Opinião

Efêmeras digressões sobre o acordo de não persecução penal — Parte 1

Autor

  • João Linhares

    é promotor de Justiça em Mato Grosso do Sul; mestre em Garantismo e Processo Penal pela Universidade de Girona-Espanha; especialista em Direito Constitucional e Direitos Fundamentais pela PUC-RJ.

27 de setembro de 2020, 12h13

Há pouco tempo, exsurgiu a Lei nº 13.964, de 24/12/2019, que recebeu o epíteto de lei/pacote "anticrime”, promovendo significativas modificações no espectro jurídico, sobretudo na esfera processual penal, na execução da pena, bem como implicou a majoração de reprimendas para alguns tipos penais e a exigência de representação da vítima ou de seu representante, em algumas situações, para o delito de estelionato. Entre as múltiplas alterações, sobressaem-se a criação do juiz das garantias, a reafirmação e o robustecimento do sistema acusatório no processo penal, consagrado no artigo 129, inciso I, da Constituição Federal, a regulação da cadeia de custódia, a reestruturação da colaboração premiada, o revigoramento do julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição e instituiu, por meio de lei em sentido estrito, o acordo de não persecução penal (ANPP), que antes estava asilado em resolução do Conselho Nacional do Ministério Público, razão pela qual muito se contestava a sua constitucionalidade formal.

Carrada desse noviço diploma legislativo — juiz das garantias, novas regras para o arquivamento de inquérito policial, a proibição do magistrado decidir em processo no qual acessou provas inadmissíveis, o relaxamento das prisões, caso não ocorra a audiência de custódia em até 24 horas  encontra-se suspensa, sine die, pelo Supremo Tribunal Federal, por força da medida cautelar efundida em quatro ações diretas de inconstitucionalidade ADIs nºs 6.298, 6.299, 6.300 e nº 6.305 que foram agrupadas, todas sob a relatoria do ministro Luiz Fux.

A Corte Suprema manteve, in totum, a parte da Lei nº 13.964 que rege o acordo de não persecução penal, acrescentado no artigo 28-A do Código de Processo Penal, que passou a prescrever que, não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: I reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; II renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; III prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do artigo 46 do Código Penal; IV pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do artigo 45 do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou V cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

O legislador refutou o ANPP nas seguintes hipóteses: I se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei; II se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; III ter sido o agente beneficiado nos cinco anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e IV nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.

À sua hora, a Lei nº 13964/2019 ainda explicitou que o ANPP será formalizado por escrito e firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor e deverá contar com a homologação judicial, que ocorrerá após o juiz averiguar a voluntariedade e legalidade do "negócio jurídico".

Cumpre registrar que, diante dos parcimoniosos lindes deste artigo, não se tem a veleidade de exaurimento do ANPP, convindo apenas abordar os limites de sua abrangência no tempo, a missão do juiz ao apreciar a homologação e os eloquentes trunfos ínsitos ao presente instituto.

Nessa ordem de ideias, afigura-se imprescindível versar sobre a incidência do acordo de não persecução penal (ANPP) aos processos com denúncia já recebida. O tema é percuciente e controverso, estando ainda em aberto na jurisprudência pátria, até porque se cuida de instituto incipiente, neófito no nosso ordenamento jurídico.

Importa notar, no concernente a este tópico, que o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais (CNPG) editou o Enunciado nº 20, estabelecendo que não se revela viável o aludido acordo aos processos que contenham ação penal recebida.

Com efeito, não se pode negar que a própria Lei nº 13.964/2019 preceitua que a avença cabe apenas para o investigado, ex vi da coeva dicção incrustada no artigo 28-A do CPP. Deveras, o Congresso Nacional restringiu, deliberadamente, durante a tramitação do projeto de lei, a aplicação do ANPP aos processos em andamento, entretanto, ao fazê-lo, contrastou, de modo hialino, com cláusula pétrea abrigada no artigo 5º, inciso XL, da Carta Política, com o artigo 9º, in fine, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e com o artigo 15, nº1, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, isto é, vulnerou o princípio que assegura a retroação da lei penal mais benevolente ao increpado.

Ora, basta rememorar que o Supremo Tribunal Federal consagrou, por ocasião da vinda a lume da Lei nº 9.271/1996, que alterou a redação do artigo 366 do CPP, o posicionamento de que a norma penal com apanágio híbrido, ou seja, aquela que ostenta disposições processuais e substantivas, é balizada pelo seu conteúdo material, vale dizer, prepondera, para o escopo de aplicação dela a fatos pretéritos ou não, saber se o bojo penal da lei é mais vantajoso ao acusado. Caso se lobrigue novatio legis in mellius, ela recairá, em sua totalidade, sobre os fatos que lhe são anteriores, alcançando os feitos em andamento. Portanto, segundo o Excelso Pretório, a norma mista é incindível, de sorte que não se admite a aplicabilidade de apenas uma parte dela (HC 83864, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, julgado em 20/04/2004 e RHC 105730, Relator: Minº Teori Zavascki, 2ª Turma, julgado em 22/4/2014, entre outros).

No caso, é imperioso realçar que o artigo 28-A, §13, do CPP explicitou que o cumprimento integral do acordo de não persecução penal redunda na extinção da punibilidade do agente. Nessa toada, tem-se, iniludivelmente, instituto de direito material (causa extintiva da punibilidade, com consequente reflexo sobre a pretensão punitiva do Estado), cujo cerne emerge evidentemente mais benéfico ao acusado e, por esse escólio, retroage, consoante rezamm o artigo 5º, inciso XL, da Carta Magna e os referidos pactos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Exatamente nesse eito, na parte que toca, o STF sinalizou, no aresto do IP nº 1.055QO/AM, relator ministro Celso de Mello, julgado em 24/4/1996, Pleno.

Convém ressaltar que a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal adotou tal concepção no Enunciado nº 98, verbis:

"É cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes do trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais, devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos do artigo 28-A do CPP, quando se tratar de processos que estavam em curso quando da introdução da Lei nº 13.964/2019, conforme precedentes, podendo o membro oficiante analisar se eventual sentença ou acórdão proferido nos autos configura medida mais adequada e proporcional ao deslinde dos fatos do que a celebração do ANPP. Não é cabível o acordo para processos com sentença ou acórdão após a vigência da Lei nº 13.964/2019, uma vez oferecido o ANPP e recusado pela defesa, quando haverá preclusão" (sem grifos no original).

Bem é de ver-se que, a despeito da celeuma instalada sobre tal ponto, os precedentes do Supremo Tribunal Federal hão de ser naturalmente contemplados e respeitados para o deslinde da questão, mesmo porque o artigo 926 do Código de Processo Civil vindica a coerência e a integridade, exatamente para valorizar, com a primeira, a igualdade de apreciação do caso e de tratamento, ao passo que a segunda "é dupla­men­te com­pos­ta, con­for­me Dworkin: um prin­cí­pio legis­la­ti­vo, que pede aos legis­la­do­res que ten­tem tor­nar o con­jun­to de leis moral­men­te coe­ren­te, e um prin­cí­pio juris­di­cio­nal, que deman­da que a lei, tanto quan­to pos­sí­vel, seja vista como coe­ren­te nesse sen­ti­do. A integridade exige que os juí­zes construam seus argu­men­tos de forma inte­gra­da ao con­jun­to do Direi­to, constituindo uma garan­tia con­tra arbi­tra­rie­da­des inter­pre­ta­ti­vas" e legiferantes (Streck, Lenio Luiz. "Jurisdição, fundamentação e dever de coerência e integridade no novo CPC", ConJur).

É cogente que o legislador mantenha a coerência e a integridade dos dispositivos que elabora. Não foi, contudo, o que sucedeu ao limitar-se o ANPP apenas para os indiciados, excluindo-se indevidamente os acusados. O discrímen assoma flagrantemente desmesurado e não encontra adminículo sequer liliputiano, porquanto dois pilares comezinhos da hermenêutica esboroam o nó górdio: ubi eadem ratio ibi idem jus (onde houver o mesmo fundamento haverá o mesmo direito) e ubi eadem legis ratio ibi eadem dispositio (onde há a mesma razão de ser, deve prevalecer a mesma razão de decidir).

Dentro desse cenário, suasório burilar que a Corte Constitucional assentou, por ocasião da Lei nº 9.099/1995 que inaugurou no sistema jurídico vernáculo o plea bargain, através da transação penal e da suspensão condicional do processo que tais institutos, por preverem a extinção da punibilidade dos réus, configuravam lex mitior e deveriam retroagir, segundo acórdão exarado pelo Pleno do STF, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.719, julgada em 18/6/2007, conferindo interpretação conforme ao artigo 90 do referido diploma legiferante, que dava ensanchas a uma vertente exegética que impedia a aplicação da lei do juizado aos processos penais com instrução já principiada.

O reportado tribunal reputou que tal previsão deveria ser interpretada em congruência com o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica e que, dessa forma, dever-se-ia excluir, sem redução de texto, com eficácia ex tunc, da norma constante no artigo 90 da Lei nº 9099/1995, o sentido que impeça a aplicação de normas de direito penal, com conteúdo mais favorável ao imputado, aos processos com instrução já iniciada à época da vigência desse Diploma Legislativo. Está-se, nessa contextura, diante de vicissitude assaz similar, no imanente ao cabimento do ANPP aos processos em trâmite, e cujo desfecho há de ser idêntico, para que o sistema seja genuinamente íntegro e coerente.

Um desenho prodrômico dessa compreensão está propagando-se na 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que expressou a retroação do ANPP para englobar os processos em andamento. Confira:

"AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. FRAUDE À LICITAÇÃO. FALSIDADE IDEOLÓGICA. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. PACOTE ANTICRIME. ART. 28-A DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. NORMA PENAL DE NATUREZA MISTA. RETROATIVIDADE A FAVOR DO RÉU. NECESSIDADE DE INTIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DECISÃO RECONSIDERADA. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO.
1. É reconsiderada a decisão inicial porque o cumprimento integral do acordo de não persecução penal gera a extinção da punibilidade (artigo 28-A, § 13, do CPP), de modo que como norma de natureza jurídica mista e mais benéfica ao réu, deve retroagir em seu benefício em processos não transitados em julgado (artigo 5º, XL, da CF).

2. Agravo regimental provido, determinando a baixa dos autos ao juízo de origem para que suspenda a ação penal e intime o Ministério Público acerca de eventual interesse na propositura de acordo de não persecução penal, nos termos do artigo 28-A do CPP" (introduzido pelo pacote "anticrime" – Lei nº 13.964/2019)  AgRg no HC 575395 / RN, Relator Ministro Nefi Cordeiro, Órgão Julgador T6 6ª Turma, Data do Julgamento: 8/09/2020. Data da Publicação/Fonte DJe: 14/9/2020.

Crê-se, sob essa joeira, que a restrição da proposta do acordo de não persecução penal aos processos com denúncia já recebida deve ser prontamente repelida, uma vez que conflita com o princípio da retroatividade da lei penal mais auspiciosa ao réu. A solução está no citado precedente da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.719 STF, Pleno.

Identicamente, sob o prisma do controle de convencionalidade, a posição não destoa, pois a Corte Interamericana de Direitos Humanos, intérprete derradeira do Pacto de São José da Costa Rica, expendeu acroase, no Caso Ricardo Canese Vs. Paraguai, 2004, com supedâneo na parte final do artigo 9º da Convenção, a respeito do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica ao acusado:

"Dicha norma debe interpretarse de buena fe, conforme al sentido corriente que haya de atribuirse a los términos del tratado en el contexto de éstos y teniendo en cuenta el objeto y fin de la Convención Americana, cual es la eficaz protección de la persona humana, así como mediante una interpretación evolutiva de los instrumentos internacionales de protección de derechos humanos.
En este sentido, debe interpretarse como ley penal más favorable tanto a aquella que establece una pena menor respecto de los delitos, como a la que comprende a las leyes que desincriminan una conducta anteriormente considerada como delito, crean una nueva causa de justificación, de inculpabilidad, y de impedimento a la operatividad de una penalidad, entre otras. Dichos supuestos no constituyen una enumeración taxativa de los casos que merecen la aplicación del principio de retroactividad de la ley penal más favorable
. (sem grifos no original)

Continua na Parte 2

Autores

  • é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul, mestre em Garantismo e Processo Penal pela Universidade de Girona (Espanha) e pós-graduado em Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais pela PUC-RJ.

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