Opinião

Exigência da certidão negativa de débitos na recuperação judicial e a full bench

Autor

  • Maria Raquel Firmino Ramos

    é advogada doutoranda em Ciências Jurídico-Econômicas pela Universidade de Coimbra mestra em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários.

26 de setembro de 2020, 6h41

A Lei de Falências (Lei n° 11.101/2005) possibilita que empresas em dificuldades financeiras momentâneas possam gozar de direitos e benefícios a fim de preservar a fonte produtora, o emprego e os interesses dos credores, mantendo a função social da empresa de modo a dar continuidade à atividade econômica (artigo 47).

Dentre os requisitos para o deferimento do processo de recuperação judicial está a apresentação das certidões negativas de débitos tributários exigida no artigo 57 desta lei e no artigo 191-A do Código Tributário Nacional — CTN. Esses artigos, porém, vinham sendo relativizados pelos tribunais estaduais e pelo Superior Tribunal de Justiça — STJ, justamente porque, em situações de crise financeira, comumente as empresas estão inadimplentes inclusive com o Fisco.

O entendimento jurídico das cortes, até então, sempre considerou o contexto econômico da empresa para abrandar essa regra, colocando a preservação da unidade produtora em primeiro plano. Isso porque em situação de faltas de fundos, a empresa recorre ao Poder Judiciário a fim de encontrar uma solução, dentro da legalidade, para conseguir honrar os pagamentos, que estariam comprometidos, não somente quanto aos créditos tributários, mas em relação aos demais credores, como os fornecedores e os empregados.

Conforme essas decisões, o afastamento das incidências do artigo 57 da Lei de Falências e do artigo 191-A do CTN se justificava em face da ausência de lei que estabelecesse as condições de parcelamento dos créditos tributários do devedor em recuperação judicial, conforme estabelece o § 3°, do artigo 155-A do CTN (entendimento do Recurso Especial 1187404/MT de 2013).  

No último dia 11, o Supremo Tribunal Federal, entretanto, em decisão liminar proferida nos autos da Reclamação n° 43.169, suspendeu a decisão proferida por órgão fracionário do STJ no Recurso Especial nº 1.864.625/SP, sob o fundamento de sua violação à Súmula Vinculante n° 10, que veda o afastamento de lei ou ato normativo, no todo ou em parte, sem atendimento à cláusula de reserva de plenário ou full bench (artigo 97 da Constituição Federal de 1988). Isso afetou diretamente o referido entendimento recorrentemente proferido nas decisões dos tribunais no sentido de afastar o artigo 57 da Lei de Falências e artigo 191-A do CTN, que consideram a apresentação da Certidão Negativa de Débitos — CND (ou Certidão Positiva com Efeito de Negativa) como condição de procedibilidade do processo de recuperação judicial.

O entendimento não poderia vir em pior hora, em que se estima que os pedidos de recuperação judicial das empresas brasileiras triplicarão durante a pandemia [1]. O requisito de apresentação da CND (ou CP-EM) como condição de procedibilidade da recuperação judicial deve ser de forma a atingir os já referidos objetivos do artigo 47 da Lei de Falências. Não é razoável interpretar o artigo 57 da mesma lei, bem como o artigo 191-A do CTN isoladamente, desconsiderando o que estabelece o § 3°, do artigo 155-A do CTN, em razão de que essa condição somente seria passível de ser exigida diante da existência de lei que estabelecesse, conforme diz o dispositivo, "as condições do parcelamento dos créditos tributários do devedor em recuperação judicial".

A decisão causa espanto tanto no âmbito jurídico, quanto no âmbito pragmático, em razão de que o Supremo Tribunal Federal indica péssimo timing para estabelecer uma exigência que nem em tempos normais se fazia. Demonstra, assim, a completa apatia pelo postulado da preservação da empresa, e todos os seus benefícios sociais, estabelecidos na Lei das Falências, tampouco o que preconiza o CTN.

A partir da decisão do STF emerge-se uma problemática, pois deverão ser reformados todos os processos de recuperação judicial em que houve a relativização da exigência da apresentação da CND (ou CP-EN), e, portanto, em que não houve a incidência do artigo 57 da Lei das Falências e do artigo 191-A do CTN, mediante decisão prolatada por órgão fracionário.

Ocorre que há, no mínimo, duas interpretações possíveis para esse novel entendimento proferido pelo STF. A primeira é que não se trata de violação à reserva de plenário, mas de interpretação da lei aplicável ao caso concreto (Rcl 31.928/2018), pois em verdade não há afastamento dos dispositivos, mas impossibilidade de aplicá-los devido à ausência de lei de parcelamento para empresas em recuperação judicial (a depender da análise do caso concreto). A segunda é que se o afastamento dessas normas for proferido por decisão de juiz singular, não há o que se falar em violação à reserva do plenário, pois se trata de uma limitação exclusivamente de órgãos fracionários (Rcl 14.889 MC/2012).

A temática realmente é complexa e requer do exegeta uma interpretação bastante conectada com a realidade, porquanto, como visto, vai além da aplicação da Súmula Vinculante n° 10, mas necessita de uma interpretação sistemática nos âmbitos tributário e falimentar. Requer, ainda, uma boa dose de pragmatismo para compreender que a realidade das empresas em plena pandemia conjura um pouco mais de cautela na prolação de uma decisão que soa muito mais como uma carta de encerramento ao invés dos primados da continuidade e do estímulo à unidade produtora, que são razões de ser do instituto da recuperação judicial dispostas na Lei de Falências.


[1] SECRETARIA DE POLÍTICA ECONÔMICA. Choques adversos da Covid-19: mobilidades do trabalho e do capital na atual conjuntura. A importância de legislações mais eficientes de falências e que estimulem maior dinâmica no mercado de trabalho. Nota Informativa. Disponível em: <https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/notas-informativas/2020/nt_choques_julho-2020versaofinal.pdf/view> Acesso em: 11 Set 2020.

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    é advogada, doutoranda em Ciências Jurídico-Econômicas pela Universidade de Coimbra, mestra em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários.

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