Observatório constitucional

O Supremo Tribunal Federal e a pandemia da Covid-19

Autor

  • Gilmar Mendes

    é professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) doutor em Direito pela Universidade de Münster (Alemanha) e ministro do STF.

26 de setembro de 2020, 8h00

Em minha última coluna para o "Observatório Constitucional", do dia 11 de abril deste ano, destaquei a importância de se encarar a Constituição não como um obstáculo na condução da resposta à pandemia da Covid-19, mas como um caminho necessário ao seu enfrentamento. Hoje, passados mais de quatro meses desde aquela reflexão inicial sobre a "Jurisprudência de Crise", é possível se fazer um balanço sobre como o Supremo Tribunal Federal tem atuado nos diversos casos em que teve de se manifestar sobre o tema.

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Como pudemos comprovar nos últimos meses, a Covid-19 representou matéria da mais absoluta relevância constitucional. Em obra doutrinária coordenada por mim, pelo professor José Roberto Afonso e por Hadassah Laís Santana, tivemos a oportunidade de registrar, no capítulo introdutório, em coautoria, o seguinte:

"Vivemos um dos maiores desafios dos últimos cem anos (certamente o maior das últimas quatro gerações), em se tratando de medidas sanitárias, epidemiológicas, econômicas e sociais. As consequências que já sabemos (milhares de mortes, desemprego de milhões de pessoas, fechamento de milhares de empresas, diminuição da remuneração de praticamente todo o Segundo e Terceiro setores, estagnação econômica, entre outros) e as ainda incertas (em sua extensão — tamanho da recessão e o momento da retomada do crescimento econômico, retorno dos empregos e do padrão remuneratório perdidos etc.) perdurarão algumas delas por mais de um ano, necessitando de uma resposta estatal à altura do problema que estamos enfrentando.

Temos assistido a medidas contraditórias, descoordenadas e investimentos públicos ineficazes no combate à pandemia (vide a espiral de casos confirmados e a escalada de dezenas de milhares de mortes lastimáveis), seja pela sobreposição de atos governamentais dúbios, seja pela gritante disparidade de preços dos mesmos produtos nas unidades federativas, incluindo a necessidade de auxílio financeiro aos entes subnacionais que perderam receitas com a crise que assola o país."[1]

Ao lado complexo quadro institucional que se desenhou, assistimos também à implementação de medidas sanitárias até então pouco usuais, com impactos relevantes na fruição de direitos fundamentais. Nas mais diversas localidades do país, os mecanismos de prevenção da Covid-19 variaram da obrigatoriedade do uso de máscara à restrição da circulação de pessoas, ao fechamento do comércio, de escolas e até mesmo à implementação de barreiras sanitárias.

No plano internacional, diversos estudiosos alertaram como os poderes excepcionais tolerados durante a Covid-19 poderiam representar riscos às liberdades e aos direitos fundamentais. A violação, segundo algumas entidades, poderia ocorrer tanto por ações que buscassem conter o alastramento da pandemia, como restrições indevidas à liberdade de locomoção e ao direito à privacidade, quanto por medidas que limitavam a circulação de informações sobre o vírus, como por meio da divulgação de dados manipulados ou incompletos e de restrições à liberdade de expressão.[2]

Obviamente, o Supremo Tribunal Federal foi chamado para atuar frente a esse complexo quadro que se desenhou. Segundo o "Painel de Ações da Covid-19", o STF reúne, atualmente, um total de 5.317 processos tratando da temática, nos quais foram proferidas, entre decisões monocráticas e colegiadas, um total de 5.846 manifestações da Corte.

Felizmente, em um momento no qual se afirmava a possibilidade de as normas constitucionais dificultarem a resposta à Covid-19, é possível destacar que a construção de uma jurisprudência atuante e aberta ao grave contexto atual possibilitou um ambiente institucional equilibrado para a implementação das medidas necessárias à contenção da pandemia.

Tal atuação foi inicialmente vista em um dos primeiros debates levados à Corte sobre a temática: os questionamentos sobre as restrições orçamentárias contidas na Lei de Responsabilidade Fiscal, que poderiam representar um grave obstáculo à implementação de políticas necessárias ao enfrentamento da Covid-19. Em decisão liminar proferida pelo ministro Alexandre de Moraes, posteriormente referendada pelo plenário, uma série de artigos relativos ao orçamento público foi excepcionada. Na oportunidade, assim destacou o ministro:

"O surgimento da pandemia de Covid-19 representa uma condição superveniente absolutamente imprevisível e de consequências gravíssimas, que, afetará, drasticamente, a execução orçamentária anteriormente planejada, exigindo atuação urgente, duradoura e coordenada de todos as autoridades federais, estaduais e municipais em defesa da vida, da saúde e da própria subsistência econômica de grande parcela da sociedade brasileira, tornando, por óbvio, logica e juridicamente impossível o cumprimento de determinados requisitos legais compatíveis com momentos de normalidade. O excepcional afastamento da incidência dos artigos 14, 16, 17 e 24 da LRF e 114, caput, in fine, e § 14, da LDO/2020, durante o estado de calamidade pública e para fins exclusivos de combate integral da pandemia de Covid-19, não conflita com a prudência fiscal e o equilíbrio orçamentário intertemporal consagrados pela LRF, pois não serão realizados gastos orçamentários baseados em propostas legislativas indefinidas, caracterizadas pelo oportunismo político, inconsequência, desaviso ou improviso nas Finanças Públicas; mas sim, gastos orçamentários destinados à proteção da vida, saúde e da própria subsistência dos brasileiros afetados por essa gravíssima situação; direitos fundamentais consagrados constitucionalmente e merecedores de efetiva e concreta proteção."[3]

Em outros importantes precedentes, suspendeu-se por 180 dias o pagamento das dívidas de uma série de Estados com a União.[4] Receosos com a grave crise econômica que se encaminhava e com o aumento de gastos em áreas como a saúde, diversos governos locais solicitaram ao STF tal medida, que conferiu maior conforto fiscal aos Estados para a implementação das medidas necessárias ao combate à Covid-19.

A responsabilização dos servidores no complexo contexto da crise sanitária igualmente foi um tema de grande relevância debatido pela Corte.[5] Por meio da Medida Provisória nº 966/2020, limitou-se a responsabilização dos agentes públicos por decisões relacionadas à pandemia a apenas em casos de dolo ou erro grosseiro na conduta. Nas ações que questionaram tal dispositivo, defendeu-se a incompatibilidade da previsão com as disposições constitucionais sobre o tema, bem como alegou-se a falta de critérios objetivos para a configuração de erro grosseiro do agente público, o que conduziria a verdadeiro regime de impunidade.

Na oportunidade, o STF destacou a possibilidade de a legislação ordinária qualificar a modalidade culposa pela qual o agente público pode ser responsabilizado — no caso em questão, por erro grosseiro –, mas conferiu interpretação conforme da norma no sentido de se adotar, como critério para a aferição de tal modalidade culposa, a observação: "(i) de standards, normas e critérios científicos e técnicos, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente conhecidas; bem como (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção"


É necessário destacar que a referida decisão tem como pano de fundo críticas relevantes à ausência de critérios para a definição da responsabilidade administrativa de gestores públicos mesmo em situações de normalidades. Autores como Floriano de Azevedo Marques Neto[6], Gustavo Binenbojm, Carlos Ari Sundfeld[7], e outros de igual calibre têm diagnosticado, no Brasil, a ocorrência de verdadeiro "Apagão das Canetas" — expressão utilizada para designar sentimento generalizado de temor e de inação de nossos gestores públicos frente aos riscos de responsabilização pelos órgãos de controle e pelo Poder Judiciário.

Na sua essência, esse fenômeno decorre de visão da Administração Pública que projeta, no gestor, o ideário de que ele deve ser mero "aplicador" da lei; como se todas as escolhas importantes para a funcionamento do Estado já tivessem sido tomadas pelo legislador, cabendo ao servidor apenas desvendá-las. Para além de todos os desafios que essa visão de mundo implica, em termos de hermenêutica jurídica, qualquer aplicador do direito minimamente atento à realidade consegue reconhecer suas limitações. Como bem destacam Binebojm e Cyrino, embora "“o mundo da aplicação da lei de ofício seja um lugar bastante seguro para o agente público, esse mundo não existe e talvez nunca tenha existido". Sobretudo em sociedades complexas como a nossa, é inegável que "administrar envolve tomar decisões difíceis em âmbitos deixados em aberto pelo legislador"[8].

Não é preciso destacar como todo esse debate ganhou contornos ainda mais complexos com a Covid-19, que, diante das dificuldades de uma crise econômica, financeira e sanitária, demandou a implementação medidas invasivas e urgentes, muitas delas pouco usuais na Administração Pública. Assim, se por um lado o gestor se via envolto em uma situação de grande complexidade, por outro, a sua inação – um possível "Apagão das Canetas" — poderia levar a consequências ainda mais catastróficas.

A decisão, ao definir critérios mais claros para a aferição da responsabilidade do agente público, conferiu maior segurança jurídica aos gestores, sem se olvidar da necessidade da correta utilização dos bens públicos. A Corte reforçou que os órgãos de controle, ao realizar o exame a posteriori da responsabilidade do agente público, devem considerar o contexto informacional contemporâneo à tomada de decisão.

Outro debate de grande relevância ao país tratou da divisão de competência entre os entes na implantação de medidas sanitárias de controle da pandemia.[9] No contexto de uma série de ações adotadas por Estados e Municípios, a União invocou os dispositivos constitucionais relativos à sua competência exclusiva, para centralizar as decisões acerca de medidas de enfrentamento da crise sanitária do Covid-19, enquanto os entes regionais e locais fundamentaram-se em dispositivos de competência comum e concorrente para justificar os atos de restrição de locomoção de pessoas que vêm sendo adotados em seus âmbitos.

Como é sabido, a Constituição de 1988 traz sistematização pouco objetiva em matéria de competências administrativas e legislativas. Não é fácil identificar no Texto Constitucional os limites das competências dos entes federativos em cada matéria. A Constituição fala, por exemplo, que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios “cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência”. No mesmo sentido, o Texto Constitucional, ao estabelecer o Sistema Único de Saúde, revela que esse sistema deve ser pesando de forma descentralizada (artigo 196).

Em meio aos desencontros entre as posições dos governos estaduais e municipais frente a posição defendida pela União, parecia clara que a pluralidade de opções sobre o assunto e a ausência de medidas uniformes, no contexto de urgência, alertavam para a necessidade de definição dos limites constitucionais e legais para a atuação dos entes federativos regionais e locais. Isso porque, independentemente do direcionamento da política pública de saúde que se pretendesse adotar, seria inviável, em um contexto de pandemia, a sua execução sem uma articulação mínima entre a União, os Estados e municípios.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, baseado no federalismo cooperativo que permeia nossa Constituição, afirmou a competência concorrente dos entes da Federação para implementar as medidas de contenção da pandemia e destacou a necessária articulação entre eles para o seu êxito. Dessa forma, garantiu-se aos Estados e Municípios a possibilidade de adoção de medidas restritivas, sem se afastar a necessária e devida atuação da União, seja coordenando as ações dos outros entes, seja implementando políticas de contenção do vírus, especialmente em casos de interesse nacional.

O Supremo Tribunal Federal também se mostrou atuante na garantia dos direitos fundamentais em todo o processo de enfrentamento à Covid-19. Em algumas ações, a Corte reconheceu o caráter excessivo de medidas tomadas pelo Poder Público. Foi o caso de decisão liminar do ministro Dias Toffoli que, ao analisar caso de uma fábrica cujo funcionamento havia sido impedido em razão de decreto da cidade de Teresina (PI), destacou a ausência de fundamentação técnica da medida.[10] Em outro caso, novamente o Ministro Presidente, de forma monocrática, com argumentação semelhante, negou a suspensão de liminar do Tribunal de Justiça de São Paulo que sustara os efeitos de decreto da cidade de São Bernardo do Campo (SP) responsável por restringir a circulação de pessoas com mais de 60 anos.[11]

No plenário, importante questionamento foi levantado contra Medida Provisória que permitia o compartilhamento de dados de empresas de telefonia com IBGE para fins de estatísticas durante o período da Covid-19.[12] A Corte, referendando decisão da ministra Rosa Weber, reconheceu a violação ao direito fundamental à proteção de dados pessoais diante da ausência de salvaguardas técnicas e administrativas efetivas que pudessem colmatar a necessária proteção ao tratamento de dados, seja estabelecendo formas de anomização dos dados compartilhados, seja contemplando mecanismos minimamente eficientes de transparência no tratamento.

No caso, reconheceu-se que a referência ao momento de pandemia global gerada pela disseminação do coronavírus não seria suficiente para alterar tal conclusão. Muito pelo contrário, o STF reforçou que o momento vivenciado nesta crise não atenua, mas antes reforça a necessidade de se zelar por um rígido ambiente institucional de proteção aos dados pessoais, conforme reconhecido pela própria Organização Mundial da Saúde, a qual, no seu Regulamento Sanitário Internacional, incorporado ao ordenamento pátrio pelo Decreto 10.212/2020, impõe que não devem existir "processamentos [de dados] desnecessários e incompatíveis" com o propósito de “avaliação e manejo de um risco para a saúde pública” (art.45, 2, "a").


Por outro lado, também foram direcionadas à Corte discussões quanto à omissão do Estado no enfrentamento da crise. Tal situação ocorreu em um dos casos mais emblemáticos, no qual se reconheceu a omissão do Governo Federal em adotar medidas de combate à Covid-19 voltadas aos povos indígenas, especialmente quanto aos isolados ou de contato recente. A Corte, ciente da especial vulnerabilidade dessa parcela da população, determinou a obrigatoriedade de ações como a criação de barreiras sanitárias, a criação de uma sala de situação, a elaboração de um "Plano de Enfrentamento da Covid-19 para os Povos Indígenas Brasileiros", dentre outras.

O Supremo Tribunal Federal igualmente atuou de forma clara no sentido de garantir a correta divulgação de dados e informações no contexto da Covid-19. Nesse sentido, o STF reconheceu, por exemplo, a inconstitucionalidade das alterações realizadas na Lei de Acesso à Informação que traziam limitações indevidas durante o período da pandemia.[13] Em decisão proferida pelo ministro Roberto Barroso, suspendeu-se a divulgação de campanha publicitária do Governo Federal que incentiva o retorno da população às suas atividades normais, de forma contrária às principais recomendações das entidades nacionais e internacionais de saúde.[14]

A importância da divulgação de informações corretas e precisas à população também foi reforçada em decisão do ministro Alexandre de Morais, que, diante da alteração da forma de divulgação dos dados epidemiológicos sobre a Covid-19, obrigou o Ministério da Saúde a manter a metodologia anterior, por entender que a nova forma poderia suprimir e omitir dados relevantes.[15]

 Nesse sentido, é possível verificar que o Supremo Tribunal Federal, ciente de seu papel constitucional,  tem sido um importante pilar no atual momento de enfrentamento da crise. Os precedentes acima citados, aos quais poderiam se somar outros, mostram como o Tribunal tem conferido segurança e previsibilidade ao Poder Público em um contexto de complexa gravidade, além de ter devidamente mediado os conflitos entre as esferas de poder. Paralelamente a isso, a Corte vem resguardando os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos frente a condutas abusivas, sejam elas comissivas ou omissivas.


[1] MENDES, Gilmar Ferreira; AFONSO, José Roberto; e SANTANA, Hadassah Laís. Org. In: Governance 4.0 para Covid-19 no Brasil. Propostas para Gestão Pública e Para Políticas Sociais e Econômicas. São Paulo: Almedina, 2020

[2] Sobre o tema, ver o relatório “Global Democracy and Human Rights Impacts of COVID-19: In Brief, elaborado pela Congressional Reserach Service: https://fas.org/sgp/crs/row/R46430.pdf

[3]ADI 6357 MC/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJ de 31/03/2020

[4] É o caso das ACOs 3378, 3379, 3380 e várias outras

[5] ADIs 6.421 MC/DF, 6.422 MC, 6.424 MC, 6.425 MC, 6.427 MC, 6.428 MC e 6.431 MC, Rel. Min. Roberto Barroso, com acórdãos ainda não publicados.

[6] MARQUES NETO, Floriano. FREITAS, Rafael Véras. O artigo 28 da nova LINDB: um regime jurídico para o administrador honesto, maio de 2018. Consultor Jurídico. 25 de maio de 2019

[7] SUNDFELD, Carlos Ari. Uma lei geral inovadora para o Direito Público. Portal Jota, 31 de outubro de 2017

[8] BINENBOJIM, Gustavo e CYRINO, André. O art. 28 da LINDB: a cláusula geral do erro administrativo. Revista de Direito Administrativo, nov 2018, p 205).

[9] Conforme analisado na ADPF 672, Rel. Min. Alexandre de Moraes, bem como nas ADIs 6343, Rel. Min. Marco Aurélio, Redator Min. Alexandre de Moraes, e 6341, Rel. Min. Marco Aurélio. Acórdãos de todas as decisões ainda não publicados.

[10] SS 5.362/PI, Min. Dias Toffoli, DJ de 13/04/2020

[11] SL 1.309/SP, Min. Dias Toffoli, DJ de 03/04/2020

[12] ADIs 6387, 6388, 6389, 6390 e 6393, Rel. Min. Rosa Weber, acórdão ainda não publicado.

[13] ADIs 6351, 6347 e 6353, Rel. Min. Alexandre de Moraes, acórdão ainda não publicado

[14] ADPF 669, Rel. Min. Roberto Barroso, Dj de 02/04/2020

[15] ADPF 690, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJ de 10/06/2020

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    é doutor em Direito pela Universidade de Münster, Alemanha. Professor de Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

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