Diário de Classe

Desigualdade, democracia e positivismo jurídico

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26 de setembro de 2020, 8h00

Intrigado com um sem-número de aporias nas tais promessas (políticas) não cumpridas da modernidade, tão presentes na cotidianidade de nossas relações com o Estado, arremessei-me ao mundo da pós-graduação em 2013. Em Direito. No mestrado, realizado na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, sob a orientação do professor Gilmar Bedin, canalizei essa inquietação à desigualdade social que caracteriza o Brasil, procurando compreender não os fundamentos sociológicos, por assim dizer, desse lamentável estado de coisas, mas os elos institucionais que legitimavam essa indisfarçável condição que faz, do Brasil, “muitos brasis”: um rico, outro pobre, um culto, outro miserável e ignorante de tudo e assim por diante. Uma Babel.

Pois foi essa Babel descrita (e, à época, apenas descrita) o pano de fundo a uma análise das capacidades institucionais do Judiciário, em minha tese de doutoramento na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Sob orientação do professor Jose Bolzan de Morais, com um fio condutor wittgensteiniano, o trabalho, defendido em 2018, interrogava a pluralidade de jogos (individualizados) de linguagem a predar (ou a tentar predar) a linguagem pública do Direito, sobremodo, diante dos muitos contextos que fazem o Brasil ser o que é.

En passant, a discussão, claro, atravessou narrativas em torno de conceitos como o ativismo judicial e a judicialização da política, procurando estabelecer um “critério” à ação institucional, em âmbito jurisdicional, para determinar a oportuna distinção que permite dizer: eis aí a Babel que preda o Direito. E preliminarmente concluir: o reino da discricionariedade, ou seja, da hipótese criativa (e, ainda assim, com limites jurídicos disciplinadores) é o da política. Não o da jurisdição. Preencher a lacuna política através de incursões jurídicas, imprimindo um papel governamental e legislativo ao Judiciário, é não apenas o reflexo mais aparente de uma crise funcional entre os Poderes da República como, ainda, o atalho mais curto à infantilização de nossos atores políticos, cada vez mais tributários e carentes da “criatividade judiciária” (ou “jurídica”, eis que o MP também vem, não raras as vezes, desempenhando esse mesmo papel).

Em miúdos, com essa projeção argumentativa, o que pretendi demonstrar foi que, quanto mais ativismo, mais naturalizada será a sobreposição de Poderes. E maior ainda também será a necessidade de judicialização da política que, pouco a pouco, vai perdendo um saudável traço contingencial. Não por outra razão (e aqui vai uma segunda conclusão), atribuir um papel iluminista ao Judiciário, que empurraria a roda da História, seria também condená-lo ao exercício permanente dessas atribuições. A Babel tomaria o lugar da República, governada não mais por uma pública linguagem que dá unidade ao Estado, mas por pessoalizados (e, por isso, paradoxais) jogos de linguagem responsivos tão-somente à discricionariedade judiciária. É claro que isso não vai dar certo, mas também parece evidente que é esse o caminho que insistimos trilhar por aqui, tornando, por essa mesma razão, cada vez mais oportuna (e necessária) a crítica doutrinária que desnaturaliza esse confuso contexto político, jurídico e social.

Assim, como até aqui se pôde demonstrar, das primeiras problematizações acadêmicas no mestrado até o doutoramento, há um fio de unidade estabelecendo o problema e, criticamente, observando, no degrau seguinte, os seus efeitos. Mas, numa tarefa que se move na mesma historicidade que nos molda (e, por isso, é sempre inacabada e, mais que isso, é interpretativa), o passo seguinte impunha (como o leitor mais atento já anteviu) um tom propositivo. Quero dizer, avançar na pesquisa significava (ainda significa, na verdade) procurar resposta à seguinte pergunta: como caminhar a níveis mais satisfatórios de justiça substantiva, num país tão desigual quanto o Brasil, sem cair nas armadilhas do “justiçamento” proposto pelo ativismo? Eis o ponto.

A pergunta, claro, não encerra em si uma espécie de exclusividade acadêmica. Está na agenda de muitos pesquisadores comprometidos com o sentido da democracia no país, razão pela qual variadas também são as suas hipóteses responsivas. Mas para quem projeta o agravamento da desigualdade social no Brasil justamente a partir desse mesmo ativismo judicial, os canais investigativos fica(ra)m cada vez mais estreitos.

Digo isso porque, para além das inflexões problematizadoras que, a seu tempo, encontram uma última parada na análise (crítica) das capacidades institucionais do Judiciário, a discussão sobre desigualdade no país é, também, a discussão sobre teoria da decisão. Não é outra. Afinal de contas, é preciso critérios para diferenciar o ativismo da judicialização, estabelecendo o ponto nuclear da própria crítica (e isso só é possível através de uma teoria preocupada com a decisão). Mais: a preocupação com a decisão judicial, nesse encadeamento de ideias, é o próprio antídoto ao historicamente tão enraizado fenômeno que se pretende combater.

É desse ponto em diante que meus interesses acadêmicos cruzaram os caminhos da Crítica Hermenêutica do Direito, em meu pós-doutoramento na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, sob a coordenação do professor Lenio Streck. Como um (na falta de expressão melhor) "cristão novo", tomei contato, então, com essa sofisticada proposta não na sua superfície (já manejada como “critério diferenciador entre ativismo e judicialização” em minha tese de doutorado), mas nos limites de suas complexas fundamentação e proposição: um desafio constante, claro, bem demarcado por um amplo e também complexo  arcabouço teórico.

Pois bem. Grosso modo (e é sobre isso que pretendo falar), a Crítica Hermenêutica do Direito e esse conjunto propositivo que a delimita, ao desnaturalizar a discricionariedade judicial e atribuir à doutrina o papel de um necessário constrangimento epistemológico às decisões, acaba travando um embate hercúleo com um fenômeno mal compreendido por aqui: o positivismo jurídico, cujo predomínio de seu paradigma tem imposto esse confuso embaralhamento sobre como decidem as cortes no Brasil e, no limite de seu paradoxo, tem também contribuído (como penso e como até aqui procurei demonstrar) para o alargamento das desigualdades.

Embora muito longe de saber manejar não apenas o argumento, mas, antes disso, os enlaces teóricos que permitem a própria discussão, como brilhantemente fazem as “melhores cabeças do Dasein[2], como Gilberto Morbach e Ziel Ferreira Lopes, explico meu ponto de vista:  intuo que essa relação entre positivismo, decisão judicial e desigualdade se dá por uma característica comum a todos os formatos desse paradigma incompatível com a intersubjetividade que dá forma à contemporaneidade: a discricionariedade. Afinal, se ao jurista resta apenas a descrição do Direito como fato social (e essa descrição é um ato de conhecimento que elenca um conjunto de possíveis interpretações), ao aplicador desse mesmo Direito a tarefa imposta é “escolher” uma entre essas muitas interpretações descritas. A decisão é, assim, um “ato de vontade”, francamente incompatível com a democracia e com a intersubjetividade que, entre outros aspectos, a determina. Fica a interrogação: é possível, afinal, projetar maiores níveis de democracia material, abrindo mão da própria democracia?

A pergunta, é claro, é retórica. No limite, essa discricionariedade, que protagoniza a já mencionada sobreposição de Poderes e essa crise funcional institucionalmente atravessada, individualiza (re)distribuições, criando jogos de linguagem paradoxalmente muito particulares. Com isso, acaba deslocando o polo de tensão criativa (que é a política) para a jurisdição, cada vez mais “moralizadora” ou, talvez mais apropriadamente, “justiceira” de nossas históricas mazelas.

Não por outra razão, a conclusão que este texto chega, após um longo preâmbulo a estabelecer suas premissas problematizadoras, é de que há, no núcleo do debate sobre desigualdade social no Brasil, muitas camadas encobertas pela tradição, nublando não as causas, talvez já esmiuçadas no limite, mas os graves obstáculos posicionados na trilha de sua própria solução, a limitar condições mais equânimes de igualdade entre nós. No desenho institucional que envolve essa trama, o positivismo jurídico é claramente um desses entraves, desvelado, contundentemente e não de hoje, pela Crítica Hermenêutica do Direito.

Daí ser possível dizer, num arremate, que não apenas nosso processo civilizador depende da autonomia do Direito, livre do decisionismo (ainda) latente no paradigma positivista,  como disso também depende um país mais justo, com melhores níveis distributivos e, portanto, menos desigualdade. Não por outra razão, a discussão sobre o positivismo jurídico (em que tenho pessoalmente ainda um longo caminho a percorrer) deve estar na agenda do dia daqueles preocupados com a nossa (muitas vezes tíbia) democracia.         

* Núcleo de Estudos Hermenêuticos, capitaneado pelo professor Lenio Streck

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