Improbidade em Debate

(In)oponibilidade da colaboração premiada à persecução sancionadora na improbidade

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25 de setembro de 2020, 10h00

Noticiado na edição nº 674 do Informativo de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, publicado no dia 31 de julho, o acórdão proferido pela 2ª Turma no REsp nº 1.464.287 cuidou de tema bastante interessante: a oponibilidade ou não de acordo de colaboração premiada, firmado por pessoa física, contra pretensão sancionatória arrimada em ação de improbidade.

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Em resumo, agente particular, no contexto de operação policial, subscreveu com o Ministério Público acordo de colaboração nos termos das Leis nº 9.807/1999 e 12.850/2013; nada obstante, o mesmo Ministério Público, por quadros diversos, aviou ação de improbidade administrativa contra todos os envolvidos, incluído o colaborador, que, condenado, alçou ao Superior Tribunal de Justiça a discussão sobre se aquela sua condição de transator não o imunizaria também na seara sancionadora. Ao apreciar o caso, o aludido tribunal assim decidiu:

"4.1. A delação premiada – espécie de colaboração premiada – é um mecanismo por meio do qual o investigado ou acusado, ao colaborar com as autoridades apontando outras pessoas que também estão envolvidas na trama criminosa, obtém benefícios na fixação da pena ou mesmo na execução penal.
4.2. Embora o instituto tenha sido consolidado recentemente, com a promulgação da Lei 12.850/2013, é de ressaltar que o ordenamento jurídico já trazia previsões esparsas de colaboração premiada – gênero do qual a delação premiada é espécie – dentre as quais podemos citar os alegados arts. 13 a 15 da Lei 9.807/99, bem como o artigo 35-B, da Lei 8.884/94 (vigente à época da interposição do recurso, revogado pelo artigo 87, da Lei 12.529/2011 – atual Lei Antitruste).
4.3. Por meio de interpretação sistemática dos dispositivos citados, observo que os mecanismos ali previstos são restritos às finalidades previstas nos respectivos diplomas normativos.
4.4. No caso da Lei 9.807/99 – que instituiu o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas -, o benefício se restringe ao processo criminal e pressupõe que o Réu esteja sofrendo algum tipo de ameaça ou coerção em virtude de sua participação na conduta criminosa.
4.5. Por sua vez, a Lei Antitruste, ao prever o acordo de leniência, restringe seus benefícios a eventuais penalidades impostas em decorrência da prática de crimes contra a ordem econômica, 'tipificados na Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, e os tipificados no 88 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal'.
4.6. Os benefícios de colaboração premiada previstos na Lei 9.807/99 – que instituiu o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas -, bem como na Lei Antitruste, não são aplicáveis ao caso em concreto, em que a prática de crimes contra a ordem econômica, nem estão demonstradas as hipóteses de proteção prevista na Lei 9.807/99.

4.7. Por fim, é necessário consignar que a transação e o acordo são expressamente vedados no âmbito da ação de improbidade administrativa (artigo 17, § 1º, da Lei 8.429/1992), ainda que entenda oportuno o debate pelo Congresso Nacional sobre o referido dispositivo legal, a fim de analisar sua atualidade, pertinência e compatibilidade com normas sancionatórias que preveem a possibilidade de acordo de não-persecução penal".

Como se depreende do excerto transcrito, o Superior Tribunal de Justiça, examinando o caso em questão, concluiu que o repertório de benesses oriundas do acordo de colaboração na seara penal seria especialíssimo, o que conduziria a uma compartimentação do microssistema de possibilidades consensuais.

Dito de outra maneira, mercê da especialidade, os figurinos consensuais previstos de lei a lei não observariam uma espécie de transfixação mútua que permitisse uma comunicação entre as esferas de responsabilização, de sorte que o ajuste celebrado numa delas fosse oponível automaticamente à outra.

Por óbvia que possa parecer a solução alcançada, há reflexões que merecem ser feitas. A primeira delas diz respeito ao fato de que o acordo de leniência previsto na Lei nº 12.846/2013, embora formatado inicialmente no contexto da Lei Anticorrupção, acabou sendo ampliado — inobstante ausência de previsão legal — para inibir ações de improbidade. Ou seja, não seria exótico, tampouco inédito, o raciocínio de que transação em princípio limitada a uma esfera pudesse alcançar outra, ainda que à falta de previsão legal expressa.

Uma segunda reflexão concerne ao fato de que, sendo Ministério Público titular da ação penal e legitimado à propositura de ações de improbidade, a proteção da confiança e a proibição de comportamento contraditório poderiam muito bem preponderar sobre independências funcionais, limitando verves punitivas numa seara quando ajustada, na outra, solução pela via consensual.

Uma terceira reflexão está consubstanciada na afirmação de que o contraditório e a ampla defesa do réu colaborador na dimensão criminal ficam sensivelmente prejudicados diante de persecução sancionadora: como será possível, após confissão numa seara, lançar mão de defesa clássica na outra? Como evitar, ainda que buscadas provas de fontes autônomas, que pré-compreensões e fatos já alcançados por força de acordo celebrado no passado contaminem juízo e instrução?

Quarta — e derradeira — reflexão está em que, proferido o acórdão em meados de 2020, foi ele exarado já na vigência da Lei nº 13.964/2019, que alterou o artigo 17, §1º, da Lei nº 8.429/1992 para admitir transação em sede de improbidade administrativa — em verdade, e inobstante o veto presidencial que teria afastado a regulamentação do dispositivo, já sustentávamos, mesmo antes da sobredita alteração, ter havido revogação tácita daquela vedação. Se quer com isso dizer que não persevera o argumento de que seria vedada, em sede de improbidade, solução consensual.

Ainda que todos esses pontos sejam fundados e que, por isso, pudessem lançar dúvidas sobre o tema em favor da tese de uma oponibilidade automática de colaboração premiada à seara sancionadora fulcrada em improbidade, inobstante todos eles, fato é que reputamos acertada, na essência, a solução dada pelo Superior Tribunal de Justiça ao caso em referência.

É que, a rigor, prevalece a regra da autonomia das esferas de responsabilização, cuja comunicabilidade é excepcional; isto é, em não havendo ressalva legal de eficácia de um ajuste perante outra dimensão de responsabilidade, fica ele limitado à seara em que ultimado.

Ademais, o caráter congênere das sanções passíveis de cominação a pessoas jurídicas por força da Lei Anticorrupção e da Lei de Improbidade, e que justificou num primeiro momento a ampliação do âmbito de vigência material do acordo de leniência, não se revela no caso do acordo de colaboração premiada, que observa benefícios bem mais díspares quando comparados à seara sancionadora. Mais bem explicando, se sanções oriundas da Lei Anticorrupção se aproximam — quando não se assemelham — daquelas presentes na Lei de Improbidade, o mesmo não se verifica quando tomada em perspectiva a dimensão criminal.

Há de se ter em mente, ainda, que, após anos de fervoroso debate, atualmente não se põe em dúvida o caráter limitado do acordo celebrado unicamente com o Ministério Público, notadamente quando se pretende sua oponibilidade à pessoa jurídica lesada, que igualmente ostenta legitimidade para manejo da ação.

É dizer, a par de a própria Lei Anticorrupção já ressalvar nos ajustes consensuais a reparação ao erário a reverter em favor do ente prejudicado, não se pode desconsiderar ser no mínimo duvidosa a vinculação por parte do ente não aderente a acordo que não subscreveu. Isto é, ainda a bem de maior clareza: ainda que prevalecesse a premissa de que o acordo celebrado com o Ministério Público na seara criminal repercutiria necessariamente sobre a seara sancionadora, não seria possível advogar em favor da impossibilidade de manejo de ação pela entidade lesada, o que depõe contra uma comunicação automática entre as esferas.

Porque: 1) diversas as esferas; 2) diversos os benefícios; e, em geral, 3) diversos os transatores, não há como se atribuir ao acordo de colaboração premiada uma sorte de efeito prejudicial sobre a seara sancionadora, quando não por tudo o que dito até aqui, pela simples constatação de que o inverso não se verifica: acordo de leniência ou de não persecução cível celebrado por pessoa física ou jurídica é incapaz de imunizá-las na vertente criminal.

Em conclusão, o ideal é mesmo que, em optando o infrator pela veia consensual, todos os agentes competentes sejam envolvidos e todas as searas de responsabilização sejam endereçadas conjuntamente, abarcando, se o caso e simultaneamente, acordos de colaboração premiada, de leniência (tanto na seara anticorrupção quanto na seara concorrencial) e de não persecução cível.

Autores

  • é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

  • é sócio do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre e doutorando em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP e vice-Presidente da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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