Opinião

Direito e Economia: aproximações e distanciamentos durante a crise da Covid

Autor

  • Ana Sofia Monteiro

    é sócia do escritório Monteiro e Monteiro Advogados economista mestre em Administração de Empresas pela UFRJ e doutoranda em Direito Comercial pela USP.

24 de setembro de 2020, 16h19

Cursei Direito e Economia ao mesmo tempo, motivada pelo receio de que um dia me chamassem de "uma advogada com especialização em economia" ou "uma economista que decidiu cursar direito". Direito e Economia são duas ciências lindas, independentes e complementares — e a necessidade dessa complementação parece um tanto quanto óbvia em tempos de crise. Complementar, contudo, parece-me ser o resultado de uma dança harmônica entre aproximações e distanciamentos.

A Economia é uma ciência social aplicada que utiliza-se de um instrumental de técnicas para quantificar ou (muito pretensiosamente) antever fenômenos. Entretanto, a crise da Covid-19 dificultou o caráter preditivo desse instrumental econômico, especialmente pela dificuldade de calcular riscos em meio às incertezas iniciais sobre a abrangência dos impactos ocasionados pela pandemia. Não obstante, o raciocínio econômico relevou-se de extrema importância para que pudéssemos explicar alguns comportamentos, considerando a dinâmica de incentivos e expectativas dos agentes, fossem elas racionais ou adaptativas.

Assim, não demorou muito para que decisões judiciais e projetos legislativos se aventurassem a utilizar "argumentos econômicos" na sua fundamentação, cujo ritmo da dança parece hoje pedir passos de distanciamento. É o caso de decisões que dispensam fundamentação legal, substituindo-as pela aplicação pura e simples de raciocínios econômicos ou, ainda mais preocupante, o caso dos operadores que motivam iniciativas legislativas por conceitos econômicos aplicados erroneamente.

O exemplo mais caricato deu-se ainda no início da pandemia, quando o tabelamento de descontos obrigatórios virou moda Brasil afora. Ora, ao instituir descontos fixos nas mensalidades, a linearidade desses descontos (o que, de acordo com a lei estadual fluminense, chegou a 30% para mensalidades acima de R$ 350), no limite, acaba provocando a saída de fornecedores, criando uma reserva de mercado para instituições que gozam de margens de lucro superiores e, por isso, provocando absoluta ineficiência que será repassada ao consumidor final. Esse fenômeno ocorre porque a formação de preços é inerente a cada firma que, além de possuir seus próprios custos operacionais, também considera a elasticidade de preço do consumidor no momento de estabelecer dita margem.

Em que pese a existência de uma previsão normativa diametralmente contrária ao resultado útil desse tipo de iniciativa legislativa (artigo 4º, inciso I da Lei nº 13.874/2019, conhecida como a Lei da Liberdade Econômica), o legislador brasileiro é muito mais feliz ao delimitar a proibição da consequência ao invés de regular o mecanismo através do qual este resultado se dá, como é o caso do problemático artigo 166 do Código Tributário Nacional, por exemplo. Nesse artigo, lê-se que "a restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo".

Ora, ao pensarmos no contexto de uma firma que transfere seus encargos financeiros decorrentes da majoração de um tributo ao consumidor, o termo "transferência" nada mais é do que uma aplicação do conceito de elasticidade, uma vez que, para que efetue este repasse, a firma precisa aferir quão propenso estaria o seu consumidor para absorver o aumento de preço — aferição esta que se dá exclusivamente através da aferição da elasticidade de preço da demanda. Assim, o legislador pretende deixar claro que, quando uma firma repassa o seu ônus tributário ao consumidor, sua restituição deverá ser feita diretamente a ele, mediante prova de que assumiu o referido encargo. Ocorre, contudo, que a elasticidade de preço é dinâmica e muito dificilmente será aferida ex post, tornando a normatização sobre a utilização do instituto totalmente obsoleta. 

Outro exemplo bastante polêmico e incansavelmente discutido durante a pandemia foi a possibilidade de importar um instituto jurídico alemão, conhecido como a teoria da base, o que muitos juristas justificavam utilizando-se do conceito econômico de expectativas. A essa altura você possivelmente estará se perguntando sobre a distinção da palavra expectativa nesses dois mundos.

A diferença é simples. O conceito jurídico de expectativa, no Direito brasileiro, está relacionado a institutos que têm servido à concreção do princípio da boa-fé objetiva, tanto pela doutrina, quanto pela jurisprudência. Institutos como estes, como é o caso do venire contra factum proprium estão ligados à passagem do tempo e à postura das partes envolvidas em um negócio jurídico. Ou seja, uma conduta continuada ou inércia de uma das partes pode criar uma legítima expectativa na outra parte, seja de que a execução de uma obrigação seja mantida na forma com que vem se realizando, seja de que uma determinada faculdade jamais venha a ser exercida em razão de sua histórica inércia.

Ora, esse conceito jurídico de expectativa guarda relação, tão somente, com o conceito econômico das expectativas adaptativas, ou seja, a hipótese de que o valor futuro de uma variável será uma função de seus valores passados. Este conceito foi introduzido por Fisher (1911), ganhando notoriedade a partir dos estudos de Cagan (1956) relacionados à hiperinflação. O conceito de expectativas racionais, por outro lado, é introduzido mais tarde por John Muth (1961), ganhando notoriedade especialmente em função dos trabalhos de Robert Lucas (1969). De acordo com essa hipótese, os agentes se utilizam de toda informação disponível sobre o atual comportamento e as previsões para o futuro. É com base na sua experiência e nestas informações que estes agentes racionalmente antecipam as atitudes da outra parte.

A teoria da base do negócio jurídico foi criada ainda em 1850 por Bernhard Windscheid e o seu pressuposto era de que o ajuste contratual funda-se exatamente em fatos não expressamente declarados no contrato, ou seja, fatos pressupostos por uma das partes e cognoscíveis pela outra. Conforme nos explica Almeida Costa (2003 [1]), o pressuposto da teoria é exatamente de que a certeza sobre a ocorrência de fatos pretéritos ou futuros ocasionariam a não realização do negócio ou sua estipulação em termos diversos; o que nada mais é do que literalmente utilizar das informações disponíveis para prever o atual comportamento e as previsões futuras.

Assim, quando o operador do Direito brasileiro importa a teoria alemã sem que haja previsão normativa para tanto (em que pese a posição contrária do Superior Tribunal de Justiça a respeito dessa importação sem sentido [2]), ele importa um mero conceito, que pode não ter sido bem compreendido nem tampouco devidamente debatido, ameaçando a harmoniosa dança entre direito e economia com descompassos arriscados, que podem colocar em cheque a segurança jurídica e aí sim acionar expectativas negativas dos agentes sobre a possibilidade de alguma previsibilidade em nosso sistema jurídico.

Se uma crise cria oportunidades ao Direito para desenvolver-se, esse debate sobre a utilização de raciocínios econômicos nas suas disposições precisa ser maduro, profundo e compassado, com premissas transparentes e justificativas fundadas sobre a sua utilização.

 

[1] COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações, 9ª edição. Coimbra: Almedina, 2003, p.292.

[2] REsp 1.321.614-SP, Rel Originário Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Curva, julgado em 16/12/2014, DJe, 3/3/2015.

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    é sócia do escritório Monteiro e Monteiro Advogados, economista, mestre em Administração de Empresas pela UFRJ e doutoranda em Direito Comercial pela USP.

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