Opinião

Efêmeras digressões sobre o acordo de não persecução penal — Parte 2

Autor

  • João Linhares

    é promotor de Justiça em Mato Grosso do Sul; mestre em Garantismo e Processo Penal pela Universidade de Girona-Espanha; especialista em Direito Constitucional e Direitos Fundamentais pela PUC-RJ.

27 de setembro de 2020, 14h11

Continuação da Parte 1

Outra perquisição palpitante é desvendar se o ANPP alcançaria processos com sentença prolatada. A esse respeito, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no mencionado caso, frisou: "Cabe destacar que el principio de retroactividad se aplica respecto de las leyes que se hubieren sancionado antes de la emisión de la sentencia, así como durante la ejecución de la misma, ya que la Convención no establece un límite en este sentido".

Infere-se, entretanto, que, em contributo à segurança jurídica, parece pertinente sustentar que a melhor resolução seria modular os efeitos, mediante interpretação conforme, para fazer incidir o ANPP aos processos que, quando da publicação da Lei nº 13.964/2019, ainda não estivessem sentenciados com condenação do imputado. E tal limite temporal é apropriado, porque até essa etapa há a denominada persecutio criminis in judicio, com colheita de provas e análise dos fatos produzidos e apurados durante a instrução. Após esgotar-se a atuação jurisdicional em primeira instância, com eventual condenação do increpado, a persecução encontra-se definitivamente encerrada, sob tal óptica, e, nesse fanal, descabe azo à proposta de acordo que vise a obstá-la. O instituto do ANPP, por consectário da existência de sentença condenatória, acaba sendo prejudicado e esvaziado, dado que, nesse momento, o processo penal já não mais condiz com a finalidade para a qual aquele foi concebido. Do contrário, desvirtuar-se-iam a sua natureza e o seu desiderato.

Assim, o ANPP retrotrai aos processos ainda não sentenciados, na data da publicação da citada lei "anticrime" (aplicabilidade imediata, ante a intelecção do artigo 5º, §1º, da Constituição Federal), contanto que colmatados os demais requisitos dele. Àqueles que, em referida quadra, já estiverem nos tribunais não são apanhados. Nesse ponto, a bússola hermenêutica deve ser a mesma que foi empreendida para solver a mesma dúvida quanto à suspensão condicional do processo (artigo 89 da Lei nº 9.099/1995). O Excelso Pretório decidiu, tanto pelo Pleno, como por ambas as turmas, que os feitos que contavam com sentença, no átimo da publicação da Lei dos Juizados Especiais Criminais, não eram abarcados pela retrotração da norma — STF, HC 74.305-SP (Plenário), Rel. Minº Moreira Alves, decisão 9.12.96; HC 74.856-SP , Rel. Minº Celso de Mello, "DJ" 25.4.97; HC 74.498-MG, Rel. Minº Octavio Gallotti, "DJ" 25.4.97 e HC 75.518-SP, Rel. Ministro Carlos Velloso, 02.05.2003.

Bem recentemente, o STF, no HC nº 191.464, na pena do ministro Roberto Barroso — que invocou os precedentes do HC nº 186.289, relatora ministra Cármen Lúcia, e do ARE 1171894, relator ministro Marco Aurélio — externou a impossibilidade de fazer-se incidir o ANPP, quando já existente condenação, conquanto ela ainda esteja suscetível à impugnação.

Ademais, para além da quadratura meramente jurídico-constitucional, o alcance da negociação jurídica aos processos em tramitação é muito mais profícuo à sociedade e especialmente à vítima, haja vista que o desenrolar do feito, até final trânsito em julgado (quando ocorre a execução da pena), mostra-se bastante vagaroso e a resposta do Estado amiúde sobrevém serôdia — isso quando não sucede a prescrição pelo decurso de lapso temporal exauriente. Por outro lado, mencione-se, no mais, a economia de gasto do erário e das partes com todo o aparato de justiça até a ocorrência da preclusão máxima.

Acresça-se ainda que, celebrado o acordo de não persecução penal, o investigado/acusado assume total e circunstancialmente a culpa pela infração penal perpetrada, e, desde já, fica claro quem foi o autor dos fatos. Há, portanto, reflexamente, no mínimo, uma "condenação moral", uma "resposta ética", com o reconhecimento do erro pelo infrator.

Demais disso, uma das condições fulcrais para a avença é a reparação do dano ao ofendido. Dês que homologado o negócio jurídico travado entre Ministério Público e infrator, este passa a cumprir as cláusulas do acordo, isto é, as "sanções" de modo rápido e consentâneo à gravidade do delito engendrado. Nessa trilha, a vítima obterá a reparação do dano experimentado de forma muito mais ágil e as disposições negociadas começam a ser executadas, segundo o estipulado no pacto, com celeridade. E esse panorama e desfecho, máxime nos casos em que existe uma vítima determinada, geralmente é um bálsamo para ela e para a sociedade, gerando a almejada pacificação e sensação de justiça.

Obstaculizar o ANPP, sob a singela égide de que o processo está em andamento, merece reproche, porque consubstancia enaltecer um modelo totalmente anacrônico, ultrapassado e ineficiente de Direito Penal e processual, lastreado em uma tramitação excessivamente burocrática e absolutamente letárgica. Nesse norte, soa convincente a advertência de Rui Barbosa: "Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta" (Obras Completas, V. 48, t. 2, 1921). Realmente, com uma resposta veloz e proporcional à infração praticada pelo agente, diminui-se a impressão de impunidade, até agora tão marcante no nosso país.

Deve-se gizar que o acordo de não persecução penal, como alhures asseverado, requesta a homologação pela autoridade judiciária competente para ser eficaz. A pergunta que não cala é: até onde o juiz pode avançar? Ao magistrado incumbe o importantíssimo controle da regularidade do ato e sua compatibilidade com a lei. O que desbordar para além disso estará maculado e timbrado com eiva de nulidade, quer por intromissão indevida no talante das partes, quer por tisnar o dever de imparcialidade (neutralidade), quer por invadir atribuição outorgada pela Constituição ao órgão ministerial. Essa inferência, no-la supedita a própria dialética, em outros termos: o sistema acusatório, impregnado no cerne da Constituição da República, mormente no artigo 129, inciso I, proclama a separação entre os papéis reservados ao julgador, ao Parquet e à defesa, espraiando densidade e efeitos que não podem ser desprezados pelo exegeta.

A doutrina, na segura voz de Ferrajoli, preleciona que "a separação entre as funções de acusar, defender e julgar é o signo essencial do sistema acusatório de processo penal, porquanto a atuação do Judiciário na fase pré-processual somente se revela admissível com o propósito de proteger as garantias fundamentais dos investigados" (FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón Teoría del Garantismo Penal. 3ª ed., Madrid: Trotta, 1998. p. 567).

E a Corte Europeia de Direitos Humanos tem exteriorizado que "as autoridades judiciais são obrigadas a exercer a máxima discrição em relação aos casos com os quais lidam, a fim de preservar sua imagem como juízes imparciais" (Caso Kyprianou vs. Chipre – 2005).

Assim é que, uma vez placitado pelo Judiciário, as cláusulas da avença firmada entre o Ministério Público e o investigado/acusado não podem ser alteradas, per si e ex officio, pelo juízo de execução, exceto quando houver, por nova repactuação, explícita aquiescência das partes que travaram a negociação.

Nessa perspectiva, não é lídimo ao juiz de execução do acordo indicar a entidade pública ou de interesse social a ser contemplada pela prestação pecuniária suportada pelo autor da infração penal. Tal atribuição concerne exclusivamente ao Ministério Público (sistema acusatório, artigo 129, inciso I, Constituição Federal), precisamente porque integra a proposta que só pode ser feita pelo órgão ministerial. E tampouco poderia ser diferente, pois a negociação jurídica é estabelecida unicamente entre as partes (MP e investigado/acusado — defesa), que gozam de autonomia da vontade (liberdade para contratar e dispor), sem a participação da autoridade judiciária, nesta fase, à qual incumbirá perscrutar estritamente a legalidade e espontaneidade do pacto, sendo-lhe vedado estipular quaisquer outras condições subjacentes ou complementares, sob pena de esboroar e de tisnar o primado da imparcialidade e de invadir seara de competência constitucional exclusiva do Parquet.

Nesse vértice, traz-se à ribalta excerto insculpido na medida cautelar nas ações diretas de inconstitucionalidade algures retratadas, deferida pelo ministro Luiz Fux:

"A despeito do que argumentado pela parte autora, a autonomia do membro do Ministério Público (órgão acusador, por essência) permanece plena, vez que ao magistrado cabe, no máximo, não homologar o acordo. É dizer: o magistrado não pode intervir na redação final da proposta em si estabelecendo as cláusulas do acordo (o que, sem dúvidas, violaria o sistema acusatório e a imparcialidade objetiva do julgador). Ao revés, o juiz poderá somente (a) não homologar ou (b) devolver os autos para que o parquet – de fato, o legitimado constitucional para a elaboração do acordo – apresente nova proposta ou analise a necessidade de complementar as investigações ou de oferecer denúncia, por exemplo (artigo 28-A, §8°)" (grifos do autor).

Interessante pontuar que, sendo o acordo de não persecução penal cabível para infrações penais com pena mínima inferior a quatro anos, desde que preenchidos os demais pressupostos já elencados no início deste ensaio, a sua comparação com a suspensão condicional do processo (artigo 89 da Lei nº 9.099/95, que exige reprimenda base igual ou inferior a um ano), quanto à gradação da censurabilidade das cláusulas erigidas na avença, deve ser muito bem aferida.

Imagine-se a seguinte conjectura, com as respectivas penas mínimas: I — o agente perpetrou o crime de embriaguez ao volante (artigo 306, da Lei nº 9.503/1997, seis meses de detenção); II — outro infrator incorreu em porte ilegal de arma de fogo de uso restrito (artigo 16 da Lei nº 10.826/2003, três anos de reclusão), resistência (artigo 329 do Código Penal, dois meses de detenção) e desacato (artigo 331 do Código Penal, seis meses de detenção). No primeiro exemplo, pode dar-se o ANPP ou a suspensão condicional do processo; no segundo, só ANPP. Mas a abissal discrepância entre a pena mínima do primeiro caso com aquela resultante das somas do segundo (seis meses para três anos e oito meses) impele a tratamento desigual. O Ministério Público deve atentar-se muito a este ponto ao elaborar as cláusulas do negócio jurídico.

À vista desarmada, percebe-se que, em regra, o ANPP não deve conter idênticas condições às do sursis processual e nem é mais favorável do que este. Logo, a reprimenda, em tese, dos crimes perpetrados pelos infratores que farão jus ao ANPP poderá ser muitas vezes maior do que os casos sopesados na suspensão condicional do processo. No protótipo do parágrafo transacto, mais de seiis vezes.

Nessa tessitura, dessume-se que as condições insertas no ANPP só poderão ser brandas como as da suspensão condicional do processo nas hipóteses em que a infração penal apurada (ou a somatória dela) tiver pena mínima igual ou inferior a um ano. Todavia, quando o escarmento for superior a tal patamar, o ANPP deve observar, gradualmente, o aumento da pena cominada no tipo penal, a gravidade concreta da infração e, por consequência, colimar a maior repreensão à conduta do agente, mediante cláusulas negociais que sejam mais rígidas. Não tem viço, nesse elucubrar, a corrente doutrinária que esposa que o ANPP é mais benéfico ao réu do que a suspensão condicional do processo, pois, além dele exigir a confissão de culpa pelo infrator, seus codicilos hão de ser patentemente mais drásticos.

Posto isso, mister que as condições propostas pelo Ministério Público no acordo de não persecução penal sejam, em casos tais, muito mais contundentes e exigentes do que as do sursis processual, considerando-se a gravidade concreta do fato apurado e as circunstâncias da infração penal, conforme se deflui do próprio princípio da proporcionalidade (também sob o enfoque da vedação de proteção deficiente) e da "individualização da pena".

Por fás e por nefas, nessa linha de raciocínio, considera-se extremamente alvissareiro o novel introito, na nossa ordem jurídica, do acordo de não persecução penal, já que ele poderá, se bem manejado, ter efeitos bastante positivos, com o condão de: I — prestigiar a eficiência e a agilidade na resposta do Estado para as infrações penais nas quais avulta cabível; II — assegurar à vítima e ao Estado pronta indenização pelo dano experimentado; III — reduzir o dispêndio do erário com a prolixa, lenta e cara tramitação do processo; IV — auxiliar a aliviar a carga do Judiciário com o término e redução de um número expressivo de processos e autos; V — exigir que o infrator admita o seu erro e, em epílogo; e VI — garantir que as “reprimendas”/condições estipuladas no pacto sejam cumpridas pelo increpado no tempo razoável, certo e adequado.

Destarte, à luz do explanado, depreende-se que há notáveis avanços propiciados pelo ANPP ao sistema judicial como um todo, de tal arte que, porventura ele seja explorado de maneira escorreita, encerrará potencial para produzir expressivo e lépido impacto ao subsidiar a conformação de um novo paradigma na seara processual penal e, por corolário, em muito favorecerá a sociedade e o Estado a enfrentar, prontamente, sem dilações indevidas e com minoração de despesas públicas, as infrações penais nas quais ele se afigura pertinente.

Autores

  • é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul, mestre em Garantismo e Processo Penal pela Universidade de Girona (Espanha) e pós-graduado em Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais pela PUC-RJ.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!