Opinião

As redes sociais, a modificação do comportamento na sociedade e as fake news

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26 de setembro de 2020, 9h37

Na lógica de funcionamento das redes sociais, foram desenvolvidas estratégias de recompensa cerebral para estimular os usuários a ficarem mais tempo conectados a elas. Esse assunto não é nada novo, já que está ligado à época de criação das redes. O tema vem sendo descrito por autores como Jaron Lenier [1], um ex-cientista da computação do Vale do Silício, que depois se tornou ativista contra as redes sociais e sua forma de manipulação do comportamento.

Esse mecanismo de recompensa inserido nas redes sociais faz com que as pessoas obtenham pequenas doses de dopamina, um neurotransmissor do bem-estar que é produzido, por exemplo, quando nos sentimos entusiasmados pela validação de outros, que é mais ou menos o que se dá quando temos os nossos posts curtidos, compartilhados, respondidos, etc. nas redes sociais. Essa estratégia de marketing já foi até mesmo objeto de reconhecimento público pelo primeiro presidente xxxxx do Facebook, que admitiu ser necessário conceder pequenas doses de dopamina para os usuários continuarem conectados.

Além disso, a lógica de funcionamento das redes sociais para ficarmos mais tempo online é oferecer sugestões customizadas de conteúdo. Esta técnica é propiciada pelos algoritmos, que neste caso funcionam como um editor do feed de notícias e vão monitorando os usuários em relação ao perfil dos seus cliques e palavras-chave que digitam. Assim, eles vão colhendo dados sobre as preferências das pessoas, aprendendo mais sobre elas e refinando cada vez os direcionamentos de conteúdo.

Claro que isso tem um lado bom, ao fornecer aos usuários os posts que teoricamente mais estariam de acordo com os seus gostos, com seus perfis de visualização. Mas ao fazer essa constante avaliação e sugestionamento de conteúdo, os algoritmos vão também promovendo as denominadas bolhas informacionais, ou seja, retroalimentando para os usuários um circuito de notícias de vieses parecidos, que no final das contas compõem uma visão de mundo mais demarcada e menos plural.

Isso acarreta num empobrecimento cultural, numa redução da visão de mundo, com provável diminuição da empatia, alteridade e aumento de formas de intolerância. Assim, uma tendência política qualquer, por mais radical que seja, será ainda mais reforçada e estimulada com a formação de comunidades on-line de determinados vieses políticos, com grande tendência ao sectarismo.

Como disse Bauman (2007, p. 94), a falta da "perturbadora necessidade de traduzir diferentes universos de significado" gera um "horror cada vez maior da perspectiva de se confrontarem cara a cara com estranhos".

Com isso, complica-se ainda mais o entendimento entre as pessoas, fragilizando-se as formas de comunitarismo e solidariedade, diminuindo-se os consensos que permitiram maiores avanços civilizatórios.

Há também outra forma de potencialização das bolhas informacionais, que ocorre de uma forma perversa, pois como descreve Lanier (2018), os algoritmos das redes sociais estão em busca dos resultados mais rápidos, ou seja, os que geram mais reações em menos tempo. O problema é que elas tendem a ocorrer em resposta aos conteúdos mais sensacionalistas, que provocam reações negativas, como a ira, irritação, indignação, etc., já que os estímulos positivos são mais lentos de ser construídos e geralmente são mais serenos, não tendo uma resposta tão impulsiva.

Assim, os algoritmos captam mais esses estímulos negativos, ao entender que eles são mais "virais", dando a eles mais visualização, amplificando-os.

Há nisso tudo uma certa perda do livre arbítrio, pois em razão da curiosidade, necessidade de validação pessoal (dopamina) e de engajamento político (de visão de mundo), somos sugestionados a sempre dar uma conferida nas redes, consumindo mais do mesmo, tendo diminuídos os nossos espaços de escolha e raciocínio crítico.

Parece então que são marcantes as diferenças do mercado de entretenimento e da propaganda tradicional para o que se tem agora com as redes sociais.

Assim, é possível cravar que os algoritmos, ao potencializar o lucro das empresas, acabaram por alterar o comportamento social, dentro e fora das redes sociais.

Tudo o que foi dito ganha cada vez mais potência com o crescimento do fenômeno das fake news.

Claro que a mentira não é coisa nova. Aliás, não só ela é descrita em inúmeros relatos teológicos, como é permitida em algumas situações por esses mesmo textos sagrados [2].

Mas a mistura da mentira com a enorme difusão propiciada pela internet, especialmente nas redes sociais e pelos serviços de mensageria privada como o WhatsApp, tem alterado o rosto das sociedades em geral.

Então, diante das formas de manipulação do comportamento pelas redes sociais antes descritas, somadas às fake news e ao fato de os usuários serem fonte e disseminadores de conteúdo, verdadeiras mídias individuais, sem verificação editorial, passamos a ter um produto praticamente inflamável.

O fenômeno das fake news é um dos maiores problemas do mundo hoje em dia, sendo objeto de estudo dos mais diversos governos que cogitam novas formas de regulamentação.

O Facebook reconheceu que não adotou as medidas necessárias para impedir a disseminação de notícias falsas e de conteúdo de ódio em relação a ataques perpetrados contra membros da minoria muçulmana rohingya em Mianmar (FACEBOOK…, 2018), uma prática de genocídio, e que informações falsas (especialmente ligadas a rumores de sequestros de crianças) motivarem vários linchamentos na Índia (WHATSAPP…, 2018), o que, a propósito, tem relação com a adoção de uma política de limitação do número de mensagens que podem ser compartilhadas pelo aplicativo.

Não à toa, nas redes sociais as nossas discussões ganharam uma tendência ao insulto, pois além dos fatores mencionados de manipulação do comportamento, tendemos a agir de forma diferente na arena pública, quando sabemos estar sendo observados.

Assim, as redes sociais passaram, em boa parte, a ser espaços de xingamentos, discursos de ódio, "lacração", "cancelamento" etc.

As eleições viraram uma disputa de disparos em massa de desinformação, boatos e outras práticas imorais, abalando as democracias.

No Brasil, as fake news preocupam bastante, especialmente porque somos quase campeões mundiais no tempo de uso das redes sociais [3] e também de aplicativos, como o WhatsApp [4], ao mesmo tempo em que cerca de 62% dos brasileiros não sabem reconhecer uma notícia falsa, de acordo com um estudo da empresa global de cibersegurança Kapersky (62%…, 2020).

No mesmo sentido, segundo um levantamento da Avaaz, uma organização de pesquisa e plataforma de mobilização online, "73% dos brasileiros entrevistados acredita que pelo menos um dos conteúdos com desinformação é verdadeiro ou provavelmente verdadeiro, seguido por 65% dos estadunidenses e 59% dos italianos" (O BRASIL…, 2020).

A título de exemplo, um estudo conduzido pelas pesquisadoras Claudia Galhardi e Maria Cecília de Souza Minayo, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), apontou que dentre as mídias sociais mais utilizadas para disseminação de fake news sobre o novo coronavírus estão o WhatsApp, com 73,7%; o Facebook, com 15,8% e o Instagram, com 10,5% das notícias falsas (PESQUISA…, 2020). 

Mas 9 em 10 brasileiros querem uma legislação contra fake news (9…, 2020).

Como dito, as legislações dos países ainda têm dificuldade para lidar com o fenômeno, mas é interessante notar que o próprio mercado começou a dar sinais de reação. Nesse sentido, a campanha iniciada nos Estados Unidos, Stop Hate for Profit (Pare de Lucrar com o Ódio), fez com que várias empresas multinacionais suspendessem os seus anúncios em redes sociais, provocando uma acentuada queda no valor das ações delas na Bolsa, da ordem de US$ 74,6 bilhões para o Facebook (FACEBOOK perde…, 2020) e US$ 1,2 bilhão para o Twitter (GAGLIONI, 2020).

Outra forma de reação contra a desinformação, especialmente em razão do risco de adoção de comportamentos inadequados durante a pandemia de Covid-19, ocorreu com a remoção de alguns posts de autoridades do país, como o presidente da República do Brasil (BOLSONARO foi…, 2020; MARQUES, 2020; TWITTER…, 2020), ministros de Estado, deputados, etc., tendo em alguns casos sido colocadas no lugar uma outra notícia de esclarecimento. E também, como é notório, várias contas falsas ligadas a apoiadores do governo federal foram removidas pelas próprias redes sociais (FACEBOOK remove…, 2020).

Mas voltando no tempo, cabe a indagação: será que mentira também não era um problema grave nas nossas gerações passadas? Keyes (2018) trabalha com a hipótese de que os nossos antepassados tinham a mesma propensão que as gerações atuais para mentir, mas antigamente existiam mais freios sociais, em razão de as coletividades serem menores e as pessoas se conhecerem. Assim, conforme fomos adquirindo mais mobilidade e anonimato ficamos mais livres para mentir mais. E pior, segundo este mesmo autor, hoje em dia temos menos senso de conexão (de comunidade) e menos noção do certo ou errado, ou seja, uma ética em erosão.

Seja como for, a sociedade clama por uma reação e o tema está sendo bastante discutido em várias instâncias do país, de maneira que há esperança em dias melhores, pois o reconhecimento da doença é o princípio da cura.

Referências bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

BOLSONARO foi 2º governante a ter post apagado pelo Twitter; 1º foi Maduro. Veja, São Paulo, 30 de março de 2020. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/antes-de-bolsonaro-twitter-apagou-post-de-maduro-com-antidoto-caseiro/. Acesso em: 9 set. 2020.

O BRASIL está sofrendo uma infodemia de Covid-19: os brasileiros acreditam mais um notícias falsas do que os italianos e estadunidenses. AVAAZ, [s. l.], 4 de maio de 2020. Disponível em: https://avaazimages.avaaz.org/brasil_infodemia_coronavirus.pdf. Acesso em: 15 jul. 2020.

DUARTE, Fernando. Brasil é ‘vice’ em tempo gasto em redes em ranking dominado por ‘emergentes’. Folha de S.Paulo, São Paulo, 6 de setembro de 2019. Disponível em: https://f5.folha.uol.com.br/nerdices/2019/09/brasil-e-2o-em-ranking-de-paises-que-passam-mais-tempo-em-redes-sociais.shtml. Acesso em: 9 set. 2020.

FACEBOOK perde mais de US$ 74 bilhões com boicote de patrocinadores. UOL, São Paulo, 27 de junho de 2020. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/06/27/facebook-perde-mais-de-us-74-bilhoes-com-boicote-de-patrocinadores.htm. Acesso em: 7 set. 2020.

FACEBOOK reconhece que falhou em impedir violência contra rohingya: estudo encomendado pela empresa mostra disseminação de conteúdo falso e de ódio na plataforma. Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 de novembro de 2018. Caderno Mundo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/11/facebook-reconhece-que-falhou-em-impedir-violencia-contra-rohingya.shtml. Acesso em: 3 ago. 2020.

FACEBOOK remove rede de contas falsas relacionadas ao PSL e a gabinetes da família Bolsonaro. G1, Rio de Janeiro, 8 de julho de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2020/07/08/facebook-remove-rede-de-contas-falsas-relacionada-ao-psl-e-a-gabinetes-da-familia-bolsonaro.ghtml.1 Acesso em: 5 set. 2020.

GAGLIONI, Cesar. O boicote dos anunciantes ao Facebook e ao Twitter. Nexo Jornal, [s. l.], 29 de junho de 2020. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/06/29/O-boicote-dos-anunciantes-ao-Facebook-e-ao-Twitter. Acesso em: 9 set. 2020.

KEYES, Ralph. A era da pós-verdade: desonestidade e enganação na vida contemporânea. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.

LANIER, Jaron. Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018. E-book.

9 em 10 brasileiros querem legislação contra fake news. Ibope Inteligência, [s. l.], 2 de junho de 2020. Disponível em: https://www.ibopeinteligencia.com/noticias-e-pesquisas/9-em-10-brasileiros-querem-legislacao-contra-fake-news/. Acesso em: 01 set. 2020.

PESQUISA revela dados sobre fake news relacionadas à Covid-19. Rio de Janeiro: Fiocruz, 15 de abril de 2020. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/pesquisa-revela-dados-sobre-fake-news-relacionadas-covid-19. Acesso em: 9 set. 2020.

62% dos brasileiros não sabem reconhecer uma notícia falsa: novo estudo da Kaspersky visa mostrar os riscos que os internautas correm ao navegar desatentos. [S. l.]: Kaspersky Lab, 13 de fevereiro de 2020. Disponível em: https://www.kaspersky.com.br/about/press-releases/2020_62-dos-brasileiros-nao-sabem-reconhecer-uma-noticia-falsa. Acesso em: 27 ago. 2020.

MARQUES, José. Facebook apagou post de Bolsonaro por ‘alegação falsa’ de cura para coronavírus. Folha de S.Paulo, São Paulo, 1 de abril de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/facebook-apagou-post-de-bolsonaro-por-alegacao-falsa-de-cura-para-coronavirus.shtml;  Acesso em: 9 set. 2020. 

TWITTER apaga publicações de Jair Bolsonaro por violarem regras da rede. G1, Rio de Janeiro, 29 de março de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/29/twitter-apaga-publicacoes-de-jair-bolsonaro-por-violarem-regras-da-rede.ghtml. Acesso em: 5 set. 2020. 

VALENTE, Jonas. Brasil é o 3º país em que pessoas passam mais tempo em aplicativos. Agência Brasil, Brasília, 16 de janeiro de 2020. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-01/brasil-e-o-3o-pais-em-que-pessoas-passam-mais-tempo-em-aplicativos. Acesso em 9 set. 2020.

WHATSAPP limita mensagens na Índia após notícias falsas levarem  a linchamentos. BBC News Brasil, Londres, 21 de julho de 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-44897990. Acesso em: 13 ago. 2020.


[1] Lanier é autor do livro "Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais".

[2] Conforme Keyes (2018, p. 35), "admoestações a não mentir são seguidas por uma lista de circunstâncias nas quais mentira é permissível. Maomé disse que seus seguidores deviam sempre ser verdadeiros, exceto quando uma mentira fosse necessária para preservar a harmonia doméstica, salvar a própria vida ou manter a paz. O Talmude também observa a necessidade de manter a paz como justificativa para a falsidade. […] Ambos os testamentos da Bíblia, e o Antigo Testamento especialmente, combinam condenações a desonestidade com a admiração de relatos de enganação bem sucedidas".

[3] Conforme uma pesquisa de 2019, o Brasil é segundo em ranking mundial de países que passam mais tempo em redes sociais. (DUARTE, 2019).

[4] "O Brasil ficou na terceira colocação no ranking dos países em termos de tempo gasto em apps, levemente acima da média, com 3 horas e 45 minutos" (VALENTE, 2020, [n. p.]).  

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