito eleitoral) torna mais difícil a atuação da justiça eleitoral, que tem que  se valer de esforços interpretativos e identificar conexões entre os abusos praticados por autoridades religiosas ou instituições e outras modalidades de ilícitos eleitorais já disciplinadas, para que seja possível a imputação de sanções. Por isto que defendo, neste sentido, que a regulamentação é um importante ponto de partida, para conferir legitimidade às decisões eleitorais nesta temática.

ConJur — Outra preocupação que surgiu no julgamento foi: por que só o abuso de poder religioso? O ministro Luiz Edson Fachin explicou que, em princípio, a tese seria aplicável a outros tipos de abuso de poder. "As formas de poder são múltiplas e independentes, e sua aplicação ilegítima deve ser recusada pela Justiça Eleitoral". Existe algum risco em estender a interpretação em matéria sancionadora dessa forma?
Gomes Abreu —
Neste ponto, me parece acertada a afirmação do ministro Edson Fachin. A interferência abusiva e nociva ao pleito eleitoral pode decorrer a partir de diversas formas abusivas de exercício do poder, e todas elas podem prejudicar a normalidade do certame eleitoral. Por esta razão é que defendo que, não obstante novas formas abusivas de burlar as bases das eleições possam surgir — como o abuso de poder religioso, que estamos discutindo — e que estas eventualmente possam guardar caracteres ímpares, distintos entre si, o que deve estar em pauta é que todas elas sejam passíveis de punição. Contudo, enxergo que, com base na atual sistemática legislativa eleitoral, em se tratando de casos onde surjam discussões sobre formas atípicas ou anômalas de abuso de poder, só é possível a imputação de penalidades se estas figurarem em concorrência (simultaneidade/concomitância) com alguma das modalidades já tipificadas.

ConJur —Religiões e crenças são muito bem difundidas também entre membros do Judiciário. Muitos são fiéis fervorosos, têm temática religiosa no gabinete, fazem referências religiosas em julgamentos, etc. Isso poderia criar algum conflito ao julgar o abuso do poder religioso?
Gomes Abreu —
Como já dizia Aristóteles, “o homem é um animal político”. Daí, naturalmente vão surgindo associações entre os homens e as instituições pelos mais diversos motivos, passando desde o propósito político, ao cultural, desportivo e, da mesma forma, o religioso. A Constituição Federal assegura aos indivíduos a liberdade de crença e de consciência, o que representa a prerrogativa de crer em alguma entidade, e expressar sua crença, como também de não crer em nada, e expressar sua descrença (como no caso do ateísmo ou agnosticismo). O próprio preâmbulo da atual Constituição revela um constituinte crente em Deus, já que roga por sua proteção para aquele ato de promulgação. Não há qualquer sorte de atentado a laicidade estatal quanto a isso, como, aliás, já decidiu o STF no julgamento da ADI 2.076. Da mesma forma, nossos julgadores são, antes de terem uma função pública, indivíduos que tem as suas vivências, angústias e experiências de vida peculiares, sendo estes fatos decisivos na formação do seu caráter e de sua personalidade. Entretanto, ao vestir a toga, o juiz deve se despir de suas convicções pessoais e julgar com base nos fatos dos autos, dentro dos limites impostos pela Constituição Federal e pela legislação vigente, evitando, assim, subjetivismos ilegítimos.

ConJur — Que outros tipos de abuso de poder mereceriam tipificação?
Gomes Abreu —
Além do abuso de poder religioso, a doutrina sinaliza para outras formas através das quais podem ser praticados abusos de poder no contexto eleitoral que merecem reprimenda. Frederico Franco Alvim, por exemplo, em sua primorosa obra "Abuso de Poder nas Competições Eleitorais", faz referência a outras possíveis formas anômalas de abuso, tais como: abuso de poder coercitivo (resultante do emprego de violência física ou grave ameaça psicológica perante o eleitor) ou abuso de poder no universo digital (onde, a título ilustrativo, estariam situadas as "fake news"). Contudo, mais importante do que a forma através da qual são perpetrados os abusos eleitorais, são as consequências que os infratores devem estar submetidos. Em outras palavras: mais importante do o reconhecimento autônomo de cada uma destas modalidades abusivas, é a abertura legislativa, para autorizar que todo tipo de prática abusiva que tenha a finalidade de subverter a regularidade das eleições e usurpar as vontades políticas individuais seja rigorosamente punida, até mesmo pelo fato de que, dada a complexidade e o poder criativo dos seres humanos, sempre surgirão novas formas de atentar contra a legitimidade das disputas eleitorais.

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