Interesse público

Advocacia e inexigibilidade de licitação: nem tudo mudou

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24 de setembro de 2020, 8h00

No último texto publicado nesta coluna [1], no dia 3 de setembro, escrevi reflexões iniciais a respeito das mudanças na contratação direta de serviços de advocacia em decorrência do advento da Lei nº 14.039, de 17 de agosto de 2020, que inseriu no Estatuto da OAB (Lei 8.906/94) o seguinte dispositivo:

Spacca
"Artigo 3º-A. Os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei.
Parágrafo único. Considera-se notória especialização o profissional ou a sociedade de advogados cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato".

Naquela ocasião, foi considerado que a nova lei estabeleceu uma presunção em favor da singularidade do objeto da contratação, que terá lugar todas as vezes que os serviços advocatícios forem executados por profissionais detentores de notória especialização. Passo a aprofundar a análise efetuada com o intuito de investigar, ao final, se a novidade legislativa muda o cenário da contratação de serviços jurídicos considerados permanentes e corriqueiros.

A nova lei tornou clara a nota diferencial, o chamado "toque de especialista": todos os serviços que os notórios especialistas executam, em razão sua experiência, estudos, publicações anteriores, organização etc. (artigo 25, §1º, Lei 8.666/93), serão singulares. Essa mudança da lei exigirá exame mais atento dos requisitos para enquadramento dos advogados no conceito de notória especialização. Será preciso considerar se o profissional possui tal diferencial ao ponto de que todo o produto de sua atividade seja singular. São profissionais que agregam um componente criativo especial, "envolvendo o estilo, o traço, a engenhosidade, a especial habilidade, a contribuição intelectual, artística ou a argúcia de quem o executa” [2].

Nesse particular, será necessário considerar com cautelas o entendimento segundo o qual "a notoriedade deve ser aferida no âmbito de atuação da própria entidade contratante" (entendimento constante do voto do relator, ministro Dias Toffoli, no Inq 3.077-AL). Dessa forma, há que se exigir do gestor público diligências e motivação robusta aptas a fazerem incidir a presunção legal. A confiança é elemento secundário, e é despertada mediante avaliação do conceito do profissional no campo de sua especialidade, "decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades". Essa avaliação detida poderá concluir pela existência de especialização notória que permita inferir que o trabalho do profissional "é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato" (artigo 25, §1º, Lei 8.666/93).

Como escrito no texto anterior, entendo que a caracterização do serviço precede a busca do profissional mais apto para executá-lo. A partir das características de determinado serviço de advocacia surgirá a necessidade/possibilidade de contratação de advogado ou escritório com qualificações diferenciadas.

Convém relembrar que a Lei 8.666/93 admite a contratação direta, por notória especialização, para serviços técnicos especializados (artigo 13), de natureza singular. Poderia parecer interpretação literal, mero jogo de palavras, a sustentar que todos serviços técnicos prestados por notórios especialistas são singulares (Lei 8.906/20), mas o serviço técnico apto a caracterizar inexigibilidade, pela contratação de notório especialista, é o serviço técnico especializado, de natureza singular essa é a intelecção que se extrai dos artigos 13 e 25, II da Lei 8.666/93.

Entretanto, o artigo 3ºA da lei 8.906/20 não trata diretamente de licitação, fala em comprovação da notoriedade "nos termos da lei"  essa lei é a Lei 8.666/93. Além disso, o novo quadro jurídico também impõe maior atenção à proporcionalidade dos objetos a serem contratados mediante inexigibilidade, em cada caso concreto. Em tese, seria possível contratar um notório especialista para um serviço singelo, corriqueiro, trivial: o simples fato de quem o executa transformaria o serviço em singular, na letra da nova lei.

Antes do advento da nova lei, era possível encontrar doutrina dominante no sentido de que a autoridade competente deveria evidenciar a efetiva necessidade desse tipo de contratação, "pois, obviamente, não se pode contratar um profissional altamente qualificado para executar serviços corriqueiros" [3].

Reiterando a linha de raciocínio exposto, a singela pergunta que se expõe é: seria possível contratar um notório especialista para executar serviços singelos, corriqueiros, permanentes, pois juridicamente seriam considerados singulares em razão dos atributos do profissional?

A resposta, como disse, envolve obrigatoriamente juízo de proporcionalidade. Não se trata de escolha totalmente livre do administrador público; ao contrário, a resposta encontra balizamentos obrigatórios no ordenamento jurídico. Deve o gestor responsável pela decisão a respeito da modalidade de contratação de serviços jurídicos:

a) Sopesar as consequências práticas da decisão (artigo 20 da LINDB [4]), entre elas: o maior valor que será despendido com a contratação dos serviços com relação aos quais o "toque de especialista" não faz diferença;

b) Avaliar as possíveis alternativas (artigo20, parágrafo único da LINDB) entre elas: exercício das atribuições mediante a criação de cargo ou emprego público, com suas consequências administrativas e fiscais; criação de cargo em comissão; contratação, por meio de licitação, de profissional com ou sem a nota da singularidade;

c) Efetuar juízo de proporcionalidade (Constituição Federal e artigo20, parágrafo único da LINDB) inicialmente, verificar, no caso concreto, a adequação dos atributos ligados à especialização notória com o objeto contratual. Atestada a adequação, avaliar a necessidade daquela contratação (a questionar, por exemplo, além dos conhecimentos exigidos pelo serviço, se o órgão possui corpo jurídico com capacitação para a demanda específica). Sendo considerada adequada, ainda é importante fazer avaliação de proporcionalidade em sentido estrito, para verificar se o que se ganha com a contratação possui maior relevo jurídico do que o que é sacrificado (valores envolvidos, fato de o profissional estar ou não à disposição em tempo integral, residir no município etc.) [5].

Além disso, convém destacar que existem atividades privativas de advocacia (a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais, atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas) que são permanentes, contínuas na Administração. Essas atividades, como regra, devem ser exercidas sob regime de cargo ou emprego, admitidas as exceções para cargos em comissão, como impõe o artigo 37 da Constituição. Optar pelo regime contratual para tais atividades não envolve juízo inteiramente discricionário (nos termos da LINDB, como referido).

Centro atenção, então, nos serviços privativos de advocacia que são permanentes não podendo sofrer solução de continuidade e corriqueiros, não demandando qualquer tipo de especialização adicional para seu desempenho em circunstâncias aceitáveis no dia a dia da Administração Municipal. Em princípio, como dito, a opção que se afigura como preferencial é a criação da advocacia pública municipal, estruturada em carreira, como impõe interpretação sistemática da Constituição. Entretanto, a doutrina tem entendido que não existe obrigatoriedade na criação de procuradorias municipais ao contrário, seria necessário compatibilizar a aplicação das normas constitucionais e legais com a diversidade imperante no cenário fático municipal: nosso país possui 5.570 municípios, de portes variados e sujeitos às mesmas leis gerais.

A despeito da falta de obrigatoriedade de criar advocacia pública municipal (para alguns), o exercício de atribuição permanentes por intermédio de regime de cargo ou emprego público é regra constitucional. Dessa forma, pode-se considerar que as atribuições permanentes, ordinárias e corriqueiras de representação judicial e extrajudicial, de consultoria e de assessoramento jurídico na Administração Pública, em que a especialização do executor seja inútil ou desnecessária, devem ser realizadas prioritariamente por servidor investido em cargo ou emprego público, devidamente aprovado em concurso público.

Para avaliar, de forma detida, a viabilidade de criação dos cargos de advocacia pública municipal (independente da estruturação administrativa a ser conferida à Procuradoria), os gestores devem considerar, dentre outros fatores:

a) O volume de demanda de serviços jurídicos e o número de profissionais necessários; e

b) A possibilidade de estruturação de regime jurídico e sistema remuneratório que, ao mesmo tempo, seja atraente para bons profissionais e se adeque à realidade fiscal do município, relembrando a ausência de sujeição ao teto de remuneração municipal [6].

É também juridicamente possível a criação e provimento de cargo em comissão. Além dos fatores acima mencionados, devem estar devidamente caracterizadas as atribuições de direção, chefia ou assessoramento ligadas à consultoria e assessoramento jurídico, nos casos em que a confiança seja justificadamente elemento essencial.

Excepcionalmente, demonstrada no caso concreto a impossibilidade ou inconveniência de prestação dos serviços jurídicos permanentes e corriqueiros mediante regime de cargo (efetivo ou comissionado) ou emprego público, admite-se a contratação de profissionais por vínculos regidos pela Lei nº 8.666/93. Em se tratando de serviços que, muito embora técnicos, não são especializados ao ponto de exigirem profissional notório, é necessária a realização de licitação, por meio das modalidades aplicáveis ao caso (concurso, pregão, concorrência, tomada de preços ou convite), ou a utilização da via direta no peculiar caso de inexigibilidade conhecido como credenciamento que, entretanto, como regra não se aplica às situações vivenciadas pelos municípios. A contratação de profissionais notórios para realização desses serviços despidos de peculiaridades, como dito, demanda realização de estreito juízo de proporcionalidade, além da necessária comprovação dos requisitos subjetivos do profissional.

Dessa forma, a contratação direta de serviços técnicos especializados, com profissionais que detenham notória especialização depende não somente da caracterização do profissional como também da caracterização do objeto como específico ou especializado cuja necessidade seja eventual ou não permanente, ambos a serem aferidos em juízo de proporcionalidade em cada caso.

A interpretação construída nos tópicos precedentes não deve induzir à conclusão equivocada de que nada mudou com a edição da Lei 14.039/20, ao contrário. A nova lei, como dito, estabelece presunção de licitude da inexigibilidade, quando comprovada a notória especialidade do profissional. Seria uma espécie de interpretação autêntica, com o legislador interpretando a norma por ele mesmo produzida. No essencial, a presunção terá grande importância na esfera penal e de proteção à probidade administrativa, notadamente ao afastar presunções como dano in re ipsa e dolo in re ipsa, porque ambas pressupõem um mínimo dimensional de ilicitude na contratação, ficando descartada também a tese da indisponibilidade de bens via tutela de evidência, à medida que o legislador presume que quando a contratação se estabelece com o notório, sua desconstituição exigirá, no mínimo, dilação probatória [7].

Entretanto, continua sendo necessário evidenciar que o serviço específico é realmente qualificado ao ponto de exigir alguém de maior especialização, inclusive que cobre mais por isso. Continua não fazendo sentido contratar um profissional com qualificações acima da média para serviços corriqueiros  a notória especialização do contratado não é um salvo conduto para toda e qualquer contratação com recursos públicos, pois o ordenamento exige avaliação de alternativas para escolha proporcional.

Em conclusão, a premissa de singularidade legal tem grande reflexo na responsabilização do advogado e menor relevância na responsabilização do gestor público. Alguma coisa mudou, mas nem tudo: o gestor público continua adstrito ao seu dever de eleger alternativas de forma proporcional, motivada e transparente.

 


[1] MOTTA, Fabrício Macedo. A nova lei de contratação direta de serviços de advocacia por inexigibilidade de licitação. Consultor Jurídico, 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-set-03/interesse-publico-lei-contratacao-direta-servicos-advocacia-inexigibilidade-licitacao>. Acesso em: 14 set. 2020.

[2] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 8. ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 332.

[3] DALLARI, Adilson Abreu. Contratação de serviços de advocacia pela Administração Pública. Interesse Público IP, São Paulo, ano 1, n. 2, p. 116-128, abr./jun. 1999. Destaquei.

[4] Decreto-Lei nº 4.657/42:” Artigo 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas”. (Incluídos pela Lei nº 13.655, de 2018)

[5] “Nunca se pode esquecer, entretanto, o princípio da razoabilidade, que requer uma ponderação entre a natureza e a relevância dos interesses em jogo, a capacidade financeira de quem contrata e a disponibilidade de profissionais contratáveis, no espaço e no tempo”. (DALLARI, Adilson Abreu. Contratação de serviços de advocacia pela Administração Pública. Interesse Público IP, São Paulo, ano 1, n. 2, p. 116-128, abr./jun. 1999).

[6] (RE 663696, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 28/02/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-183 DIVULG 21-08-2019 PUBLIC 22-08-2019)”

[7] Nesse entendimento também adiro às conclusões do prof. Luciano Ferraz.

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