Opinião

O 'sistema de precedentes' no Brasil e o acerto/erro da 5ª Turma do STJ

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24 de setembro de 2020, 14h05

ConJur noticia na sexta-feira (18/9) que a 5ª Turma do STJ (HC 549.850) nega anular condenação em processo no qual réu delatado não falou por último, em aparente afronta ao que decidiu o plenário do STF no HC nº 166.373 [1] em 2019, assegurando aos acusados em processo penal o direito de apresentar alegações finais depois do corréu delator.

O acórdão do julgamento do STF ainda não foi publicado, mas o informativo disponibilizado no site da corte demonstra que o tribunal entendeu que o reconhecimento do direito à última palavra atribuída ao réu significa a consagração da garantia constitucional do due process of law no âmbito do processo penal instaurado sob uma ordem constitucional de perfil democrático.

O Supremo concedeu a ordem para "permitir, ao delatado, o direito de refutar, o direito de contestar, o direito de impugnar, o direito de contra-argumentar todas as alegações incriminadoras contra ele deduzidas, para que, desse modo, sejam efetivamente respeitados, em favor do acusado, o direito ao contraditório e à ampla defesa que lhes são garantidos pela própria Constituição" [2].

Ocorre que o tribunal pleno, embora tenha decidido por maioria fixar tese quanto ao julgamento, o mesmo foi suspenso "para fixação da tese em assentada posterior", o que até o momento, devido à reorganização da pauta do STF em decorrência da pandemia mundial, não ocorreu.

Desta feita, o ministro Felix Fisher, no voto condutor do julgamento do HC 549.850, asseverou que "não se revela possível aplicar de maneira geral, irrestrita e indiscriminada a conclusão firmada no caso singular se a objetivação da tese, que eventualmente lhe poderá outorgar efeito erga omnes, ainda não ocorreu".

O ministro aponta que a decisão não tem efeito vinculante, já que o elemento vinculante é a tese, que conferiria eficária ergma omnes ao julgamento, mas, ainda assim, realiza a distinção (distinguish) entre o julgado e o caso concreto, de modo a afastar o precedente pois não houve, pelo réu, questionamento quanto a ordem de apresentação de alegações finais no momento processual correto, o que demonstraria a ausência de prejuízo.

No voto fica demonstrado que o elemento de distinção utilizado pelo ministro em seu voto, é que no caso concreto julgado "verifica-se que o Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito de apresentar as alegações finais por último ao paciente daqueles autos, cuja defesa, desde o primeiro grau de jurisdição, vinha requerendo a concessão de prazo sucessivo para a manifestação processual".

Portanto, utilizou-se como ratio decidendi ou elemento vinculante da decisão, os fatos subjacentes como paradigma, mesmo dizendo que ainda não há elemento vinculante, retirando-se daí a regra segundo a qual somente os casos em que os réus fizeram requerimento de prazo diferenciado para apresentação de alegações finais é que se enquadram para aplicação do precedente.

Há uma contradição entre reconhecer que a decisão não vincula mas ainda assim fazer distinção, isso porque nos termos do voto, o elemento vinculante para o ministro foram os fatos, ou seja, somente aos casos fáticos estritamente semelhantes se aplica o HC 166.373, logo após ele aponta que se houvesse uma tese fixada (já que ainda não houve), poder-se-ia aplicar o precedente conforme o STF decidir, desde que se fixe a tese neste ou naquele sentido. Vê-se que o STF, ao considerar os termos da decisão, decide como um ato de vontade, podendo escolher se a tese vai nesse ou naquele sentido, pois já haveria um quadro normativo posto que admite os dois caminhos, e como o tribunal sinalizou para um desses caminhos, então é isso que vincula.

Parece que, enquanto o acórdão não foi publicado, as balizas fáticas do precedente vinculam, já que não se teve a "objetivização ou abstrativização" da norma do precedente. Havida a objetivização (a separação do precedente dos fatos com a criação de uma tese), daí, sim, não haveria que se fazer o distinguish, já que o tribunal criaria a norma de precedente aplicável subsuntiva e automaticamente.

A questão é complexa porque nos faz refletir quanto ao suposto sistema de precedentes que vigora no Brasil. O que é um precedente, ainda se confunde com súmulas e jurisprudência? A tese, os motivos determinantes  ou os fatos subjacentes vinculam aos próximos casos semelhantes? Um enunciado de poucas linhas pode resumir toda a complexidade da causa que gestou o precedente? De fato, houve uma sinalização do STF no sentido de fixar tese mais restritiva que os motivos determinantes da decisão, quando então somente se aplicaria o precedente, a "tese-norma" criada pelo tribunal, aos réus que tivessem alegado prejuízo no momento processual inicial, quando da apresentação das alegações finais.

Porém, sinalização não é ratio decidendi, até porque a ratio é chamada ora de razão de decidir, ora de motivos determinantes ou de razões da decisão, sem um maior critério quanto a uma sistematização dos elementos vinculantes de uma decisão.

Acreditamos que o STJ acertou errando, ou errou acertando, como diz Lenio Streck, pois acertou quando aponta que não se deve aplicar um precedente à moda da escola exegética positivista, transformando os juízes de agora, que outrora foram "boca da lei", em juízes "boca de teses". Porém erram, quando decidem de tal forma pelo fato de ainda não haver tese, restringindo a amplitude da ratio decidendi da decisão do STF com base na sinalização.

O problema talvez se encontre no fato que em nosso país não se desenvolveu uma teoria substancial dos precedentes, preferimos importar, sem reflexão, institutos do common law, sem darmo-nos conta de que os precedentes, além de tema afeito ao processo civil, é tema próprio da teoria geral do Direito, o que demanda reflexões quanto as categorias fundamentais do Direito, que sempre tem bases filosóficas [3].

A doutrina [4] tem recepcionado a ideia de precedente como norma, como fica evidente na decisão do STJ, bastava o STF criar a norma (tese) que o enunciado então seria acatado pela sua força de autoridade, sob pena de cassação pela via da reclamação, e não pelo conteúdo do precedente, que diga-se, é muito rico.

A questão posta não é relativa à forma como se deve entender a ratio decidendi no Brasil, essa missão é hercúlica, e depende de toda comunidade jurídica, especialmente da doutrina e do trabalho pretoriano, a questão posta é a urgente necessidade de se delimitar que transformar precedentes em tese, enunciados normativos ou qualquer nomenclatura que se dê, ignorando os motivos determinantes, é um erro.

Mesmo os autores que defendem ser o precedente uma tese abstrata, uma regra de julgamento [5], não negam que os fatos, a contextualização e os motivos determinantes são elementos necessários para identificação da ratio decidendi.

Não se pode admitir que o tribunal prolator de um precedente defina de plano qual é o elemento da vinculante da decisão, nem mesmo na tradição common law é assim, conforme ensina René David: "O juiz não esclarece, no acórdão, qual é a ratio decidendi; esta será determinada  posteriormente por um outro juiz, que examinará se o acórdão é ou não um precedente aplicável ao litígio que estiver julgando" [6].

Por tudo isso, percebe-se que entre um método fático-concreto, em que se busca estabelecer uma ratio estrita, que somente se aplica a casos estritamente semelhantes, e o método abstrato-normativo, que separa os fatos do precedente, criando uma tese genérica aplicável amplamente a casos futuros, a melhor opção para estabelecer o elemento vinculante do precedente são os motivos determinantes, que abrange tanto os fatos que deram causa ao precedente quanto os princípios aplicados na decisão, permitindo, sem obstar a independência dos juízes, a aplicação das distinções a casos não semelhantes ao paradigma.

Nesse caso, ficou evidente que o motivo determinante que o STF utilizou para decidir o HC 166.373 foi de que todo cidadão tem direito a falar por último quando é acusado, independentemente de onde venha a acusação, seja do Estado (Ministério Público), seja de um privado (querelante) ou seja de próprio corréu (delator). O ponto fulcral é analisar a carga acusatória, não importa de onde venha, o fato de o caso concreto tratar de réu que apontou a nulidade em momento correto é apenas circunstancial, pois embora no nosso país temos essa diferença entre o processo subjetivo e objetivo, como destacou o ministro Marco Aurélio, um precedente pode ser qualquer tipo de decisão, não necessariamente de processo objetivo.

Sendo assim, a ratio decidendi deve ser analisada dentro da integridade e coerência do Direito, nos termos de Dworkin e do artigo 926 do CPC, pois em nossa opinião, mesmo que o STF fixe tese buscando restringir o alcance da ratio do HC 166.373, cabe aos juízes e trribunais interpretar, ou seja, hermeneuticamente verificar que trata-se de uma nulidade absoluta apresentar alegações finais junto com o acusador, sem conhecimento da carga acusatória, por violar o devido processo legal, e os direitos fundamentais ao contraditório e ampla defesa.

Nesta esteira, não podemos dizer que a 5ª Turma do STJ realizou distinguish para não aplicar o precedente HC 166.373, ao revés, utilizou uma sinalização como ratio decidendi, privilegiando o método fático-concreto mas ao mesmo tempo apontando para o acatamento de eventual tese que venha a ser fixada. Essa bagunça teórico-dogmática está longe de ser resolvida, somente levando o Direito e os precedentes a sério é possível avançar no tema sem uma redução dos precedentes a um novo positivismo de cortes superiores.

Reconhecemos a importância do voto do ministro Fisher e da decisão da 5ª Turma do STJ, pois é necessário a discussão e aprimoramento desse "sistema de precedentes legislado" brasileiro, mesmo não concordando no mérito da decisão, pois defendemos que a ratio da decisão do STF se aplica a todos os réus que apresentaram alegações finais depois que seus delatores, independentemente de requerimento nesse sentido, por tratar-se de direito fundamental indisponível ao Estado, cujo prejuízo é presumido pela cogência das normas que incidem na espécie.

É preciso reconhecer o papel ideológico e de centralização de poder que essa ideia do precedente como tese comporta, sob argumentos  pragmáticos de sobrecarga de trabalho, acabam solapando o direito a interpretação, a independência funcional dos juízes e ao contraditório das partes, o direito de dialogar com os precedentes dos tribunais superiores e demonstrar que as peculiaridades da realidade da vida não cabem em uma tese.

 


[i] HC n. 166.373/PR, Rel. orig. Min. Edson Fachin, red. p/ o ac. Min. Alexandre de Moraes, julgamento em 2/10/2019, Informativo 954/STF.

[ii] Informativo 954/STF.

[iii] Lopes Filho, Juraci Mourão. Os precedentes no constitucionalismo brasileiro contemporâneo. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 178.

[iv] Mello, Patrícia Perrone Campos; Barosso, Luís Roberto. Trabalhando com uma nova lógica: a ascensão dos precedentes no Direito brasileiro. Revista da AGU, v. 15, n. 3. Brasília: Fórum, jul./set. 2016, p. 23. Taranto, Caio Márcio Gutterres. Precedente judicial: autoridade e aplicação na jurisprudência constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 7. Macêdo, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 249. Wambier, Teresa Arruda Alvim. Interpretação da lei e de precedentes: civil law e common law. Revista dos Tribunais, n. 893 – março de 2010.

[v] Mello, Patrícia. Barosso, Luís Roberto, Trabalhando, idem.

[vi] David, René. Os grandes sistemas de direito contemporâneo. Martins Fontes, p. 430, nota 14.

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