Opinião

Os programas de compliance e a (errônea) percepção de burocratização jurídica

Autor

  • Carolina Fontoura

    é advogada mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialista nas áreas de Regulatório Contratos e Compliance.

24 de setembro de 2020, 9h07

A partir da inserção da Lei nº 12.846/13 no ordenamento brasileiro, também conhecida como Lei da Empresa Limpa ou Lei Anticorrupção, positivamos a responsabilização administrativa e civil das pessoas jurídicas face aos atos praticados contra a Administração Pública, seja ela nacional ou estrangeira. Como sabemos, a Administração Pública e seus gestores já possuem um complexo de leis e princípios a atender, que deveriam decorrer do simples fato de exercerem uma função pública no Estado brasileiro.

Ao inserir no artigo 7º, inciso VIII, que a mera existência de procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades, bem como a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, seriam levados em consideração quando sanções fossem aplicadas à pessoa jurídica, vemos os programas de compliance sendo levados a outro status jurídico. Sabemos que na rotina empresarial o foco é o negócio, o produto ou serviço que se vende e deve ser assim de fato, mas a percepção de que metas de conformidade burocratizam a atuação pode gerar perda de oportunidade e se mostra errônea em muitos casos.

Apesar da importância dos programas de compliance ser vista como eventual atenuante em caso de penalidade, reduzi-los a essa moldura somente é diminuir seus potenciais benefícios para as organizações empresariais como um todo. Isso porque possuir e efetivar tais programas é difundir uma cultura organizacional, para além de entendê-los como grupos de regras que atravancam a atuação como pensam alguns. Toda a literatura do tema preza para que a construção do programa avalie a empresa, seu negócio, suas possibilidades e riscos aos quais essa atividade está submetida, equivoca-se quem pensa que construir um programa de compliance é simples, ou genérico.

Nas palavras de Alexandre de Cunha Serpa, "não é sobre a lei, mas sim sobre querer seguir as leis" [1], e esse é um ponto muito relevante, falamos muito sobre legalidade, que consta no artigo 37 da CFRB/88 como a obrigação de seguir a legislação, endereçada diretamente à Administração Pública brasileira. Acredito que "estar conforme" seja mais do que isso, é mesmo sobre o querer, que passa uma mensagem muito mais forte do que seguir ao que já se é obrigado, estar de acordo passa a ser uma vantagem ou uma questão de sustentabilidade. Ignorar a existência de leis é quase que inconcebível em pleno ano de 2020 e com o sistema jurídico que possuímos hoje, para além de toda a regulação setorial que dados setores empresariais também já lidam.

O aspecto ético ou de integridade não deve ser ignorado, para além de seguir a legislação, programas de compliance são sobre leis, sim, mas sobre princípios e valores, a ética de uma empresa e como ela se posiciona diante da não conformidade. E, por esse motivo, eles funcionam quando há posicionamento da liderança, sejam diretores, conselheiros etc. O departamento jurídico isolado não tem o poder — por mais que se queira — de determinar que a lei ou o código de conduta serão seguidos, é preciso diretriz e exemplo, é o chamado tone of the top. Segundo as melhores doutrinas, o exemplo vindo de cima é elemento essencial na criação e disseminação da cultura. O compliance, para ganhar musculatura e voz, deverá contar com o apoio da alta gestão [2].

Ocorre que em algumas empresas ou instituições, por motivos diversos, os programas de compliance ou noções de governança corporativa são vistos como entraves ou burocracias, seja pela ótica dos colaboradores ou até mesmo dos diretores e gestores. Essa percepção de que compliance ou legalidade são sinônimos de burocracia gera perdas de oportunidades na realidade, porque o compliance pode justamente sustentar negócios criando oportunidades sólidas e duradouras.

É interessante realizar um paralelo com o compliance da Administração Pública, a qual deve, mais do que qualquer setor, seguir princípios como legalidade, imparcialidade, moralidade e os citados como princípios da governança pública no artigo 3º do Decreto nº 9.203/17, a exemplo da confiabilidade, da integridade e da prestação de contas e responsabilidade. Tornou-se uma boa prática possuir programas de compliance, principalmente em empresas que contratam com o poder público, mas existem legislações específicas que exigem que assim seja, a exemplo da Lei nº 7.753/17 do Rio de Janeiro, que impõe no artigo 5º que a implantação de um programa de integridade se dê em até 180 dias da celebração de contrato com o poder público.

A legislação, por seu caráter universal e generalista, tem o condão de impor ações e práticas, e princípios de autonomia da vontade e liberalidade vigoram na prática civil, mas não vigoram de forma absoluta, podemos lembrar da função social dos contratos ou da constitucionalização do Direito Civil. O equilíbrio é tênue entre a busca por sucesso e retorno lucrativo que devem pautar qualquer atividade empresarial por óbvio, parece trivial querer seguir a lei mais do que ser obrigado a fazê-lo. É uma inversão de certa forma do que se pensa tradicionalmente, de agir a partir do que a lei obriga, é também sobre querer seguir a lei e demandar da sua cadeia de fornecedores e parceiros.

Neste contexto de enforcement e compliance, poderíamos dizer que o legislador evidencia a partilha da responsabilidade de forma generalizada na cadeia produtiva, ao impor a responsabilização objetiva pelos atos lesivos e solidária entre controladas, controladoras e coligadas conforme prescrevem os artigos 2º e 4º §2º da Lei da Empresa Limpa. Na realidade, hoje é mais do que positivado que estar com o compliance em dia e possuir práticas éticas e programas de conformidade são degraus importantes na escada do sucesso das empresas e negócios respectivos.

Mais do que estar obrigado pela legislação, é preciso difundir a cultura e entender que lei, regras e princípios não são sinônimos de burocracia, e de outro lado, para mitigar eventuais interpretações nesse sentido é preciso evitar programas de integridade que sejam one-size-fits-all, ou seja, programas que sejam genéricos ou importações que não façam sentido para aquele negócio ou realidade. Somente a cultura organizacional e dos profissionais envolvidos na aplicação do que é juridicamente adequado pode produzir a mudança sistêmica que tanto se busca com o conjunto de leis positivadas sobre o tema.


[1] SERPA, Alexandre da Cunha. Compliance Descomplicado: um guia simples e direto sobre o programa de compliance. 1. Ed. 2016.

[2] Wagatsuma, Adriana; Cattan, Karina; Fernandes, Luciana. Departamento de compliance — Independência e Autonomia, in: Franco, Isabel. Guia Prático de compliance/organização — 1 ed. — Rio de Janeiro: Forense, 2020, p.1 -14.

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